Português: "Não sei se é sonho, se realidade"

quinta-feira, 13 de junho de 2019

"Não sei se é sonho, se realidade"

            A composição poética, composta por quatro sextilhas de rima cruzada nos primeiros quatro versos e emparelhada nos dois últimos (ABABCC) e versos eneassílabos, aborda a temática da dicotomia entre o sonho e a realidade. Esta temática é consentânea com o conceito de arte que caracteriza o Modernismo, enquanto experimentação para recriar a vida, criando uma realidade nova.

 
            O assunto consiste na constatação, por parte do sujeito poético, de que a felicidade está presente no interior de cada um e não na nostalgia de um passado que se desvanece.

 
            O poema pode dividir-se em três partes.

            A primeira corresponde às duas primeiras estrofes, nas quais o sujeito poético, cheio de esperança, sugere a possibilidade (advérbio “talvez”) de alcançar a felicidade através do sonho, como se pode comprovar através das expressões que o caracterizam: “terra de suavidade” (v. 3), “ilha extrema do sul” (v. 4), “palmares” (v. 7). De facto, o sujeito poético imagina (sonha) uma ilha distante, serena e agradável (“suavidade”), repleta de árvores (como palmeiras), onde a felicidade, a juventude e o amor são possíveis. A antítese do verso 1 (“Não sei se é sonho, se realidade”) sugere a incapacidade de distinguir o sonho da realidade e exprime a oposição entre os dois elementos, entre o mundo imaginado e o mundo real. O «eu» procura a felicidade, recorrendo ao sonho como fuga à realidade.

            Este lugar é um misto de sonho e vida (v. 2), um espaço longínquo, exótico e indefinido, separado do mundo real, que acarreta sossego e calma, serenidade, juventude e alegria/sorriso, e representa a felicidade absoluta, tudo nele se opondo à realidade e ao quotidiano. De facto, aparentemente, esse espaço constitui a materialização do paraíso perdido que proporciona a felicidade e o amor, como se pode constatar pelas metáforas/imagens exóticas de “palmares” e “áleas longínquas”.

            Esta ideia é reforçada nos dois versos finais da primeira estrofe, os quais enfatizam a ideia de que é possível que exista uma ilha, situada entre o sonho e a realidade, na qual reina a felicidade. O adjetivo “jovem” e a forma verbal “sorri” associam-se à musicalidade sugerida pela repetição do advérbio locativo “ali”, reforçando as características paradisíacas e de exceção daquele espaço. A personificação do verso 6 (“A vida é jovem e o amor sorri.”) enfatiza o caráter idílico da ilha do sul, onde há juventude eterna e o amor acontece, contrariando a solidão, ilha essa esquecida entre o sonho e a realidade, na qual reina a felicidade. Em suma, a ilha simboliza o sonho, a felicidade, o paraíso desejado: terra de suavidade, com palmares, áleas, sombra e sossego, onde a “vida é jovem e o amor sorri”.

            No entanto, a segunda estrofe parece introduzir uma certa incerteza: será possível efetivamente concretizar o sonho, viver aquela forma de felicidade (atente-se na repetição do advérbio de dúvida “talvez”, que sugere essa mesma incerteza). Além de incerto, o ideal procurado afirma-se já como ilusório, ideia sugerida pelas metáforas “palmares inexistentes” (v. 7) e “Áleas longínquas sem poder ser” (v. 8) e confirmado pela interrogação do verso 11: “Felizes, nós?”. Estas duas metáforas e a do verso 4 (“ilha extrema do sul”), por um lado, simbolizam o sonho em busca da felicidade desejada, mas inacessível e, por outro, recriam o espaço de utopia, “a terra de suavidade”, produto da idealização.

            Nas duas primeiras estrofes, nota-se a alternância entre o uso da 1.ª pessoa do singular (“Não sei”), traduzindo a reflexão pessoal do sujeito poético, e do plural (“ansiamos”), que generaliza a reflexão a todos aqueles que sonham, incluindo o próprio sujeito poético.

            A terceira estrofe constitui o segundo momento do texto, que traduz o desalento provocado pela consciência da impossibilidade de alcançar a felicidade no sonho. A conjunção coordenativa adversativa “mas” que a inicia, que tem um valor de oposição ou contraste, contraria a noção de felicidade absoluta sugerida inicialmente, desfazendo a dúvida entretanto introduzida, o que deixa o sujeito poético desiludido, desanimado e desalentado ao constatar que é impossível vivenciar a felicidade no sonho, por causa do caráter efémero do bem (“não dura o bem” – v. 18), como consequência do pensamento. Assim, a incerteza que se foi instalando na segunda estrofe dá lugar à certeza da imperfeição que caracteriza aquele lugar idealizado pelo “eu” e a sua desilusão fica bem evidente com o recurso à interjeição do verso 17: “Ah”. De facto, “Sob os palmares” (v. 15) “Sente-se o frio” (v. 16).

            Por outro lado, o primeiro verso da terceira estrofe confirma que o sonho não é realizável, pois, assim que fosse concretizado, deixava de o ser, logo a concretização é falsa: “Mas já sonhada se desvirtua” – v. 13). Desiludido, o sujeito poético reconhece que o local também é marcado pelo “frio” e pelo mal, que não é um lugar perfeito. Atente-se na antítese “O mal não cessa, não dura o bem” (v. 18). O facto de pensar na ilha destrói o seu caráter idílico, pois o “mal” é permanente, não cessa, e o “bem” é efémero.

            A terceira parte compreende à quarta estrofe e nela encontramos as conclusões do sujeito poético, que veiculam uma ideia oposta à inicial: afinal, não é no sonho que podemos encontrar a felicidade, mas no interior, no íntimo de cada um de nós (“É em nós que é tudo” – v. 23). Deste modo, a felicidade deixa de fazer sentido num lugar exterior ao indivíduo ou na ilusão do sonho (enquanto fuga à realidade) para poder ser materializada no interior do ser humano. Só a nossa ação nos permitirá ser felizes.

            As metáforas dos versos 19 e 20 (“Não é com ilhas do fim do mundo, / Nem com palmares de sonho ou não”), associando a ilha ao sonho, dado que os locais exóticos são considerados espaços de evasão, de fuga à realidade, sugerem precisamente que não é no sonho que encontramos a felicidade: “Que cura a alma seu mal profundo, / Que o bem nos entra no coração” (vv. 21-22). A antítese presente nestes dois últimos versos realça a inoperância do sonho e a imposição do real sobre o imaginário.

            Onde reside então a felicidade? A felicidade está no íntimo de cada ser humano, está dentro de nós mesmos, não em sonhos distantes: “É em nós que é tudo.” (v. 23). Note-se que esta ideia remete para a procura de si mesmo. “É ali, ali, / Que a vida é jovem e o amor sorri.” (vv. 23-24): o sujeito poético começou por colocar a hipótese de encontrar o sonho e a felicidade na “ilha”; depois anulou essa possibilidade, considerando que, uma vez atingido, o sonho deixa de o ser (verso 13); por último, na derradeira estrofe, conclui que aquilo que procuramos se encontra em nós, no interior de cada pessoa, e no nosso mundo e não no sonho. Note-se a presença insistente do advérbio com valor locativo «ali» que, no verso 3, se refere à “terra de suavidade”, no 4, à “ilha extrema do sul”, e, na última estrofe, ao “nós”. Ou será que o poema apresenta uma estrutura circular e, no final, regressa ao ponto de partida e ao sonho?

            Para atingir o absoluto, a plenitude, o ser humano necessita de ultrapassar as suas próprias limitações, as quais geram o mal-estar, “assumindo a tensão produzida pelas contingências da vida. A dicotomia sonho-realidade é representada por dois mundos cujas fronteiras às vezes se tocam e o ser humano, na sua busca contínua pela felicidade absoluta, tem tendência a divagar entre os dois, oscilando entre as vivências vividas e as vivências sonhadas.”

 
(Resumos Clássicos, Conceição Coelho e Maria de Fátima Santos)
 

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