Português: "Amigo Frei João, cuidas que é barro"

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

"Amigo Frei João, cuidas que é barro"






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Amigo Frei João, cuidas que é barro
O fumoso tabaco por que berro?
Um nigromante me transforme em perro,
Se há coisa para mim como o cigarro!

Ele me arranca pegajoso escarro,
Que nas fornalhas deste peito encerro;
O frio, as aflições de mim desterro,
Quando lhe lanço mão, quando lhe agarro.

De vício, se é vício, não me corro,
E só tomo rapé, simonte ou esturro,
Quando quero zangar algum cachorro.

Amigo Frei João, não sejas burro;
Dize bem do cigarro; senão, morro;
Traze-me lume já, ou dou-te um murro.

                                               (I, 116)


         Este soneto aborda o vício do tabaco através de uma situação cómica: estando o autor na cela do seu amigo Frei João de Pousafoles, sucedeu apagar-se-lhe um cigarro, pelo que pediu lume, que ele lhe recusou. É por aí que o soneto se inicia: o sujeito poético refere o pormenor de pedir lume ao amigo Frei João, porque o cigarro se lhe tinha apagado. O amigo da cela, porém, nega-lhe o lume, querendo com isso talvez não favorecer o vício.
         Reconhecendo os malefícios do tabaco, como o catarro do fumador (vv. 5-6), o sujeito poético confessa, porém, que não lhe consegue resistir. Daí a formulação do desejo hiperbólico dos versos 3 e 4: que um bruxo ou pessoa dedicada à arte de evocar os mortos para predizer o futuro (“nigromante”) o transforme num cão (“perro”, palavra de origem castelhana, usada frequentemente no sentido pejorativo de “tratante”). O prazer do tabaco não tem paralelo. O gozo insubstituível de fumar, descrito com humorado ênfase (v. 8), permite-lhe esquecer, ainda que momentaneamente, a miséria e o sofrimento (v. 7).
         Seguidamente, faz a distinção entre o tabaco de fumo (cigarro), referido no verso 2, de conhecidas consequências para os pulmões do sujeito poético (v. 6), e o tabaco de cheirar, referido enfática mas depreciativamente no verso 10 (rapé, simonte, esturro). Estes tipos de tabaco moído para degustar através de aspirações nasais distinguem-se pela qualidade, sendo o simonte um tabaco da primeira folha, e o esturro ou esturrinho um tipo de tabaco torrado, ambos usados para cheirar, como o rapé.
         O fecho coloquial do soneto encerra admiravelmente o tom cómico que o perpassa desde o início: “Traze-me lume já, ou dou-te um murro!” (v. 14).
         A nível estilístico, repare-se no trocadilho com as palavras homónimas barro e berro (vv. 1 e 2), ou no uso continuado da vibrante /r/, a estruturar toda a rima alternada do soneto, que nos sugere, foneticamente, o nefasto efeito do catarro típico do homem fumador.


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