Português

domingo, 22 de outubro de 2084

Professor

     "Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais." 

Rubem Alves

sábado, 9 de agosto de 2025

Resumo do conto "Mantença inteira"

    O conto gira em torno de Maneca Gouveia, um homem de origens humildes, mas muito perspicaz e dotado de humor refinado. O seu discurso está recheado de frases espirituosas e ditos memoráveis, como os seguintes: "Enchei a barriga, nem que seja de ramalhos, pois o gosto só está na boca."; "Com o vinho, os homens não perdem o juízo, perdem é a vergonha.".
    Maneca era conhecido entre familiares e amigos pelos chistes inesperados e pela subtileza do humor, muitas vezes subversivo e irónico. Em determinado momento, após perder dinheiro apostado na ceifa, ele observa um frasco que a mulher guardava e, sem mais nem menos, quebra-o intencionalmente contra uma laje. Uma das atividades centrais entre os povos da raia é o contrabando, bem como a travessia clandestina de pessoas para o outro lado da fronteira, as quais exigem perícia e ludíbrio das autoridades, muitas vezes através do suborno, que lhes abre portas e sustenta a sua reputação. As cargas de contrabando mencionadas no texto são de café, pesando cada saco quatro arrobas, armazenados e escondidos, prontos para serem transportados de modo sigiloso pelas estradas ou trilhos que evitam a fiscalização dos polícias.
    Maneca anuncia que vai partir para Pitorino, também chamado Ituero de Azaba, um povoado vizinho em Castela, junto à ribeira Azaba. Ele e a esposa deslocam-se para lá uma vez por ano, por alturas de novembro, regressando após as primeiras neves, perto do Natal, fixando-se numa casinha alugada por algumas pesetas, onde oferecem serviços de calçado aos habitantes locais. O seu ofício de artesão (tamanqueiro) começa com o corte do couro, usando moldes de cartão, e a montagem com pregos de cabeça chata num bastão de amieiro, formando o "cabeçal", recortado em "quadras de Lua". Ele trabalha sem ferramentas sofisticadas, socorrendo-se apenas de tesoura, cutelo, navalha, martelo e um banco. Durante diversos dias, do nascer ao pôr do sol, fabrica tamancos sem parar, pressionado pelas solicitações da população, que exigia novos pares para a festa de Santa Bárbara.
    No dia 5 de dezembro, data da festividade, homens e mulheres têm os seus tamancos prontos. O tamanqueiro, seguindo o costume, acorda cedo com o som dos foguetes anunciando o início da festa. Depois da missa, dirigem-se ao adro e assistem à arrematação dos roscones, após o que o povo se dispersa: os homens vão à taberna e as mulheres voltam ao seu universo doméstico. À tarde, Gouveia e o amigo Martín encontram-se na venda do Constantino, entretendo-se até à chegada da noite. Após o último trago e já saciados, o espanhol convida o tamanqueiro para sua casa. Aí, Martín acolhe-o junto ao lume, oferece-lhe um barranhão de tremoços e diz-lhe que o lume é "meia mantença".
    Gouveia e a mulher regressam a casa, não sem antes convidar Martín a visitá-lo por alturas do Santo António. Depois de assistirem à tourada, já de noite e com o frio a apertar, vão para casa de tamanqueiro. Lá, este acende o lume da lareira e, de propósito, acende também um segundo lume na cozinha. De seguida, oferece a Martín um barranhão de tremoços, repetindo a frase, adaptada, que o amigo lhe tinha dito quando o recebera em casa: "Coge tchotchos, amigo Martín!... que una lumbre es media mantenza, pero dos son mantenza entera!". Ou seja, o tamanqueiro acrescentara ao lume um segundo fogo para completar a "mantença inteira", pagando dessa forma a hospitalidade recebida em dezembro: "Cá se fazem, cá se pagam."

Coimbra tem um rácio de médicos 70 vezes superior aos concelhos com maiores carências

medicina

 (c) Página 1

Resumo do conto "Um lenço bordado"

    Um pai e um filho aguardam, escondidos, a chegada de um veículo que transporta homens importantes, diferentes dos locais, para serem passados a salto para Espanha.
    O trecho seguinte do texto - que oscila entre dois tempos, um passado e o presente - apresenta-nos o povo da localidade, envergando trajes de festa para receber uma ilustre personalidade que passará pela região.
    O menino, curioso, observa as estrelas e conta paralelepípedos, até que acaba por adormecer. Ao ouvir um motor, o pai acorda-o, e ambos veem o táxi com os cinco passageiros, que descem e são rapidamente conduzidos para longe da estrada. O clima muda, anunciando uma tempestade que se aproxima, e todos se refugiam numa loja. Entre os recém-chegados conta-se um casal distinto. Durante a tempestade, o homem dialoga com a criança, explicando que se encontra em fuga, porque há pessoas que lhe querem mal por pensar diferente. Quando a chuva passa, o grupo parte, guiado pelo "passador", um contrabandista conhecedor das passagens fronteiriças e com contactos do outro lado da fronteira. O homem promete à criança regressar um dia para ajudar outras como ele e dá-lhe um lenço branco com duas letras encarnadas bordadas como lembrança.
    O trecho final centra-se de novo no presente. Na estrada, a população aguarda, ansiosa, a comitiva. Quando finalmente chegam carros de luxo, um homem surge à janela de um deles e acena. Um jovem acerca-se dele e oferece-lhe um lenço branco com duas letras encarnadas bordadas, esclarecendo que o faz para que se lembrasse dele.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Resumo do conto "No casino de Ledesma"

    Este conto narra um episódio protagonizado por António, um contrabandista raiano português, em terras espanholas.
    O texto inicia-se com a chegada de um guarda-civil à pousada onde António está a comer. A presença da polícia deixa-o inquieto e desconfiado. O sargento, depois de perguntar por ele ao estalajadeiro, aproxima-se da mesa e chama-o pelo nome, deixando-o atordoado e alarmado. Como poderia aquele homem saber quem ele era?
    O guarda pergunta-lhe se é galego ou português, ao que António responde ser galego, procurando evitar problemas. O sargento tenta saber o que está ali a fazer. António responde que procura trabalho, porém a resposta não convence o polícia, que continua a insistir e lhe faz um aviso misterioso ("Si llevas café al casino, no lleves más de cinco kilos."), que indicia que foi denunciado e que os guardas conhecem as suas atividades de contrabando. O aviso tem toda a aparência de uma tentativa de proteção elada. António fica perplexo, mas finge normalidade, tentando recuperar o apetite enquanto o sargento desaparece por uma porta da estalagem.
    À noite, cinco contrabandistas dirigem-se ao pátio do casino, onde entregam as suas cargas, presumivelmente de café. São recebidos por um funcionário, enquanto António, curioso, observa por uma pequena janela um homem a manusear notas sob vigilância armada, o que indicia a operação ilegal que ocorre no interior do casino. António tenta compreender o aviso que o sargento lhe fizera, enquanto observa outro homem que entra, fala com o funcionário e faz uma chamada telefónica. No pátio, cansados, os contrabandistas descansam e adormecem.
    Um portão abre-se com estrondo. Um grupo de guardas entra no pátio, depois da filha do estalajadeiro os ter informado que chegou à cidade um grupo de portugueses suspeito de contrabando. Um sargento interrogara-a e descobrira que um deles se chama António e que traziam café. Embora a rapariga não soubesse o destino final da mercadoria, um vendedor afirmou que o café ia para o casino. O carabineiro reagiu com inquietação, percebendo que os portugueses estavam em risco. O sargento, embora angustiado pela sua origem portuguesa, reúne cinco homens e parte em direção ao casino, preparando-se para agir com firmeza, norteado pelo dever.
    Os contrabandistas atravessam a ponte romana de Salamanca e encaminham-se para uma venda escondida numa ruela, na qual são recebidos por um homem que os reconhece lhes oferece sedas para contrabandear, em substituição do café. António aceita.
    O conto termina com o protagonista a soprar três vezes o caldo antes de o comer, o que simboliza um breve momento de alívio antes de dar continuidade à vida arriscada do contrabando.

Resumo do conto "Quarenta e dois dias e quarenta e duas noites"

    Um pai dá uma moeda de vinte e cinco tostões para comprar doces, aparentando normalidade, enquanto se prepara para partir, levado por homens num carro. Em Vilar Formoso, o subchefe informa-o que será levado para Coimbra e dá-lhe conselhos como se comportar aí.
    Chegado à cidade dos estudantes, é brutalmente interrogado, sendo sujeito a tortura física, após a qual é conduzido para um calabouço subterrâneo, um local escuro onde passará quarenta e dois dias e quarenta e duas noites. O prisioneiro permanece em silêncio, tentando dormir. Passado algum tempo, é novamente retirado da cela e interrogado, mas continua a não responder, pelo que é acusado de se fazer passar por valente e é ameaçado com mais agressões. Cinco homens cercam-no e começam a espancá-lo intensamente, como se ele não passasse de um saco de pancada para pugilistas.
    A descrição da violência que é exercida sobre ele é profundamente gráfica: o rosto incha, o sangue escorre, cambaleia, quase perde a consciência. Até dos ouvidos sai sangue. Mesmo sujeito a tão extrema violência, o protagonista resiste. Um dos cinco torturadores exige que confesse, ameaçando mesmo matá-lo, porém ele continua a insistir que não conhece os homens de que falam e que nada tem a ver com qualquer negociação ou conspiração. O espancamento só termina quando o chefe manda parar.
    Alguns dias depois, é levando novamente à sala de interrogatório, onde se encontra outro detido. Perguntam-lhe se conhece o outro homem e a resposta é negativa. O interrogador volta-se então para o outro prisioneiro, repetindo a pergunta. Este, completamente debilitado por sucessivos espancamentos brutais, diz que conhece o protagonista e recorda-lhe os homens que passaram para Espanha, mas ele nega. Perante a continuação da negação dos factos que desejam que confesse, segue-se nova cena de violência, marcada por mais um espancamento, tão intenso que chega a perder a consciência.
    Horas depois, desperta, com dificuldade para abrir os olhos e com o corpo coberto de equimoses e inchaços. Lentamente, tenta recuperar-se, levanta-se com esforço e vai para o chuveiro. Enquanto isso, os agentes torturadores observam-no secretamente por trás de um espelho falso. Quando se apercebem de que não toma banho, um deles confronta-o com agressividade, gritando que a água custa dinheiro e ameaça-o de que, se não se banhar, o matará. Mesmo perante esta ameaça, o protagonista não cede e responde que lhe é indiferente morrer naquele dia ou no seguinte.
    Com o corpo entregue e o olhar perdido, parece ver uma nuvem negra de aves necrófagas, uma metáfora da aproximação da morte. Os agentes atiram-no para a tarimba e deixam-no aí. De seguida, entra num sono profundo e, no meio da escuridão, surge uma luz intensa. Uma figura angelical surge e aproxima-se dele. Toca-o e ele sente-se envolvido por uma sensação de felicidade celestial. De mãos dadas, partem juntos, simbolizando a sua morte e libertação espiritual. Sobre a tarimba, uma moeda de vinte e cinco tostões brilha e transforma-se em pó, o que simboliza a transitoriedade da vida e o valor efémero das coisas materiais perante a morte.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Resumo do conto "Bento, o curandeiro"

     O conto tem como personagem central Bento, um homem magro, de estatura média e aparência frágil, que vive num remoto povoado nas margens do rio Côa. Desde os sete anos, após o falecimento do pai, era pastor, pastoreando cabras na companhia de Lobato, o seu cão. Foi nesse ambiente de carência e solidão que cresceu, nunca tendo frequentado a catequese ou a escola.
    A sua comunicação com os outros seres humanos era muito difícil, o que contrastava com o modo fácil como se entendia com os animais. Raramente sorria e tinha um olhar opaco e vazio, como se carregasse o peso do mundo nos olhos. Não obstante a sua forma de ser, Bento era, na realidade, um homem bondoso, sendo procurado por várias pessoas da aldeia e das redondezas, nomeadamente por quem sofria de doenças persistentes ou se sentia vítima de mau-olhado ou feitiçaria.
    Este facto reforça a crença popular de que Bento possuía um dom, citando-se o exemplo de um menino que chorou três vezes dentro do ventre da mãe e, após ser curado pelo curandeiro, tal episódio foi percecionado como sinal do seu poder de adivinhação e cura. Alude-se ainda ao pormenor de Bento possuir uma cicatriz em forma de cruz no céu da boca desde bebé, após um episódio de alergia aftosa.
    O narrador revela que conheceu o protagonista em 1949, ano em que a sua mãe, já sem saber o que fazer para tratar a doença, decidiu recorrer a Bento, por sugestão de uma prima. O padre Cristóbal, informado da situação, sugeriu que embebesse um ramo de oliveira em água benta e benzesse o filho. Se houvesse uma reação agressiva, era sinónimo de que a criança estava possuída ou sob o efeito de feitiçaria; se não, o problema seria físico, pelo que deveria consultar um médico. Apesar de algum ceticismo, a mãe acabou por o levar a Bento, após o que as febres passaram, mas, na véspera do Dia de Finados, à meia-noite, a criança afirma ter visto a silhueta de uma mulher aos pés da sua cama. Ti Maria do Rosário, uma vizinha, recomenda uma consulta com o curandeiro.
    A mãe prepara o jumento e, ao amanhecer de uma terça-feira de 1949, partem rumo à aldeia onde Bento mora. No caminho, param numa igreja para se abastecer de água, prosseguindo depois para Castelo Bom. À sua chegada, encontram uma multidão de pessoas, muitas com galinhas, chouriças, morcelas e farinheiras, uma forma de pagamento ao curandeiro. Bento chega já de noite e começa a atender quem o quer consultar, enquanto a mãe e o filho se abrigam na cozinha. Já é bem tarde quando o casal que os antecedia é chamado. A mulher, exausta, adormece encostada à chaminé. Após a última consulta, o curandeiro declara-se esgotado, aconselha que pernoitem no palheiro e regressem na semana seguinte.
    Aquando da segunda visita, Bento aparece novamente ao anoitecer. Quando chega a vez de atender o narrador, este sente uma dor no estômago e o coração começa a bater mais depressa, mostrando todo o seu nervosismo. Todavia, apesar da longa espera, o curandeiro não o chama, pois acaba por dar prioridade a um homem que aparenta estar possuído, retorcendo os olhos e espumando pela boca. O atendimento é muito demorado e, com o passar das horas, o narrador e a mãe adormecem de cansaço, enrolados no xaile junto à chaminé. Acabam por ser despertados por uma mulher que está de saída, porém já é muito tarde e não resta ninguém na cozinha. Bento, mais uma vez exausto, volta a não os atender e sugere de novo que pernoitem no palheiro e regressem na semana seguinte. A mãe do narrador revolta-se, acreditando que o curandeiro está a zombar deles por não levarem qualquer oferta como as outras pessoas.
    Em seguida, o narrador relata que, a pedido da Ti Maria do Rosário, resolve finalmente perguntar à mulher que frequentemente vê aos pés da cama se ela é desta mundo ou do outro e o que deseja dele. Assim, na sexta-feira seguinte, o narrador aguarda a aparição para a questionar, contudo adormece sem querer. Quando desperta, sente um frio gélido no rosto e avista a mulher, silenciosa, aos pés da cama. Ele questiona-a, mas ela não responde. No dia seguinte, conta à mãe e à vizinha o episódio. Na noite desse dia, tem uma visão mais nítida: a figura é jovem, apresenta uma das faces em carne viva e um ferimento que se estende até o pescoço. Além disso, tem o ventre dilatado, como se esteja grávida, e tem uma mão sobre ele, enquanto chora silenciosamente.
    Ao saber do sucedido, Ti Maria do Rosário diz que se trata de Cremilde, uma jovem do seu tempo que perdeu o primeiro filho, falecido ao nascer com o cordão umbilical enrolado no pescoço, e nunca mais conseguiu engravidar. A partir desse momento, enlouqueceu: passava os dias a lavar-sena ribeira, chorava, colhia ramos de giesta, amarrava-os ao ventre e voltava ao povoado com as mãos coladas à barriga e um sorriso desfigurado e perturbador. Um dia, ao adormecer, foi atacada por um lobo, que a matou, deixando o corpo esfacelado de cima a baixo. Na noite em que esta história é contada, regressa a febre do narrador, que começa a delirar, invocando o nome «Cremilde» repetidamente e descrevendo, em transe, o que aconteceu com o bebé.
    Na manhã seguinte, a mãe pede à vizinha uma carroça, onde acomoda o filho com palha e uma manta, e os dois partem em direção à casa de Bento. Este chega ao entardecer, entrega as cabras à ordenha, lava as mãos com sabão de banha de porco como de costume e recebe o narrador e a mãe. No quarto, pede à criança que abra a boca e mostra à progenitora a cruz gravada no céu da boca do filho.
    Três dias depois, Ti Maria do Rosário, aflita, pede ajuda à mãe do narrador, pois a sobrinha, Ermelinda, está prestes a dar à luz, mas o parto está complicado. Os dois vão até lá, e o narrador pede que todas as mulheres saiam do quarto e o deixem a sós com a parturiente. De seguida, lava as mãos e coloca-as sobre o ventre de Ermelinda, sem lhe tocar, tal como vira Bento fazer aquando da primeira tentativa de consulta. O rapaz sente o calor concentrar-se na ponta dos dedos e começa a fazer movimentos circulares, no sentido dos ponteiros do relógio. O calor aumenta, e o narrador transpira intensamente, enquanto uma sensação semelhante a um formigueiro toma conta do seu corpo. Ermelinda sente o bebé a rodar dentro do ventre, mudando para a posição de cabeça para baixo, pronto para nascer. As parteiras são chamadas e o parto corre normalmente.
    Na noite anterior, Cremilde tinha aparecido ao narrador pela última vez: ela vagava pelo quarto, com as mãos sobre o ventre grávido, chorando em silêncio. Em determinado momento, deteve-se aos pés da cama, fez movimentos circulares com as mãos no sentido dos ponteiros do relógio, sorriu-lhe e desapareceu para sempre. No entanto, começou a ser visitado por outras figuras, que lhe revelam o que está por vir e o que deverá fazer. Uma dessas visitas é a de Bento, que lhe aparece em espírito e o informa de que o tempo do narrador chegou. Além disso, diz-lhe que, dentro de sete dias, será procurado por um jovem, que deverá atender somente quando o visitar pela terceira vez. Então, deverá confirmar se o jovem tem uma cruz no céu da boca, como ele mesmo tivera.
    Após a morte de Bento, espalha-se a notícia de que há um novo homem, que mora numa pequena aldeia da raia, que faz bem às pessoas. Deste modo, as pessoas das redondezas começam a procurá-lo por causa das suas maleitas.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Resumo do conto "O burburinho"

    O casal Maria e José seguia em silêncio através de um matagal espesso. Ele guiava um jumento, enquanto ela levava o filho recém-nascido ao colo. Ao chegarem a uma bifurcação, o animal parou subitamente, o que surpreendeu José, que tentou forçá-lo a seguir em frente, no entanto o jumento resistiu. O casal receou que se tratasse de algum perigo próximo, como, por exemplo, um lobo. Subitamente, um redemoinho (isto é, um burburinho de vento) surgiu na sua frente.
    José, conhecedor das crenças populares da região, gritou a Maria que fizesse cruzes com os dedos, no entanto a mulher, preocupada sobretudo em proteger a criança que carregava, apenas conseguiu fechar os olhos. O fenómeno desapareceu rapidamente, o burro voltou a obedecer ao dono e o casal prosseguiu o seu caminho. Pouco depois, Maria sussurrou que se sentia mal. O companheiro tentou acalmá-la e encaminhou-se na direção de um casario próximo, onde sabiam existir uma pousada. Aí, foram acolhidos e levados para um espaço onde havia feno e Maria poderia descansar. José, exausto, permaneceu ao lado da esposa, medindo-lhe a febre com as mãos. Do andar de cima, chegaram-lhes vozes e passos misteriosos, aumentando o clima de mistério e inquietação.
    De repente, uma voz convidou-os a subir e comer um caldinho. José aquiesceu e deparou-se com duas pessoas na cozinha: um mulher, ajoelhada junto à lareira, retirava uma panela do lume; um homem, sentado à mesa, servia vinho. Durante a refeição que se seguiu, o homem perguntou o que os levara até ali, e José respondeu que vendiam louça espanhola, vindos de Cidade Rodrigo. Após ter sido questionado sobre o motivo por que Maria não subira para comer, declarou que estava com febre. A mulher da casa insistiu com José que a chamasse.
    Quando este regressou com a companheira e o bebé, encontrou uma vela acesa sobre a mesa e uma malga com água. A dona da casa pediu, então, que Maria se sentasse perto do lume e deu início a um ritual popular de cura: colocou o utensílio de cozinha no colo, verteu azeite e começou uma reza misteriosa, em voz baixa, com palavras ininteligíveis. Durante a oração, a misteriosa mulher realizou movimentos circulares com os antebraços sobre o peito de Maria, unindo água e azeite, num ritual que durou vários minutos.
    Terminada a reza, a mulher aproximou a vela da malga e José pôde ver o seu conteúdo: a tigela estava cheia de bichos, mais de cem, todos de aspeto horripilante e nauseabundo.
    Quanto ao título do conto, de acordo com a crença popular, «burburinhos» ou redemoinhos de vento eram tidos como obras de bruxas e possuíam poderes maléficos. Para se proteger, quem os avistasse deveria fazer cruzes com os dedos; caso contrário, poderia ser vítima de um bruxedo.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Resumo do conto "Meia-lua ou a história do menino levado"

    A estrutura do conto assemelha-se a uma reportagem, feita por alguém não identificado, que entrevista e grava conversas com diversas pessoas que testemunharam ou têm conhecimento do evento que vai ser narrado.
    Certa noite de verão, a primeira pessoa entrevistada acorda a meio da mesma e apercebe-se de que o filho de três anos já não se encontra entre os pais, onde o tinham deitado. A família, por causa do calor e de vigiar as medas de trigo para não serem roubadas, pernoitara na eira.
    O segmento seguinte do texto apresenta a visão de uma irmã do menino levado, que na época contava dez anos. Como consequência do que sucedera ao irmão, pensou no que acontecera durante vários dias e recusou-se a pernoitar fora de casa durante as semanas que se seguiram.
    Segue-se a voz do povo, que ficou a conhecer a história ao serão do dia seguinte, quando as pessoas se reuniram na rua, pela fresca, depois da ceia. Essa voz dá conta do espanto geral pelo facto de quer os pais quer as outras pessoas que pernoitaram nas eiras não terem dado por nada.
    O quarto segmento apresenta a versão de uma figura não identificada, alguém que estava nas eiras nessa noite e que participou na busca do desaparecido. O seu testemunho acrescenta um pormenor à história, caracterizada até agora por um grande mistério: a criança caminha quatrocentos metros sem se lembrar de o ter feito. Além disso, acrescenta que acordara nessa madrugada, incomodado com um zunido estranho nos ouvidos.
    O segmento seguinte acrescenta novo dado: a criança, de apenas três anos, teve de saltar uma parede de um metro de altura. A voz que fala é a de um tio / uma tia do menino e aposta na crença popular: tinham sido as bruxas, que levam os bebés de noite, sem os pais se aperceberem, para fazerem bruxarias. Golpeavam-nos numa mão ou numa perna e enchiam um dedal de sangue para usarem nas encruzilhadas dos caminhos.
    Através da figura seguinte, ficamos a saber que todas as vozes que foram ouvidas até aqui são testemunhos dados ao narrador, que os grava. Os acontecimentos tiveram lugar há mais de quarenta anos e que vai contar tudo o que sabe e que naquele tempo não contara nem à esposa por receio da PIDE. O fenómeno desenrolou-se na madrugada de 14 para 15 de julho de 1960, numa época em que se dedicava ao contrabando. Nessa madrugada, ao regressarem da sua atividade, foram surpreendidos pela polícia e cada um escapuliu-se por onde pôde. A testemunha voltou para trás, para casa. Depois de esconder a carga de contrabando, reparou num avião que, subitamente, parou e ficou a pairar no céu, emitindo uma luz mais intensa do que a das estrelas e que foi mudando de tonalidade e de forma. Enquanto prosseguia o trajeto para casa, viu surgir outra luz, esférica, de menor dimensão e totalmente branca. Depois de ter girado em torno da alaranjada, desceu e a personagem perdeu-a de vista.
    Duas horas depois, voltou a avistar a luz branca, já que a alaranjada se conservava parada no céu. Escondeu-se atrás dos muros e foi-se aproximando da luz. Então, abriu-se uma portinhola e, da nave, saiu uma figura com forma humana, transportando uma criança nos braços. A figura dirigiu-se para a meda onde os pais da criança dormiam. Nesse momento, alguém tossiu dentre os que pernoitavam no local, enquanto a misteriosa entidade transpunha o referido muro. Pouco depois, as duas naves «encontraram-se», viu-se um relâmpago silencioso e as luzes desapareceram.
    O testemunho final é novamente o do progenitor inicial, que começa por dar conta da aflição que o atingiu quando deu pelo desaparecimento do filho, receando que pudesse ter caído num dos muitos poços que havia por ali e morresse. Foram dar com ele no caminho do Linteiro, junto às alminhas, a noite da eira, a quatrocentos metros de distância de onde dormiam. Não possuía qualquer ferimento, à exceção de um pequeno golpe na perna esquerda, com a forma de um «C» invertido, uma espécie de meia-lua, que lhe deixou uma cicatriz. É então que o narrador lhe mostra uma sua cicatriz exatamente igual: "Mas... quem é o senhor?...".

domingo, 3 de agosto de 2025

Resumo do conto "Há coisas..."

    O conto narra uma experiência inquietante vivida numa noite de verão. Acordado repentinamente em plena madrugada, o narrador sente um medo profundo e solidão, com o coração disparado e o quarto mergulhado num silêncio assustador.
    Subitamente, ouve-se um ruído estranho e sem explicação aparente, que intensifica a sensação de medo, evocando memórias infantis de fantasmas e lendas noturnas. O temor é apontado como consequência do desconhecido e da possibilidade de que as histórias de fantasmas sejam reais. Apesar de tentar racionalizar a situação, atribuindo o barulho a uma brisa da madrugada, todavia o facto de a janela do quarto estar fechada deixa em aberto a dúvida e mantém o mistério e o clima de inquietação. De facto, «há coisas» inexplicáveis que nos cercam na solidão.
    Quando ouve novamente o som, estremece: parece-lhe que unhas arranham a parede, perto do seu ouvido. Assustado, lembra-se de Bieito, uma personagem de um conto galego que foi enterrada viva por engano. De facto, o desgraçado acordou a caminho da sua derradeira morada e arranhou desesperadamente as tábuas do caixão. Um dos que carregavam o caixão pareceu ouvi-lo, mas, duvidoso, permaneceu calado. A lembrança aprofunda a sua sensação de pavor. Questiona-se então se os sons que escuta são reais ou fruto da sua imaginação. Quando mais sons sinistros ecoam no quarto, sente-se fisicamente afetado e quase cede à vontade de gritar por ajuda, mas hesita. Com efeito, recorda-se da história de Bieiro e o medo de parecer louco fá-lo ficar em silêncio.
    De seguida, reflete sobre as possíveis consequências da sua reação, nomeadamente alarmar outras pessoas, não conseguir provar o que ouviu e descobrir, eventualmente, descobrir que nada havia. O medo do ridículo e do desconhecido mantém-se calado. No escuro, com os olhos abertos, sente-se indefeso no meio da escuridão. Senta-se na cama, sentindo um frio intenso e uma angústia profunda, como se algo invisível e ameaçador estivesse a seu lado.
    O protagonista acende a luz e o medo dissipa-se de imediato. Observando o quarto, descobre que o motivo de medo do narrador é apenas um gafanhoto dourado, pousado na mesinha de cabeceira. Seguidamente, desfaz-se do intruso e começa a recuperar o sangue frio e a razão, refletindo sobre como medos tão intensos podem nascer de algo inofensivo. Superstições e crenças parecem-lhe agora ridículas.
    No entanto, ao desligar a luz e retornar ao descanso, o narrador tenta convencer-se de que os medos e os fantasmas são um mero produto da mente. Porém, ao fechar os olhos, um sopro gélido acaricia-lhe o rosto, o que o faz ter a certeza inquietante de que não está só, reinstalando-se a dúvida de que algo não racional pode, de facto, estar presente.

sábado, 2 de agosto de 2025

Resumo do conto "A camisa de linho"

    O conto "A camisa de linho" inicia-se de forma misteriosa, com um som suave de batidas à porta da casa de Jacinto, um viúvo solitário que vive isolado num casebre de granito desde que perdeu a esposa, Maria, despertando a sua curiosidade. Apesar do isolamento, Jacinto não sente a falta de companhia humana, pois conta com a presença constante do seu cão, Nero, que o acompanha fielmente e parece compreender-lhe os estados de alma, reagindo às emoções do dono, especialmente quando Jacinto se mostra triste ou pensativo.
    Ao ouvir as batidas, Nero, que dormitava aos pés de Jacinto, acorda subitamente, alerta e começa a ladrar, sinalizando algo incomum. O homem levanta-se com algum esforço e vai até à porta, acompanhado do cão. Ao abrir a porta, não vê ninguém e imagina tratar-se de alguma travessura de criança. Contudo, quando se prepara para a fechar, nota que Nero tem o focinho enfiado num embrulho de papel estranho.
    Jacinto apanha o embrulho deixado à porta e examina-o. Intrigado, sai à rua e observa em redor, mas não vê ninguém. Senta-se na ombreira, abre o objeto com um canivete e no interior encontra uma camisa de linho branca. Nesse instante, Nero começa a ladrar e corre na direção de algo suspeito. Pouco depois, surge uma galinha preta detrás de uma laje com musgo, cacarejando. O animal persegue-a, mas ela consegue escapar, desaparecendo no telhado de um celeiro abandonado.
    Jacinto chama o cão, que regressa com relutância. Afaga-o e graceja, lembrando-se então do dito popular ("Nu sabes o que se diz das galinhas pretas?") sobre galinhas pretas, e percebe o significado da estranha entrega: aquela camisa de linho constituía um presságio ou possuía um sentido oculto.
    Há muito tempo, numa madrugada, Jacinto regressava exausto a casa após uma dura jornada de contrabando. Cansado e faminto, separou-se dos companheiros ao chegar ao povoado e seguiu sozinho. Subitamente, deparou com uma mulher misteriosa, paralisada, como se tivesse criado raízes no chão, que lhe disse enigmaticamente: "Nu sabes o que se diz das galinhas pretas?!", como se se tratasse de uma cantiga memorizada. De seguida, implorou-lhe que a levasse para casa, prometendo-lhe uma camisa de linho e pedindo que não contasse a ninguém acerca do encontro. Confuso e sem entender o que se estava a passar, o homem acabou por ceder, movido pela aflição crescente dela e pelo amanhecer que se aproximava.
    Jacinto levou a mulher até casa, onde ela lhe agradeceu e renovou a promessa feita. O velho nunca falou do episódio a ninguém e também jamais recebeu qualquer recompensa. Com o passar do tempo, o estranho acontecimento caiu no esquecimento, até àquele momento em que lhe bateram à porta e lhe deixaram tão estranho presente.
    Arrastando o corpo cansado, Jacinto dirige-se à cozinha, senta-se junto à lareira e chama Nero. Em voz alta, reflete sobre o que aconteceu naquela madrugada, associando a misteriosa mulher à crença de que galinhas pretas são almas do diabo, bruxas transformadas que, se não regressarem a casa antes da meia-noite, perdem o feitiço e ficam paralisadas.
    Jacinto observa por instantes a camisa de linho e lança-a ao lume. Nero deita-se aos seus pés e os dois contemplam em silêncio as chamas.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Benfica vence a Supertaça 2025 de futebol

Supertaça 2025

Resumo do conto "A lenda das cruzes caiadas"

     O conto fala do avô Tonho, que morou sozinho na sua casa durante quase meio século. Quando morreu, há mais de vinte anos, cortaram a eletricidade, trancaram a moradia, que se foi deteriorando com a passagem do tempo e o abandono, ficando cheio de poeira e humidade. Antes, a casa era vibrante, cheia de filhos (dez) e vida, o que contrasta com o presente, em que se encontra em ruínas, tomada pelos espíritos de quem nunca a deixou.
    Quando o último filho saiu de casa e Tonho ficou sozinho, os aldeãos tentaram atemorizá-lo para que fosse viver com os filhos, porque estavam preocupados com ele, com o facto de viver sozinho,porém o avô sempre contestou que não havia lugar para si além daquela casa.
    O tempo passou, o povoado foi ficando deserto e o avô Tonho foi ficando tristonho e, um dia, pintou uma cruz branca na porta da casa e aconselhou a vizinhança a fazer o mesmo. Três dias depois, o seu corpo foi encontrado à porta da casa de Ramiro, o bêbado, com uma cruz branca pintada no peito. De igual modo, todas as casas ostentavam uma cruz branca pintada nas portas.
    Os herdeiros cortaram a luz e fecharam a casa, até que um dia de verão voltaram à residência e encontraram um caderno, oculto numa frinca da parede granítica: era o diário do avô. O livro continha histórias escritas pelo pinho do defunto, episódios da sua vida ou produto da sua imaginação..
    Apenas uma das histórias o tinha protagonista: num dia de outono, perto do regato dos salgueiros, sentiu um sopro frio na cara. Pouco depois, começou a chover copiosamente e de repente instalou-se a escuridão. Desatou a correr para casa e, quando chegou a um vinhedo, ouviu vozes misteriosas. Recordou então um antiga lenda que dizia que a cada setenta anos, na noite de 31 de outubro, "demónios negros, nascidos das sombras, cercavam o povoado e sugavam as almas de quem não caiasse uma cruz na porta de casa". Por isso, mal chegou a casa, desatou a pintar cruzes nas portas das casas.

Análise da cantiga "Bispo, senhor, eu dou a Deus bom grado", de Estêvão da Guarda

    Estamos na presença de uma cantiga de escárnio e maldizer que aborda o conflito sucessório entre D. Dinis e seu filho, D. Afonso IV, constituída por três sétimas e uma finda de quatro versos, em cobras singulares. É, além disso, uma cantiga de mestria (isto é, não tem refrão) e atafinda, em versos decassílabos e com rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABBACCA. As cantigas que aludem ao assunto mencionado foram produzidas maioritariamente após a morte de D. Dinis, na corte do seu filho bastardo, D. Pedro Afonso, o conde de Barcelos, o que significa que constituem dos últimos testemunhos da lírica galego-portuguesa. Além disso, convém ter sempre presente que os trovadores se posicionaram apenas de um lado: o do rei-poeta.
    O ciclo a que nos estamos a referir conta com cinco cantigas de autoria de importantes trovadores, como João de Gaia, Estêvão da Guarda e do próprio conde de Barcelos. Os visados são pessoas que teriam tirado proveito do conflito e, dessa forma, conseguido lugar de destaque na corte de D. Afonso IV, como é o caso de Miguel Vivas, bispo eleito de Viseu, um clérigo provavelmente oriundo de Lisboa e confessor da rainha D. Isabel de Aragão, tornando-se depois uma importante figura da corte, a quem já acompanhava enquanto infante. Em 1325, Miguel Vivas já desempenhava o cargo de clérigo; além disso, foi primeiro vedor da chancelaria real, ocupando depois o cargo de chanceler, posições que ocupou entre 1325 e 1338. As suas ligações privilegiadas com o monarca são atestadas ainda pelo facto de o rei o ter escolhido para padrinho da sua filha, a infanta Leonor. Paralelamente, foi acumulando um vasto número de canonicatos em várias dioceses do reino, ascendendo depois ao cargo de bispo de Viseu em 1329 ou 1330, situações que provavelmente nunca se viu confirmada pelo papa, uma vez que Miguel Vivas surge sempre designado como «eleito» de Viseu. Já antes de subir a esta cátedra, tinha estado envolvido na questão da sucessão da diocese do Porto, sendo o candidato preferido por Afonso IV, porém a sua candidatura acabou por ser preterida pelo papa em favor de D. Vasco Martins em 1327. O último ato público que dele é conhecido data de 1338, pelo que é possível que tenha falecido pouco tempo depois. Na composição, Estêvão da Guarda retrata Miguel Vivas como um bajulador do rei, sem qualidades virtuosas para realmente gozar da sua privança.
    Em suma, o bispo Miguel Vivas oi confessor da rainha D. Isabel e manteve relações estreitas com D. Afonso IV, quando este ainda era infante. Esses laços aprofundaram-se durante os primeiros anos do reinado, tendo o clérigo passado a ter uma série de privilégios de benefícios. Posteriormente e graças a essa relação próxima, foi indicado para bispo de Viseu, embora não tenha assumido a dignidade, pois o Papa João XII sustentava outro candidato, D. Vasco Mariz, escolhido em 1327. São estes acontecimentos que justificam o tratamento que Estêvão da Guarda lhe dá nesta cantiga: “eleito de Viseu”. Além disso, o trovador faz assentar os eu texto na ironia e no duplo sentido entre a privança de que o bispo gozava junto do rei e o facto de ter sido privado do benefício (de ser bispo). Note-se, por outro lado, que o trovador não condena a privança em si, pois ele mesmo ocupou um lugar de prestígio junto de D. Dinis, de quem dizia ser “vassalo e criado”, uma proximidade que muito o beneficiou, pois levou-o a ser um dos nobres mais importantes do reino. Após se ter posicionado a favor do monarca no conflito sucessório, ao assumir o trono, D. Afonso IV manteve-o como conselheiro para assuntos externos. Assim sendo, o ato de o rei indicar um privado para uma dignidade de destaque, como uma diocese, não configurava desvio só por si. A crítica de Estêvão da Guarda incide, justamente, no caráter de Miguel Vivas que, se não fosse privado do rei, não teria o «talam» para essa posição.
    A cantiga não apresenta refrão – cantiga de mestria – e é caracterizada pelo recurso à “atehuda ata a finda”, em que as pausas sintáticas não são as mesmas das pausas estruturadas pelas estrofes, prolongando a leitura do verso final de uma estrofe para o primeiro da seguinte (enjambement) até o final da cantiga. Isto permite ao trovador jogar com a ambiguidade do terno «privado», usando-o ora como nome, ora como particípio passado, prevalecendo este último.
    Na primeira estrofe, o trovador expõe a situação: agradece a Deus a «privança» (confiança, intimidade) com o rei de que Miguel Vivas beneficia. Conhecendo o seu caráter (“porque eu do vosso talam sei”), deseja que seja privado dessas benesses e de tudo o mais (“e porque eu do vosso talam [caráter] sei / qual prol [vantagem, proveito] da vossa privança terrei / rogo eu a Deus que sejades privado / do [pre]bendo e de quant’ al havedes:”). Repare-se que, através do recurso à atafinda, a mensagem da primeira estrofe prossegue na segunda, como se pode constatar pela citação acima feita, que engloba o seu primeiro verso. O «prebendo» era a renda do bispado. O trovador prossegue com a sua ironia: não foi a honra pro altos feitos ou a sabedoria do bispo que o alçaram, tampouco a fidelidade, mas o seu caráter bajulador, exemplificado pelo facto de fazer “sempre quant’a ‘l-rei prouguer” (v. 9).
    Os versos subsequentes da segunda estrofe prosseguem a sátira dirigida ao bispo de Viseu, que o rei deseja para seu privado: “pois que vos el por privad’assi quer”. De seguida e depois de ironizar os altos feitos e a sabedoria de Miguel Vivas (“e pois que vós altos feitos sabedes” – v. 11), o trovador afirma o seguinte: “e quant’em sis’e em conselho jaz, / Varom, senhor, pois desto al rei praz” (vv. 12-13). Nestes versos, há uma repetição semântica na sequência “varão / senhor”, que, se pensada como duplo vocativo, não oferece qualquer acréscimo sintático. No entanto, se o nome «senhor» for apenas um vocativo, o nome «varão» pode apontar para uma suposta inocência do rei por confiar na sensatez e nos conselhos do clérigo.
    Na transição da segunda para a terceira estrofe, voltamos a encontrar a atafinda: o trovador confia que o Papa o privará da nomeação, quando souber que o rei confia mais nele do que noutro varão qualquer: “fio per Deus que privado seredes / per este Papa, quem duvidaria / que nom tiredes gram prol e gram bem / quand’ el souber que, pelo vosso sem, / el-rei de vós mais doutro varom fia”. Nestes versos, por outro lado, o trovador enfatiza a falta de bom senso e a imaturidade do rei ao confiar no bispo. Além disso, a terceira cobla continua a assentar no equívoco, relativamente ao termo «privado», entre o valor substantivado (“sereis conselheiro”) e de particípio passado (“sereis despojado”).
    O desfecho da cantiga, na finda, é taxativo: o trovador afirma que o bispo será privado dos seus benefícios e da sua dignidade, tendo que pagar a “contia” (quantia pré-estipulada paga aos funcionários nobres). O clímax da cantiga é atingido, portanto, na finda, voltada para a realização da justiça: o bispo deve pagar pela sua farsa, uma vez que o seu lugar de «privado» do rei é resulta unicamente da bajulação e os seus conselhos não são ajuizados, visando apenas o benefício próprio egoísta. A professora Graça Videira Lopes propõe uma dupla leitura para a finda, a partir da forma verbal “exalcem”. Assim, a catedrática afirma que os versos finais poderão significar “quem duvidará que vo-lo elogiem grandemente” ou “quem duvidará que vos subam o pagamento” (devido a este cargo, o benefício). Por outro lado, sustenta que Estêvão da Guarda parece, nesta cantiga, felicitar Miguel Vivas pela sua nomeação para o cargo, acrescentando que a composição joga com os dois sentidos da palavra «privado» (nome e particípio passado): se lermos as estrofes encadeadas até à finda, é o segundo sentido da palavra que sobressai.
    Por outro lado, a cantiga não se limita a denunciar o facto de o clérigo se beneficiar da sua proximidade com o rei, pois também realça os danos que tal benefício causam a terceiros. Com efeito, as falhas de caráter do bispo e o desejo pelo poder prejudicam o reino em si ao revelarem a inocência do rei, mas, na realidade, também prejudicam o trovador.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Análise do poema "Isto"


▪ Este poema é uma espécie de esclarecimento em relação à questão do fingimento poético enunciada em “Autopsicografia”: não há mentira no ato de criação poética; o fingimento poético resulta da intelectualização do “sentir”, da racionalização.
 
▪ De facto, o poema tem todo o aspeto de ser uma resposta a possíveis reações à teoria da criação poética expressa em “Autopsicografia”. Esta ideia é confirmada pelos dois versos iniciais do poema: “Dizem que finjo ou minto / Tudo que escrevo.”. O sujeito nulo indeterminado (“Dizem”) sugere que houve reações (erradas e negativas) à sua teoria da criação poética expandida naquele poema, às quais o «eu» responde com um claro e incisivo “Não”.
 
▪ De seguida, apresenta o motivo por que “fingir” não significa “mentir”.
 
 
l Título
 
▪ O título procura traduzir a ideia de que o poema constitui uma resposta, um esclarecimento a uma dúvida surgida: é “Isto” que se pretende dizer. Note-se, por outro lado, que o poema parece constituir uma realidade exterior e motivasse o distanciamento necessário para o exercício da razão.
 
 
l Assunto: tal como Autopsicografia, este poema funciona como uma espécie de arte poética, na qual o poeta expõe o seu conceito de poesia como intelectualização da emoção.
 
 
l Tema: o fingimento poético.


l Estrutura interna
 


1.ª parte (1.ª estrofe)
 
▪ Aparentemente, alguém indeterminado (“Dizem”) terá acusado o poeta de mentir: “Dizem que finjo ou minto / Tudo que escrevo.”. De facto, o poema parece constituir uma resposta a supostas críticas provenientes de possíveis interpretações de “Autopsicografia”.
 
▪ No entanto, ele refuta essa acusação, afirmando que o ato de criação poética se caracteriza pela sinceridade e espontaneidade (“simplesmente”), pois sente “com a imaginação”. Quando escreve poesia, o poeta não mente; pelo contrário, é sincero: ele usa a imaginação, a razão, intelectualiza as emoções e os sentimentos e regista-os no poema através de um ato racional. Imaginar em poesia não significa mentir, faltar à verdade. Fingir é sentir com a imaginação, enquanto mentir é sentir apenas, usar unicamente o coração, os sentimentos e emoções. Na perspetiva dos outros, há o fingimento como mentira, que se opõe ao fingimento como resultado da articulação entre a imaginação e a emoção (esta é a perspetiva do sujeito poético) – fingir não é mentir.
 
▪ As emoções são a matéria-prima, a matéria poética que, só depois de pensadas/imaginadas, se materializam em poesia, fruto de um trabalho intelectual. Isto significa que estão aqui em confronto duas conceções opostas no que diz respeito ao ato de escrever poesia: uma defende que o poeta se confessa quando escreve; a outra defende que a poesia é um produto da imaginação e da inteligência.
 
▪ Por outro lado, reforça a ideia de que a criação poética implica apenas a emoção intelectualizada, a que foi filtrada pela inteligência, ou seja, as emoções/sensações são somente matéria poética “em bruto”, que devem ser, em primeiro lugar, ficcionadas/imaginadas e só posteriormente materializadas no poema.
 
▪ Quando afirma que sente com a imaginação, está a associar duas faculdades humanas de naturezas diferentes. As emoções que exprime no poema são o produto de um ato racional: o de imaginar. É este o sentido da antítese presente nos versos 3 a 5: “Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração”.
 
▪ Assim sendo, o papel do coração e da imaginação no ato de criação poética é muito claro: o coração é o ponto de partida para a imaginação, ou seja, o poeta parte do que sente, mas recria o sentimento através da razão, afastando-se, desta forma, do que inicialmente sentiu.
 
 
2.ª parte (2.ª estrofe)
 
▪ O sujeito poético clarifica, neste passo do poema, a natureza do ofício do poeta. Assim, este vive num mundo (“falha ou finda”) que o deixa insatisfeito, mas tem consciência de que existe outro mundo, outra realidade melhor (“linda”): é o mundo da poesia, de contornos idealistas.
 
▪ A segunda estrofe assenta numa comparação, através da qual o sujeito poético afirma que as emoções, sejam elas negativas – de frustração ou insucesso (“o que falha ou finda) –, sejam positivas – os sonhos, as vivências, os anseios, os insucessos –, ou seja, a realidade que vive e experiencia, constituem um terraço, situado “Sobre outra cousa ainda”, mais bela, algo que considera perfeito e que o fascina, que é a realidade imaginada, isto é, a poesia, o produto da intelectualização dessas emoções (arte e a sua dimensão estética). O terraço é a divisão que separa o plano da realidade (o mundo sensível) e o plano da imaginação (mundo intelectual), é o patamar que encobre a beleza real (existente no mundo intelectual).
 
▪ O terraço, no fundo, é uma divisória entre o mundo físico e o mundo da realidade perfeita que é a poesia. A comparação sugere que as emoções são idênticas a um terraço, que se situa sobre uma “outra cousa” mais linda, ou seja, a escrita poética. Esta realidade racionalizada – a intelectualização do sentimento – encerra a beleza do ato de criação poética.
 
 
3.ª parte (3.ª estrofe)
 
▪ O poeta escreve distanciado das emoções (“escrevo em meio / Do que não está ao pé” – vv. 11-12), livre da dimensão sensível para encontrar a emoção estética. O poeta trabalha, através da razão, as emoções expressas no poema e cabe ao leitor senti-las. Escrever poesia é “imaginar”; sentir é tarefa que cabe ao leitor.
 
▪ A criação poética só se concretiza através do distanciamento da realidade emocional, do “coração”, do “terraço” e do mundo material, e da libertação de todas as perturbações emocionais (“Livre do meu enleio”), através do fingimento (“Sério do que não é”).
 
▪ O poeta situa-se entre (“em meio”) dois mundos – o da realidade física e o da poesia – e deve libertar-se do que o rodeia para compor o poema. Desta forma, pode ascender ao mundo das formas puras e belas, ou seja, ao mundo da poesia (versos 11 e 12). Ele sente essa necessidade de se afastar do que “está ao pé”, visto que, sendo a escrita um ato artístico e solitário até, exige o recurso à imaginação, sendo necessário afastar-se do que “está ao pé”, ou seja, das sensações imediatas, dos sentimentos, pois estes enleiam, enganam.
 
▪ De facto, para escrever poesia, o poeta deve afastar-se das aparências, das imperfeições (“enleio”) da sua realidade e saber que este não é o mundo da poesia, que é perfeito.
 
▪ No verso final do poema (onde estão presentes a interrogação, a ironia e a exclamação), o sujeito poético reforça a sua teoria: o distanciamento do poeta relativamente ao coração, às emoções, no ato de criação, pela intelectualização das sensações, introduzindo um novo interveniente – o leitor –, a quem está reservado o papel de sentir as emoções suscitadas pela leitura do poema.
 
▪ Este verso, de certa forma, atribui um estatuto de inferioridade à figura do leitor, comparativamente ao poeta. Por isso, ironicamente, afirma que o leitor se limita a sentir, como se fosse incapaz de usar a razão. Este sentirá qualquer coisa de completamente diferente do que o poeta sentiu. O poeta recusa a função central do sentimento e da emoção no trabalho de criação poética. Por outro lado, valorizam-se o efeito provocado no leitor e a importância da interpretação do ato de leitura. Em suma, o poeta não sente, deixa isso para os que leem, para quem não é poeta.
 
▪ Em suma, nas palavras de Carlos Reis, “o poeta denuncia [no poema] um erro: fingir ou mentir parecem designações sinónimas e capazes de designar o ato de escrever poesia, mas não é assim. Trata-se de recusar a emoção (“não uso o coração”) e de optar pela imaginação: é desta e do fingimento que provêm a poesia e os heterónimos. A “outra coisa” (aquilo de que a poesia fala) está distante do autor real e resulta da construção fingida e comandada pela imaginação e não pelo sentimento; este, quando muito, é próprio do leitor e da leitura que ele leva a cabo, mas não interessa ao poeta, a não ser como fingimento.” (in Leituras Orientadas – Fernando Pessoa).
 
 
l Papel do leitor e do poeta na poesia
 
Ao poeta cabe criar, de forma racional e artística, as emoções que expressará no poema, enquanto ao leitor cabe sentir as emoções e vivê-las.
 
 
l Pessoa verbal
 
▪ Em “Autopsicografia”, é usada a 3.ª pessoa, dado que a teoria da criação poética expendida tem um valor universal, pois aplica-se a todo e qualquer verdadeiro poeta.
 
▪ Em “Isto”, é usada a 1.ª pessoa, visto que o «eu» poético se apresenta como um exemplo de poeta, num tom confessional e intimista.
 
 
l Estrutura formal
 
▪ Estrofes: 3 quintilhas
 
▪ Métrica: versos hexassilábicos (Di | zem | que | fin | jo ou | min|)
 
▪ Rima:
- esquema rimático: ababb
- rima cruzada e emparelhada
 
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...