● Personagens
O
terceiro parágrafo termina com a referência aos inimigos que ameaçavam o reino
e a vida do pequeno príncipe. Na sequência, o quarto introduz um desses
inimigos, o maior: o tio bastardo. O retrato que o narrador traça dele é
implacável.
De
facto, ele é retratado como uma personagem vil, destacando-se pela sua
depravação, caráter bravio e brutalidade. Além disso, é um homem dominado pela
ambição material e grosseira, movendo-se pelo desejo de alcançar a realeza, não
pelo poder que ela lhe proporcionaria, mas pelos tesouros a que teria acesso.
Fisicamente,
vive isolado num castelo nas montanhas, o que reflete a sua natureza sombria,
rodeado por uma «horda de rebeldes». A comparação com um lobo, um animal
predador, sugere que se trata de alguém feroz e selvagem, violento e cruel,
predisposto à violência. Estamos perante uma figura que vive isolada e que
lidera um grupo de malfeitores, afastado da civilização, que planeia assaltar o
trono à força. De forma calculista e impiedosa (“de atalaia, espera a presa”),
conspira contra o frágil e indefeso sobrinho, que perspetiva como uma presa
fácil.
Em
suma, o tio bastardo é apresentado, desde o início, como um vilão cruel e
sinistro, ávido de riqueza e que, qual lobo faminto, aguarda a ocasião certa
para atacar a presa indefesa e saciar a sua ambição.
Metaforicamente,
o príncipe é apresentado como a presa do tio bastardo, enfatizando-se mais uma
vez a sua tenra idade, fragilidade e vulnerabilidade (observar a expressividade
do diminutivo «criancinha»). Por seu lado, a imagem de um “rei de mama”
destaca a ironia da situação em que se encontra: apesar de ser o herdeiro de um
reino vasto e abundante (“senhor de tantas províncias”) e de ser detentor de um
título que lhe dá grande poder, não tem qualquer controlo sobre o seu destino e
é um ser indefeso, incapaz de compreender e se defender dos seus inimigos e dos
perigos que o espreitam.
Essa
ideia é acentuada pela imagem final, que no-lo apresenta a dormir pacificamente
no seu berço e que contrasta com o perigo que o rodeia. Na mão, segura um guizo
de ouro, um brinquedo infantil que simboliza a sua inocência e despreocupação,
ao passo que o ouro indicia a riqueza e o poder que o cercam, mas que, em
simultâneo, são os responsáveis pela existência dos inimigos que o ameaçam.
● Espaço físico e social
O
espaço físico apresentado neste parágrafo assenta na alternância entre dois
lugares: o castelo nas montanhas, habitado pelo tio bastardo, e o ambiente doméstico
e protegido do pequeno príncipe, que dorme pacificamente no seu berço.
O
primeiro espaço é uma fortaleza isolada, situada no cimo dos montes, um local
de difícil acesso e afastado da civilização, que enfatiza o distanciamento
físico e emocional de quem nele habita em relação ao reino e seus habitantes. O
tio bastardo vive como um pária, rodeado de uma horda temível, elementos que
indiciam que o local em que habitam é selvagem, caracterizado pela desordem e
violência, além do isolamento e solidão. A comparação da personagem com um lobo
que, de atalaia, espera a presa, intensifica o caráter predatório do espaço,
associando o castelo a uma espécie de covil inóspito e extremamente perigoso.
Em suma, o castelo é um reflexo do seu dono: isolado, sombrio e ameaçador.
Por sua
vez, o príncipe vive num espaço contrastante, um espaço interior: um quarto
onde dorme sossegadamente no seu berço, um local caracterizado pelo afeto, pela
segurança e pelo cuidado. Não obstante, embora se encontre aparentemente seguro
e protegido, cercado pelas riquezas do reino que, eventualmente, governará no futuro,
há um perigo que o espreita vindo das montanhas.
No que
diz respeito ao espaço social, o parágrafo anterior e este introduzem
uma questão relevante. Com a morte do rei, o pequeno príncipe, sem o saber e
sem querer, enquanto herdeiro do trono, é o detentor do poder e da autoridade no
reino, mesmo que futuro, daí que seja o foco da ação do tio, que necessita de
se livrar dele para se apossar do trono. O guizo de ouro que aperta entre as
mãos é o símbolo, neste contexto, da sua posição social elevada, a mesma que
desperta a cobiça dos inimigos e coloca a sua vida em perigo.
Por seu
turno, o tio é uma figura marginalizada no âmbito da sociedade retratada no
conto, tanto por causa de se tratar de um bastardo, de um filho ilegítimo, fora
do casamento, como pelos eu comportamento rebelde e predatório. De facto, ele
vive à margem da sociedade, isolado, liderando uma horda, o que tem como (outro)
motivo a ambição desmedida pela riqueza e pelo poder.
Esta
personagem representa a corrupção e a ganância, que acabam por minar as
relações sociais e políticas. Apesar de bastardo, não deixa de fazer parte da
família real, desde logo porque é irmão do falecido rei, porém a sua
ilegitimidade e o seu comportamento colocam-no em conflito com os seus. Essa
ilegitimidade contrasta com a legitimidade e a pureza do príncipe, que, não
obstante ser uma criança, é encarado como o legítimo candidato ao trono.
● Posição do narrador
Ao
longo do conto, maioritariamente, o narrador é objetivo, porém há momentos em
que se apresenta como subjetivo, visto que:
a.
usa uma linguagem judicativa: ao descrever o
tio bastardo, caracteriza-o como «depravado e bravio»;
b.
socorre-se de termos (por exemplo, a
interjeição «ai») que deixam transparecer a sua emotividade, sugerindo
compaixão pelo príncipe.
● Linguagem
Um dos
recursos mais importantes do capítulo é a adjetivação, concretamente
aquela que caracteriza o tio bastardo:
a. os
adjetivos «bravio» e «depravado» enfatizam a sua natureza selvagem e vil;
b. o
adjetivo «grosseiras» e o nome «cobiças» revelam a sua faceta ambiciosa e
avarenta;
c. o
adjetivo «bastardo» destaca a ilegitimidade social (alguém nascido fora do casamento),
mas também, pelo comportamento, moral (fulano de tal é um bastardo, isto é,
desonesto, de caráter duvidoso).
O tio é
também comparado a um lobo (“à maneira de um lobo que, de atalaia,
espera a presa”), comparação essa que enfatiza o caráter cruel e selvagem da
personagem. Como um predador, escondido, espera o momento certo para atacar.
Assim sendo, podemos deduzir, desde já, que agora que o rei morreu, o tio se
prepara para descer dos montes e atacar o palácio e o sobrinho bebé. O perigo é
iminente. Assim se cria um clima de tensão e expectativa.
O uso
da interjeição «Ai», seguida da exclamação, traduz(em) a
preocupação e a compaixão do narrador relativamente ao príncipe e ao seu destino.
As
figuras do tio – ambicioso, perigoso, selvagem – e do sobrinho – frágil,
vulnerável, inocente, desprotegido – constituem um contraste, uma antítese.
A
construção da figura do príncipe está rodeada de uma certa ironia.
Embora seja o herdeiro do trono e, em consequência, detenha grande poder e
autoridade em tese, não passa de uma criancinha, de um «rei de mama», ou seja,
alguém que é totalmente incapaz de exercer o seu poder e autoridade. Neste
contexto, a expressão «rei de mama» sugere, em simultâneo, a sua posição de
privilégio (detentor de poder e autoridade) e a sua absoluta fragilidade e
vulnerabilidade, traços que contrastam com o que se espera de um rei, visto
tradicionalmente como uma figura de poder e força.
● Elementos simbólicos
O guizo
de ouro reveste-se de uma simbologia particular. Enquanto brinquedo
infantil, representa a inocências e a despreocupação da criança; o facto de ser
de ouro, torna-o símbolo de riqueza e poder, elementos que, no contexto do
conto, se constituem como fonte de cobiça e conflito.