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domingo, 22 de outubro de 2084

Professor

     "Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais." 

Rubem Alves

terça-feira, 1 de abril de 2025

Análise do poema "Lúcia no Saldanha em Pulgas", de Adília Lopes

1
De um amante
uma vez
faço mil amantes
 
2
Porque o meu amante
tão pobre, Juan Yepes
foi o pão o peixe a água
das minhas bodas de Caná
 
3
Ó mulher inspirada
que desperdiças o caríssimo
unguento de Bethânia,
ensinas-me a gerir
a escassez de recursos
 
4
Os amantes não se contam, Don Juan
ó contabilista dos contabilistas
 
5
Sangue que foi vinho que foi água
onde nadam mil peixes
que foram um peixe só
alimentado por pão partido em pequeninos
o amor não se conta, ó escritoras de escritos
 
6
Não contem comigo para usar
o jargão da Marie Claire
e a jaqueta de Courrèges
 
7
O mártir pede o pano da Verónica emprestado
autorretrato dos autorretratos alta-costura
e assim misturo Cristo com isto
 
8
De que me serve que esse homem
tenha sofrido se eu sofro agora?
 
9
Marta & Maria acopladas fundam
uma firma no firmamento
 
10
Eu louvo o meu tempo de santos
Computadores, ó 70! X 7!
(o meu martírio branco consiste em louvar
o que não interessa nem ao Menino Jesus)
 
    Este poema pertence ao livro Clube da Poetisa Morta, datado de 1997. O título do texto (tal como a nona estrofe) alude ao tema musical “Lucy in the Sky with Diamonds”, dos Beatles, o qual se crê fazer referência à sigla LSD e aos efeitos alucinogénios do ácido lisérgico e que faz parte do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
    Na composição poética, Adília Lopes, aparentemente, estabelece um diálogo inspirado entre experiências pessoais e acontecimentos bíblicos. O Saldanha refere-se à Praça Duque de Saldanha, em Lisboa, usada sobretudo como ponto de passagem, intercâmbio ou encontro. Por seu turno, a expressão “estar em pulgas” indica expectativa, mas também pode ser lida em sentido literal (há pulgas na praça).
    A primeira estrofe parece apontar para a multiplicação do amor ou dos amantes, o que pode querer dizer que o sentimento amoroso, uma vez experimentado, pode expandir-se e desdobrar-se em múltiplas experiências.
    Por sua vez, a segunda estrofe alude ao episódio bíblico da multiplicação dos alimentos, concretamente a dos pães e dos peixes. O amante do «eu» poético era pobre, Juan Yepes. Trata-se de Juan Yepes Álvarez (1542-1591), nome de nascimento, que depois ficou conhecido como San Juan de la Cruz, um religioso e poeta místico do Renascimento espanhol e um dos grandes nomes da literatura mística cristã, conhecido pela sua poesia espiritual e pela ideia do amor divino. Juan Yepes foi ainda reformador da Ordem dos Carmelitas e cofundador da Ordem das Carmelitas Descalças de Santa Teresa de Jesus. Desde 1952, tornou-se o patrono dos poetas em língua espanhola. Os nomes comuns «pão», «peixe» e «água» remetem para o episódio bíblico da multiplicação dos pães e dos peixes e da transformação da água em vinho nas Bodas de Caná. De facto, trata-se do primeiro milagre de Jesus: de acordo com o Evangelho de S. João, ele estava, juntamente com Maria, sua mãe, presente num casamento quando o vinho acabou. A Virgem, mal se apercebeu da situação, informou o filho, que ordena aos servos que encham seis talhas com água e, ao servi-la, os convidados percebem que a água foi transformada no melhor vinho da festa. Deste modo, no contexto do poema, a menção às Bodas de Caná parece indiciar um amor que se multiplica ou que possui um fundo milagroso. Por outro lado, o amor do «eu» pelo amante não era material, mas espiritual e essencial como os elementos básicos da vida. Note-se, ainda, que o vinho, na tradição cristã, representa a alegria, a comunhão, tendo acabado por se tornar um símbolo eucarístico.
    A terceira estrofe remete novamente para a Bíblia, especificamente a receção de Jesus por Maria e Marta. Ela abre com uma apóstrofe dirigida a uma “mulher inspirada”, chamada Maria, que ungiu Jesus Cristo. Perante as críticas dirigidas a esse comportamento perdulário dessa figura feminina, que poderia ter vendido o perfume e dado o dinheiro aos pobres, Jesus recorda que esta será a preparação para o dia do seu sepultamento. Ainda de acordo com o texto bíblico, a mulher derramou o dito unguento muito caro nos pés de Jesus, enxaguando-os depois com os seus cabelos. O adjetivo «inspirada», presente no verso inicial da estrofe, pode ser entendido como um elogio à ação da mulher por ter agido movida por um impulso nobre, ou, em alternativa, como uma ironia, sugerindo que a inspiração pode ser mal interpretada ou desperdiçada. Por sua vez, a forma verbal «desperdiças» traduz a crítica presente na Bíblia e feita pelos discípulos, nomeadamente Judas Iscariotes, que questionaram a razão de o perfume não ter sido vendido para ajudar os pobres. Os dois versos finais parecem possuir uma contradição irónica, dado que a mulher referenciada desperdiçou um recurso valioso (o unguento), mas o «eu» declara que a ensina a lidar com a escassez de recursos, num jogo claro entre generosidade e escassez.
    Na quarta estrofe, o sujeito lírico defende a singularidade da experiência num registo imprecativo, dirigido a Don Juan, tratado, de forma irónica, como o “contabilista dos contabilistas”, referindo-se aos inúmeros amores que a tradição lhe aponta. D. Juan é uma personagem mítica do teatro espanhole, por extensão, da literatura universal, que constitui o protótipo do libertino impenitente. Da autoria discutida, atribui-se tradicionalmente a sua criação a Tirso de Molina, na sua obra El Burlador de Sevilla y Convidado de Piedra, de 1630. D. Juan personificaria uma lenda sevilhana que inspirou vários autores, como, por exemplo, Molière, Lorenzo da Ponte, Lord Byron, etc. No fundo, não passa de um libertino que crê na justiça divina, mas acredita igualmente que poderá arrepender-se e ser perdoado antes de comparecer perante Deus.
    Na estrofe seguinte, o «eu» poético recupera os símbolos já referidos: na Última Ceia, o vinho foi transformado em sangue de Cristo (símbolo da redenção); nas bodas de Caná, a água foi transformada em vinho (símbolo da alegria e da celebração, água essa em que, metaforicamente, “nadam mil peixes / que foram um peixe só”, metáfora essa que reivindica um amante que vale por muitos. Há aqui a ideia da continuidade nos processos de transformação: algo muda ao longo do tempo, mas mantém conexões com as suas «versões» anteriores. No caso do poema, estamos perante algo que se transforma em qualquer coisa maior, mais significativa, quase uma ascensão simbólica: o que hoje é sangue (símbolo da vida) já foi antes vinho (alegria, celebração, comunhão) e, previamente, água (a matéria-prima básica, a origem de tudo). A progressão sugerida por Adília Lopes parece apontar para o percurso da vida e da espiritualidade: primeiro, há a origem e a simplicidade (a água, elemento primário associado à pureza, ao batismo); depois, dá-se a transformação e a celebração (o vinho; no fim, chega a consagração e o sacrifício (o sangue, o sacrifício máximo, a redenção, como no sacrifício de Cristo). Ou seja, o amor tem início como água (algo puro, básico, essencial), transforma-se, de seguida, em vinho (algo mais intenso, que dá prazer, é embriagante, como a paixão), para se tornar, no final, sangue (um estado extremo, talvez de sacrifício, dor e/ou entrega total). O amor não se mede, não se quantifica, mas cresce e intensifica-se com o tempo, ainda que implique também sofrimento ou sacrifício. Por sua vez, a imagem do pão partido remete tanto para o milagre da multiplicação dos pães quanto para a Eucaristia, na qual Cristo se oferece em pedaços – a hóstia – aos fiéis. No verso final, o «eu» dirige-se às “escritoras de escritos”, parecendo criticá-las por procurarem definir o amor, alertando-as que o mesmo não pode ser medido, calculado ou explicado por meio de palavras, lembrando o célebre soneto de Camões (“Amor é um fogo que arde sem se ver”), no qual o poeta procura definir o amor, para concluir que, afinal, é indefinível e contraditório.
    A sexta estrofe contém referências ao mundo contemporâneo da moda. “Marie Claire” é uma revista feminina de caráter mensal, iniciada em França em 1937, que posteriormente começou a ser publicada também noutros países, nos respetivos idiomas. O seu lema era “Mais do que uma cara bonita”. Por seu turno, André Courrèges foi um estilista francês nascido em 1923, reconhecido sobretudo pelos seus desenhos ultramodernos. Courrèges associou à indumentária feminina uma maior simplicidade, com traços que permitiam uma maior liberdade e comodidade. Os seus desenhos caracterizavam-se por formas geométricas, baseando-se em quadrados, trapézios e triângulos. Em 1965, lançou uma campanha chamada “Era espacial”, a qual revolucionou o mundo da moda, sendo considerado um visionário, criador de um universo radical, pessoal e polimorfo no universo da moda. O verso inicial contém uma negação categórica (“Não contem comigo”), deixando claro que não faz parte de um determinado grupo ou estilo, numa espécie de posicionamento pessoal contra algo que parece imposto ou esperado. Neste caso, trata-se da negação do «jargão» da referida revista de moda, beleza e comportamento feminino. Poderemos estar, neste passo, perante uma crítica ao discurso comercial e superficial, a recusa de modas, bem como a rejeição de um tipo de imagem e empoderamento feminino, ligado ao consumismo e à estética, numa visão superficial da mulher. Por outro lado, o «jargão» indicia uma maneira de falar comum a uma atividade ou grupo específico, comumente usada em grupos profissionais ou socioculturais. Quanto à «jaqueta», pode simbolizar o consumismo e a moda como imposição que o «eu» poético recusa enquanto algo que representa um padrão estético pré-definido. Além disso, o mundo da moda, nomeadamente de grifes famosas, frequentemente dita como as mulheres se devem apresentar socialmente, algo que o sujeito lírico recusa seguir. Deste modo, Adília Lopes estaria a colocar-se fora do discurso da moda e das revistas femininas, por não se encaixar nesse universo de futilidade e convenções sociais.
    A sétima estrofe mistura referências religiosas, arte e moda, com ironia e em tom provocatório. O verso inicial faz alusão à lenda do véu de Verónica, um dos episódios inscritos na Via Sacra. Assim, de acordo com a tradição cristã, Verónica enxugou o suor e o sangue do rosto de Cristo quando ia a caminho do Calvário, tendo o seu rosto ficado impresso no pano (esta cena não consta da Bíblia). Note-se que o complexo verbal «pede emprestado» quebra o tom sagrado da referência bíblica. Por outro lado, quem é o «mártir»? Um narcisista? O autorretrato dos autorretratos constituirá uma denúncia da obsessão pela autoimagem, do culto da imagem? O conceito do autorretrato surge associado à moda, ao luxo e ao consumismo. A alta costura remete para a sofisticação, mas, no caso do poema, parece apontar para uma certa artificialidade. O último verso reconhece claramente a associação irreverente entre o sagrado (Cristo) e o profano, o mundano («isto»). Cristo é o símbolo da espiritualidade, do sacrifício, do sofrimento em prol da humanidade, enquanto o pronome demonstrativo invariável «isto» parece apontar para o que foi citado antes: a moda (o próprio poema?). De acordo com uma interpretação livre, a estrofe parece questionar o modo como a dor e a imagem são manipuladas na sociedade atual. Deste modo, a figura do mártir moderno que pede o pano de Verónica emprestado pode indiciar a imagem de alguém obcecado pela exibição do sofrimento ou da busca de validação através dele.
    A oitava estrofe reproduz os versos finais do poema “Cristo na cruz”, inscrito na derradeira obra poética de Jorge Luís Borges, intitulada Os conjurados. São perguntas sem resposta de um Borges cego, perto do final da sua vida. O sofrimento de Jesus (ou do mártir) não tem qualquer valor real para o «eu» poético, que sofre no presente. De acordo com o cristianismo, a paixão de Cristo é vista como redentora, como um sacrifício que dá sentido à dor do ser humano. No entanto, o sujeito poético rejeita essa ideia: o sofrimento de Cristo no passado não alivia a dor no presente, ou seja, o sofrimento não possui um sentido transcendente. O sofrimento do «outro» (de Cristo ou de qualquer outro mártir) pertence ao passado, mas “eu sofro agora” – o que importa, para quem sofre, é o momento presente. O sofrimento não é transferível, não é algo que pode ser substituído ou compensado por uma dor anterior. Deste modo, o «eu» poético rejeita a ideia de consolo religioso, de que o refúgio na religião traz conforto, alivia a dor.
    Tendo em conta que o poema contém diversas referências a Cristo e ao pano de Verónica, descrito como “autorretrato dos autorretratos alta costura”, Marta e Maria podem ser identificadas como as duas irmãs de Lázaro. Deste modo, os nomes «firma» e «firmamento» remetem também para a origem bíblica das duas figuras. Por outro lado, esta estrofe exemplifica o gosto de Adília Lopes pelas dualidades. De acordo com a professora Rosa Maria Martelo, a poetisa reúne as identidades diferenciadas da diligente Marta e da contemplativa Maria; a dualidade Marta e Maria é equivalente à dupla que reúne Adília e Maria José, que, também graças à máquina de coser, fundaram juntas uma firma no firmamento (in poema “Op-Art”) – no caso, entre as estrelas da escrita contemporânea. Note-se que o verbo «ligar» significa, neste caso, ligar, combinar, unir tessituras, pedaços de discurso, fazer roupas novas com vestidos velhos.
    A estrofe final – uma quadra – mistura elementos religiosos («santos») com elementos modernos, do domínio da tecnologia («computadores»), indiciando um contraste entre o domínio do espiritual e o do profano. O sujeito poético afirma louvar o tempo atual, o da tecnologia, da modernidade, representado(a) pelos computadores, o que parece constituir uma crítica irónica sobre o que é venerado hoje em dia. O segundo verso contém uma referência bíblica, nomeadamente ao Evangelho de S. Mateus (18, 21-19, 1), onde Jesus responde a uma pergunta feita pelo apóstolo Pedro (“Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes tenho de o perdoar? Até sete vezes?”. Jesus responde-lhe: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.”). Ora, esta resposta sublinha a necessidade de perdoar verdadeiramente.
    O dístico derradeiro surge entre parênteses e traduz o sarcasmo do «eu» lírico, ao demonstrar que se sente martirizado por dar valor a coisas que ele próprio considera sem valor. O que louva (ou escreve ou pensa) não tem qualquer importância nem para o Menino Jesus. Trata-se de uma expressão idiomática que aponta para algo desinteressante, maçador, banal. O que o sujeito poético louva não tem interesse, é fútil ou irrelevante.

sábado, 29 de março de 2025

Benfica é tetracampeão de andebol feminino

Tetracampeonato

 

Análise da cantiga "Bem sabedes, senhor rei", de Gil Peres Conde

    Esta cantiga de refrão em cobras singulares, composta por Gil Peres Conde, é constituída por três sétimas de rima cruzada e interpolada (ABABCAC) de versos em redondilha maior. Ela faz parte de um conjunto de oito cantigas alusivas à sua má estrela em terras de Castela, sendo muitas delas dirigidas diretamente ao rei e que têm evidentes ligações entre si e que, no seu conjunto, formam uma sequência biográfica.

    Na Idade Média, o poder estava centrado, respetivamente, na Igreja, nos reis e na nobreza. Comandada pelo Papa e pelos seus representantes (cardeais, arcebispos e bispos espalhados pela Europa), a Igreja tentava manipular os reinos a seu favor através da censura, regulações e excomunhões. Os reis e nobres, por sua vez, exerciam o poder local arregimentado pelas relações de vassalagem entre suserano e vassalo. Neste contexto, surgiram os chamados escárnios e chufas, ou seja, críticas direcionadas a uma pessoa ou a grupos de pessoas, seja de forma velada, como nas cantigas de escárnio, seja de forma aberta, como nas cantigas de maldizer.

    Gil Peres Conde é natural de Portugal, tendo estado ativo nas cortes de Afonso X e de Sancho IV de Castela na década de central e finais do século XIII. O trovador tornou-se célebre por ser um dos mais, senão o mais mordaz, nas suas críticas sobre o rei de Castela, que o exilou entre cerca de 1269 e 1286, talvez o ano da sua morte. Quase de certeza, pertencia à alta nobreza, no entanto perdeu o estatuto de «ricomem», ou rico-homem, quando foi exilado em Castela, devido à sua discordância relativamente à deposição de D. Sancho II, tornando-se um mero infanção (antigo título de nobreza inferior ao de rico-homem; escudeiro fidalgo). Gozava, contudo, de algum prestígio, ratificado pelas mercês recebidas do rei, o que mostra uma certa proximidade ao monarca, ainda que crítica. A discordância entre o trovador e o rei é intensificada por dois motivos principais: o poeta ter raízes portuguesas e servir um rei castelhano; e o trovador não receber do rei de Castela os soldos e doações devidas pelos serviços de guerra. As seis composições de Gil Peres Conde presentes no Cancioneiro da Biblioteca Nacional documentam o tema e exemplificam essa tensão entre suserano e vassalo.

    O trovador dirige-se ao rei por meio de uma apóstrofe (“senhor rei”) – provavelmente tratar-se-á de D. Afonso de Castela, que ele servia desde 1249 e que buscou exílio nesse reino, saindo de Portugal depois de Afonso III regressar de Bolonha, com o aval do belicoso Papa Inocêncio IV, para depor seu irmão, então monarca de Portugal, correspondendo ao facto histórico de muitos partidários de D. Sancho II terem sido forçados a refugiar-se noutros reinos depois da sua derrota – para mostrar o seu descontentamento em relação à ingratidão do rei. Qual a razão desse descontentamento? O trovador sempre foi leal ao rei (“que sempre vos guardei”) e sempre o serviu “quer a pé quer de cavalo”, porém jamais foi recompensado por isso (“sen voss’haver e sem dõa”). Porém, ele admite, de imediato, uma falha: não esteve com o monarca em boa hora (“mais atanto vos errei: / nom fui vosco em hora bõa”). Ou seja, no refrão, continuando a dirigir-se ao rei diretamente, conclui, de forma irónica, que se tinha colocado ao seu serviço numa hora menos feliz.

    No início da segunda cobla, o «eu» enumera os locais em que serviu o soberano: em Campou (provavelmente Aguilar de Campoo, localidade situada a norte de Carrión de los Condes, entre a Meseta e o mar Cantábrico), em Olmedo (cidade do sul da província de Valladolid), em Badalhou (Badajoz, cidade da Extremadura espanhola, próxima da fronteira portuguesa de Elvas) e Toledo (cidade e província de Castela – La Mancha, na margem direita do Tejo, capital da Hispânia visigótica e uma das primeiras cidades medievais da Península Ibérica, na qual o rei a quem se dirige foi coroado – “e outrossi em Toledo, / quand[o] i filhaste corõa”). A referência à coroação do monarca em Toledo, cidade onde D. Sandro IV foi coroado, na opinião de Graça Videira Lopes, implica que é a este soberano que o trovador se dirige nesta cantiga (já que o seu pai, Afonso X, foi coroado em Sevilha).

    Na terceira e última estrofe, o «eu» poético afirma que sempre protegeu muito bem o rei em todos os lugares onde andou: “Fostes mui ben aguardado / de mim sempre u vós andastes”. Note-se que a forma verbal «aguardar» é ambígua, pois pode significar «guardar» (proteger, no caso do rei) e «aguardar» (esperar). Quer isto dizer que o trovador guarda (o rei) e aguarda (o pagamento). Além disso, reforça a ideia da sua lealdade ao declarar que nunca recusou servir o rei e que este, por sua vez, nunca recusou os seus serviços. Vocábulos como «sempre», «mui», «nunca», «tanto» enfatizam a servidão leal do sujeito poético. E termina com um “mea culpa”, servil, como se estivesse pedindo uma recompensa pelos serviços prestados, mas não merecesse o favor (ironia), já que “non fui vosco em hora bõa”.

    Nesta cantiga, o trovador relata os serviços prestados ao rei, enfatiza a sua lealdade, a sua servidão, mas finalizando sempre com o reconhecimento da sua culpa, da sua falha. Este estratagema permite que a crítica ao rei seja subtil: ao mesmo tempo que não ameaça a face do monarca, reconhecendo a sua falha, exprime a sua crítica à ingratidão real. Por outro lado, a presente composição poética mostra que a crítica ao poder real se fazia de modo implícito, provavelmente só compreendida pelos recetores da época, graças ao contexto situacional.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Análise da cantiga "A donzela de Biscaia", de Rui Pais de Ribela

    Esta cantiga de cariz satírico, da autoria de Rui Pais de Ribela, é constituída por três coblas, formadas por um dístico seguido de refrão, com rima emparelhada e versos heptassílabos alternando com pentassílabos (no refrão).

    A composição poética, de escárnio, visa uma jovem mulher, uma donzela, natural de Biscaia, um senhorio asturiano, cuja capital era Bilbao, da qual o trovador se queixa por se recusar a encontrar-se consigo: “ainda mi a preito saia / de noit’ou luar”, isto é, nunca saía ao encontro dele de noite, ao luar. Apesar disso, embora desprezado pela donzela, o trovador tenta encontrar estratégias para a possuir, recorrendo a jogos de linguagem.

    Assim, no segundo terceto, volta a enfatizar a ideia de que ela o rejeita ou despreza, o que é recente, como se pode observar pela presença do advérbio de lugar «agora», por isso afirma esperar que nunca o procure, ou seja, a mulher pode acabar por se lhe render ou necessitar dele de alguma forma.

    A terceira estrofe abre com uma anáfora com o verso inicial da anterior que reafirma o seu sentimento de amesquinhamento pelo facto de a donzela o rejeitar constantemente, no entanto mantém a expectativa de a encontrar, de noite, ao luar. Note-se que essa expectativa, por parte do trovador, de se encontrar com a mulher é expressa no refrão, especificamente da segunda e da terceira coblas.

    As referências à noite e ao luar importam para a cantiga um tom malicioso, pois o encontro desejado entre ambos teria lugar nessa altura do dia, propícia a encontros amorosos mais íntimos e recatados, afastados dos olhares alheios. Ou seja, o «eu» poético desdenha da “donzela de Biscaia” por não o querer e confessa o seu desejo de a encontrar de noite ou ao luar.

domingo, 23 de março de 2025

Análise da cantiga "A Dona Maria há soidade"

    Desta cantiga de maldizer, de Lopo Lias, apenas nos chegou uma estrofe, constituída por uma rubrica e uma sextilha. De acordo com a referida epígrafe, a composição poética debruça-se sobre uma mulher casada adúltera, pois “havia preço” com um homem chamado Franco.

    Os dois versos iniciais, exatamente iguais entre si, facto que evidencia a dificuldade de arrumação dos que sobreviveram, que é meramente conjetural, identificam, nomeando-a, o alvo da sátira: Dona Maria, que está cheia de saudade porque perdeu um jogral. A mulher elogiava-o (“dizendo del bem”), porém ele não correspondeu (“e el nom achou / que nenhu preito del fosse mover”), mantendo-se indiferente aos avanços dela. Deste modo, D. Maria nada obteve do jogral – “nem bem nem mal” –, o que acentua essa noção da indiferença masculina e, por outro lado, a deixa profundamente triste.

quarta-feira, 19 de março de 2025

95 vezes MÃE


19.03.2016: os teus 86 anos

    Hoje, seriam 95, mas quis embora mais cedo. Teimosa como sempre, foi.
 

segunda-feira, 17 de março de 2025

Análise da cantiga "Vosso pai na rua", de João de Gaia

    Esta cantiga de seguir contém duas rubricas, uma anterior e outra posterior. Antes de mais, convém esclarecer o que é uma cantiga de seguir: é uma cantiga que «segue», isto é, que toma como base, uma cantiga anterior. A Arte de Trovar distingue três modalidades de seguir: 1) mantendo apenas a música da cantiga primitiva, à qual se adaptam novos versos; 2) mantendo a música e também as rimas da cantiga primitiva; 3) mantendo a música, algumas das rimas e ainda alguns versos ou mesmo o refrão da cantiga primitiva, mas dando a estes ou ao refrão, pelo novo enquadramento, um outro sentido.

    A rubrica anterior faz referência a uma cantiga de vilão, ou seja, um poema que satiriza um vilão, uma personagem de baixa condição social (“Diz ua cantiga de vilão”), concretamente a uma passagem da mesma, que faz referência a um “corpo probo” (corpo honrado e virtuoso) que dança aos pés de uma torre. Tratar-se-á de mero momento narrativo ou de uma crítica à tentativa de a figura que dança (um vilão?) se comportar de maneira nobre ou refinada, ao dançar, algo que pode ser encarado como ridículo.

    A segunda frase da citação da cantiga de vilão apostrofa um cavaleiro, procurando, através do apelo ao visualismo, chamar a sua atenção para o «cós», isto é, o corpo que dança. Terminada a citação, segue-se um nome que fica incompleto (“E Joam de…”), provavelmente o da figura satirizada pela cantiga de escárnio e maldizer de João de Gaia.

    A rubrica posterior que acompanha o poema em análise fornece o contexto sobre a sua composição e o seu alvo, ou seja, esclarece a quem se destina a sátira e as circunstâncias que envolvem o vilão que é o foco da crítica.

    Assim, a rubrica começa por explicar que a cantiga “seguiu Joam de Gaia per aquela de cima de vilãaos”, ou seja, o trovador utilizou (seguiu) a música e, como é referido na rubrica, o refrão de uma cantiga de vilão (citada de forma mais completa na rubrica que antecede a composição).

    De seguida, clarifica o contexto em que João de Gaia o fez: tratava-se de ridicularizar um ex-vilão, alfaiate de profissão, feito cavaleiro por D. Dinis, a pedido do seu protetor, o bispo de Lisboa: “E feze-a a um vilão que foi alfaiate do bispo Dom Domingos jardo de Lixbôa e havia nome Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome o bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante si de cozinha e talhar ant’el; e feze-o el-rei Dom Denis cavaleiro; e depois morou na freguesia de San Nicolau e chamaram-lhi Joam Fernandes de Sam Nicolao.”

    Domingos Anes Jardo foi o bispo de Lisboa entre 1289 e 1293, ano da sua morte. Antes de assumir o bispado da capital do reino, D. Domingos foi bispo de Évora, e provavelmente perceptor de D. Dinis, de quem se tornou, posteriormente, chanceler-mor. Além disso, fundou um hospital para os pobres em Lisboa, na freguesia de S. Bartolomeu, em 1284, e terá desempenhado também um papel importante na fundação da universidade portuguesa. Era natural de Jardo, lugar nos arredores de Lisboa, entre as atuais freguesias de Agualva e Cacém.

    O vilão, por sua vez, inicialmente chamava-se Vicente Domingues; depois o bispo alterou-o para Joam Fernandes e, por último, após D. Dinis o ter ordenado cavaleiro, para Joam Fernandes de Sam Nicolao. Em rigor, nada se sabe sobre esta figura burguesa lisboeta, alfaiate do bispo D. Domingos Jardo, e feito cavaleiro por D. Dinis. Um indivíduo de nome João Fernandes, escudeiro, fazia parte da casa do rei, enquanto infante, mas, tendo em conta as informações da rubrica acerca da mudança de nome (de Vicente Domingues para João Fernandes, não deverá tratar-se da mesma personagem.

    A cantiga de João de Gaia, feita em «honra» do antigo alfaiate, é extremamente irónica: como mandavam as regras deste tipo de cantiga de seguir, o refrão deveria assumir outro sentido em contacto com estrofes diferentes. Assim, as expressões «em cós» e «cavaleiro», que na cantiga original aludiriam a uma qualquer cena de sedução feminina, passam a aludir, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado (cavaleiro).

    O verso inicial da cantiga de João de Gaia (“Vosso pai na rua”) alude à família do visado, claramente um vilão (filho de um homem “da rua”). O segundo verso (“ant’a porta sua”) remete para o facto de os alfaiates trabalharem, regra geral, na soleira das suas casas. O refrão (“Vede-lo cós, ai cavaleiro!”), como já foi referido, alude, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado pela sátira (cavaleiro).

    As duas estrofes seguintes colocam a figura satirizada “Ant’a sa pousada / em saia / pertada” e “Em meio da praça, / em saia de baraça”, isto é, à porta de casa e num local público. Em ambos os casos, o foco da sátira centra-se no vestuário que enverga uma saia apertada, ridicularizando-se, assim, a sua aparência (e sexualidade?). O alvo é criticado por estar inadequada e ridiculamente vestido, sendo visado o seu comportamento, que não estaria à altura do comportamento esperado de alguém da sua condição.

NOTAS
 
1. As cantigas de vilão não foram compiladas nos cancioneiros da poesia trovadoresca que conhecemos. Porém, a rubrica desta cantiga atesta a sua existência, bem como o trânsito de motivos poéticos entre a rua e o paço. João de Gaia “segue a cantiga de vilão” aproveitando-se de parte do que parece ser os eu refrão. A segunda rubrica esclarece o sucedido: um alfaiate feito cavaleiro em resposta a um pedido do bispo de Lisboa. Com isso, até muda de nome. O acontecimento e o remoque revelam a possibilidade de mobilidade social e a reação jocosa do segmento social “inchado”, o dos cavaleiros.
 
2. Excluindo-se o refrão, porém, a cantiga só reporta as circunstâncias de exercício de um ofício: o de alfaiate. Ele confeciona e conserta roupas em frente à sua casa, diante ou no meio da praça. É o refrão (seguido da cantiga de vilão) que promove a sátira na medida em que aproxima mundos que apareciam separados. Nascida na rua, a cantiga migra para o paço para reportar de forma jocosa uma alteração social promovida pelo rei. Mas não ri do rei, ri de quem, mesmo mudado, não pode esconder a própria origem.
 
3. João de Gaia incorpora na sua cantiga o refrão da cantiga de vilão, embora com um sentido diferente.
 
4. A cantiga original cujos versos a rubrica que antecede o texto de João de Gaia transcreve parece ser dita em voz feminina (ou, pelo menos, o seu refrão), que se dirige a um cavaleiro (“Vedes o cós, ai, cavaleiro”). Pelo que nos mostra este fragmento da cantiga, haveria, pois, cantigas populares (de vilãos ou vilãs) ditas em voz feminina.
 
5. A Arte de Trovar apresenta a seguinte definição geral das cantigas de seguir: “Outra maneira há i em que trobam do[u]s homens e que chamam seguir; e chamam-lhe assi porque convém de seguir cada um outra cantiga, a som ou em p[alav]ras ou em todo.” Assim, segundo esta definição, temos “dois homens”, os quais “seguem” «cada um outra cantiga». “Seguir outra cantiga” significa o seguinte: os trovadores servem-se de uma cantiga anterior para fazer uma nova cantiga.
 
6. Esta cantiga é uma sátira contra um vilão, antigo alfaiate elevado pelo rei (e por interferência do bispo) à categoria de cavaleiro. João de Gaia retoma, pois, uma anterior cantiga de vilãos, conservando não só a música e as imas (ao que se supõe), mas também o refrão, e modificando, ao mesmo tempo, o corpo das estrofes. Do conjunto resulta que, do sentido mais ou menos erótico que esse refrão teria na primitiva cantiga, se passa para uma alusão clara tanto à antiga profissão do visado (“Vedes o cós”), como à sua recente promoção (“ai, cavaleiro!”). Ou seja, como diz a Arte de Trovar, o refrão ganha “outro entendimento por aquelas palavras mesmas”.

sexta-feira, 14 de março de 2025

Cena icónica de Aconteceu no Oeste

Cena icónica
 

    Esta fotografia a preto e branco dos bastidores de Era uma Vez no Oeste (1968) transporta-nos de volta à magia da realização cinematográfica. Sob um arco de tijolos envelhecido, o diretor de produção Claudio Mancini assume o papel do irmão mais velho de Harmónica, dando vida a um dos momentos mais inquietantes do filme. Era o início de agosto de 1968, e a equipa trabalhava entre Monument Valley e Mexican Hat, no Utah, captando um flashback que definiria para sempre os temas de dor e vingança da obra.

    Na imagem, um membro da equipa segura a claquete, com Era uma Vez no Oeste escrito, marcando mais uma tomada desta cena inesquecível. Cada detalhe, desde as vastas paisagens até à forma como Sergio Leone enquadrava cada plano, transformou esta sequência em pura poesia cinematográfica. E, claro, a banda sonora assombrosa de Ennio Morricone garantiu que a cena permanecesse connosco muito depois do final dos créditos.

(c) Fãs de Spaghetti Western

terça-feira, 11 de março de 2025

Análise do poema "Vita mutatur", de Ruy Belo

    Este poema, da autoria de Ruy Belo, está incluído na secção “Tempo” do seu primeiro livro, AGRE, r tem como tema a mudança. O título, em latim, significa “vida mudada” e remete exatamente para a questão da mudança, neste caso, duas: uma que já aconteceu e que se relaciona com a problemática da separação e outra que está a começar a acontecer e que designa o começo de uma vida dedicada à escrita da poesia.

    O sujeito poético dirige-se a um «tu», a um interlocutor indeterminada (“Caíste”), que designa também, por implicação, uma versão passada / infantil do «eu». Ora, esse «tu» caiu na “orla” do sujeito, isto é, adquiriu uma posição horizontal, posição de morto. O nome “orla” significa limite ou fronteira, o limiar entre o «eu e o «tu», enquanto o verbo «cair» indica uma aproximação involuntária de alguém. Essa queda ou morto do «outro» equivale à morte do sujeito nele (“nunca até hoje eu morrera tanto em alguém”), o que implica uma identificação entre o «eu» e o «tu», estando assim em causa, nessa morte, a morte ou perda de uma versão passada do sujeito. Além disso, ela é associada, através de uma comparação com “a nespereira do quintal”: a queda da figura humana é mais intensa e impactante do que a da árvore.

    O “paul de malmequeres” cria uma imagem de um pântano ou charco cheio dessas flores, um espaço onde os ralos faziam ecoar seus sons na noite, como uma espécie de mantra natural que reforça a passagem do tempo. A ideia de repetição indicia uma espécie de perpetuação do canto, da melancolia ou da saudade. No paul, figuravam também os «abibes», aves migratórias que carregam consigo o tempo e as mudanças das estações, representando ciclos de renovação e retorno. Mesmo com a passagem do tempo, há algo que permanece e que se repete ou renova ciclicamente, ao contrário do que sucede com o sujeito poético., que sofreu a mudança. Os malmequeres são flores frequentemente associadas ao destino e ao amor (recorde-se o famoso jogo de arrancar pétalas – “bem-me-quer, mal-me-quer”), o que pode apontar para a noção de um amor que persiste, mesmo no contexto da dor e da ausência. A natureza não acompanha a secura do luto, pois permanece fértil.

    Observe-se que a primeira mudança antes referida está dependente da morte graduada presente no verso inicial do poema. De facto, no seu prefácio à segunda edição de AGRE, Ruy Belo afirma que, apesar de sempre ter vivido em crise, estava a atravessar uma crise profunda quando escreveu os poemas que constituem a obra. Neste contexto, o «agora» a que se refere o verso 17 equivale à fase da crise profunda, que, por sua vez, se relaciona com a decisão de entrega total à arte poética. De acordo com as palavras do próprio Ruy Belo, essa crise tem como tema limite “o da solidão no meio da cidade: o do homem que não dispõe de «ombro para o seu ombro», que tem o «destino da onda anónima morta na praia» (…) que «vai só», que «não tem ninguém».” A crise, de acordo com o próprio poeta, relaciona-se, portanto, com o distanciamento ou a queda de um “amigo”, e que se torna ausente para o sujeito. O «tu» será, por conseguinte, o “ombro para o seu ombro” de que não se dispõe.

    O período em que estava mais vivo no interlocutor relaciona-se com o período da infância do sujeito poético. De facto, a sua morte ou queda representa a perda de algo que se teve na infância, como se depreende dos seguintes versos: “O mesmo céu que tu me desdobraste sobre a infância / acaba de depor na tua fronte / o peso excessivo de uma estrela”). A partir desse instante, o céu, que ele desdobrava sobre a infância do sujeito, foi-se tornando cada vez mais distante, adquirindo no presente o peso de um passado inacessível (“excessivo peso de uma estrela”). A queda (agora mais definitiva) de um ser provocou uma descontinuidade temporal.

    A partida do amigo faz com que a história recomece, ou que o sujeito poético se separe de uma versão passada de si próprio (quando era um só com “amigo”). Deste modo, estamos perante um cenário em que o «eu» se esqueceu de um passado (que, por isso, deixa de ter uma função identitária), ou, se quisermos, estamos na presença de um «eu» passado que morreu. Deste modo, o passado torna-se inacessível, passa a ser um “outro mundo”, como afirma no poema “As velas da memória”. São estas ideias que encontramos nos versos seguintes: “Com a tua partida a minha história começa / a escrever-se para além da curva / onde à tarde rompia a camioneta das cinco: / nenhum outro veículo vinha / tão cheio de longe e de tempo”.

    Estes versos abrem a porta para a segunda mudança. De facto, a partida do «tu» parece originar ou, pelo menos, servir de base à segunda mudança na vida do sujeito poético. Ora, esses versos têm uma dupla função: por um lado, apontam para a descontinuidade temporal que faz do passado uma outra vida; por outro, remetem para a inauguração de uma nova vida: “(…) a minha história começa / a escrever-se (…)”.

    De acordo com a terceira estrofe, a queda do «tu» é representada por meio da perda de um «poder» que está relacionado com a unificação de um rosto / identidade: “Não mais o teu olhar te defende”; “já a tua presença não reúne / as linhas divididas desse rosto / que essas humildes coisas tinham.” Esse «poder» é também da versão passada do sujeito poético, quando estava mais vivo no «outro», isto é, quando dispunha de um “ombro para o seu ombro”. Sem ele, fica circunscrito à condição física e à identidade civil: “Tens finalmente aquele metro e oitenta / a que te circunscreviam civilmente”.

    As pálpebras descidas remetem para o fechar dos olhos, para a queda, para a morte, e deixam-no sem defesa, sem poder. O uso do advérbio «agora» sugere um contraste definitivo com um outro tempo, um passado. O olhar, frequentemente associado à identidade, à comunicação e à defesa simbólica do mundo, já não protege o sujeito, o que sugere vulnerabilidade. A queda, a morte, deixa o «eu» totalmente exposto aos olhares alheios, sem qualquer resguarda. Além disso, reduzido à materialidade do corpo, perde o mistério que o caracterizava. A vida, antes complexa e prenhe de nuances, reduziu-se agora a algo simples e inalterável. Por outro lado, a partida foi sinónimo de desarranjo e desordem. A imagem das gavetas abertas e da secretária desordenada sugerem que a pessoa partiu de forma repentina, sem tempo para arrumar os seus pertences. As gavetas abertas simbolizam segredos, objetos, memórias que continha, revelados.

    A presença do «outro» dava sentido e unidade às coisas, incluindo o próprio rosto, que agora parece fragmentado. A sombra, que representa a extensão do corpo no espaço sob o efeito da luz, já não está lá para envolver os pequenos segredos da vida quotidiana. A expressão “humildes coisas” indicia um quotidiano simples, talvez um espaço doméstico, onde tudo girava em torno do «tu». A sua partida é assinalada pela ausência da sua sombra: se esta acompanha o corpo, o físico, e já não está presente, quer dizer que o «tu» está ausente. No quotidiano, havia pequenas intimidades e histórias (“domésticos e ínfimos segredos”) que lhe pertenciam. Com a sua ausência, eles tornam-se irrelevantes ou são dissipados.

    Com a partida e consequente ausência do «outro», fica reduzido à sua condição física e à identidade civil: “Tens finalmente aquele metro e oitenta / a que te circunscreviam civilmente”. O «eu», antes repleta de complexidade e experiências, fica reduzido a um dado físico e civil. É a única dimensão que lhe resta.

    A derradeira estrofe do poema aponta para o futuro, propondo uma nova forma de vida, na e pela poesia, que resulta do aumento da morte do «amigo». Assim sendo, a poesia constitui um modo de lidar com a separação. No entanto, a estrofe apresenta um dado curioso: levar mais longe a vida do «amigo» perdido (e, por implicação, do próprio sujeito poético sucede estendendo a sua morte pela terra: “Levarei mais longe a tua vida e cobrirei / da tua morte um pouco mais de terra”. A separação do «eu» em relação a algo perdido aparece muitas vezes associada à mudança da posição vertical para a horizontal, ou seja, a figura do «tu» que se perdeu deixa de estar de pé e dispersa-se pelas coisas. A poesia de Ruy Belo constitui uma forma de procurar o «amigo» em lugares diversos através da poesia.

    No entanto, a solução proposta não vai no sentido de recuperar o que se perdeu ou reverter a situação, mas precisamente no sentido de aumentar a separação. Deste modo, podemos concluir que a solução que a poesia possibilita para o problema da separação está na própria separação, isto é, a doença cura-se pela própria doença.

    Em suma, a solução tem a ver com uma ficção de morte ou com a invenção de uma forma de vida além da morte. A poesia constitui uma vida depois de uma morte. Assim sendo, pode aplicar-se, neste contexto, o aproveitamento do lema bíblico por parte do poeta: “Vita mutatur non tollitur”, isto é, vida mudada, não acabada.

    Por outro lado, é visível uma cisão entre o sujeito e um “objeto perdido” / ”amigo” (e, por implicação, o mundo), que parte de uma fissão interior. Com efeito, a poesia de Ruy Belo é uma incessante reflexão sobre o tempo e a morte “e a certa identidade do sujeito que em vão procura o lugar originário onde encontraria o ser na sua totalidade”. Por outro lado, dado que o que se perdeu faz parte de um passado inacessível, o sujeito poético caracteriza-se por uma condição tardia que faz com que não se consiga situar em relação ao passado (isto é, encontrar a casa, habitação, estabilidade, etc.).

sábado, 8 de março de 2025

Na aula (LIII): o humano sem cromossomas

  • Contexto: análise do episódio das Despedidas em Belém (Os Lusíadas). A conversa resvala para a genética.
  • Professor: Todos temos cromossomas...
  • Voz do fundo da sala (como de costume): Não, eu não tenho nada disso.
  • Conclusão: isso explicaria «tudo».
Gonçalo M.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Análise da cantiga "Airas Moniz, o zevrom", de Lopo Lias

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, constituída por três sétimas (um terceto seguido do refrão em forma de quadra) pertence ao ciclo de 12 composições poéticas que Lopo Lias dedicou aos quatro infanções de Lemos, a primeira das quais se intitula “Da esteira vermelha cantarei”.

    O poema identifica o alvo da sátira de forma “descoberta”, isto é, nomeando-o: “Airas Moniz”. Não obstante, trata-se de uma figura de difícil identificação, já que não se sabe nada dele e o nome era bastante comum na época. Uma hipótese levantada passa por considerar que se trata do trovador Airas Moniz de Asma, aparentemente contemporâneo de D. Lopo Lias, porém trata-se, de facto, de mera conjetura. Ainda no verso 11, o sujeito poético apelida-o de «zevrom» (de «zevro», cavalo selvagem), portanto caracteriza-o como um indivíduo bruto e selvagem. De facto, «zevrão» é o aumentativo disfémico cde «zevro», onagro, cavalo selvagem, conhecido pela sua grande velocidade. Em sentido figurado, significa “homem grosseiro, bruto, impetuoso, asselvajado”, tudo qualificativos que se aplicam na perfeição ao alvo do texto. Por outro lado, o indivíduo monta a cavalo e usa uma almofada (“selegom”) a servir de sela, e o trovador parece aconselhá-lo a abandonar esse “selegom” e a voltar a usar a albarda reles, ou seja, aconselha-o a passar de cavalo para burro. Dessa forma, ficará mais confortável.

    De seguida, aconselha também a que estique a correia que envolve o peito do animal (“Tolhede-lh’o peitoral” – v. 8) e aperte a correia que envolve as ancas do bicho, para segurar o aparelho. Por outro lado, Airas Moniz poderá praticar o bafordo, isto é, exercitar as suas armas, e o “tavlado”, ou seja, quebrar um alvo de madeira, a finalidade do jogo do “tavlado” ou “tavolado”.

    A cantiga, em suma, satiriza os adereços usados pelo infanção, nomeadamente a sua sela decrépita, sinal de pobreza ou avareza, bem como do seu caráter selvagem.

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