Este poema, constituído por trinta e um versos brancos, distribuídos por cinco estrofes, alude a um massacre ocorrido em 1953 na ilha de São Tomé e Príncipe, mais conhecido por massacre de Batepá, e que consistiu na chacina de centenas de são-tomenses pela administração colonial e fazendeiros. O massacre ocorreu na localidade do distrito de Mé Zóchi (chamada Batepá). Estes acontecimentos foram a consequência das relações laborais e sociais no sistema colonial, que distinguia os fôrros – grupo etno-cultural dominante em São Tomé não sujeito ao estatuto de indigenato – dos trabalhadores contratados oriundos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Estes últimos eram considerados inferiores e levados para as ilhas para trabalhar nas roças de cacau e café, tarefas que os fôrros se recusavam a fazer por as considerarem incompatíveis com o seu estatuto.
Esta tensão
acumulada entre os vários segmentos da população do arquipélago e o facto de,
nos anos 50, a mão de obra ter diminuído – dado que tinha sido proibida a sua
importação de Angola, que necessitava dessa força de trabalho – levou ao
extremar dessas tensões entre a administração colonial e as populações de S.
Tomé. O massacre constitui, assim, o culminar desse processo que envolveu vários
micro processos de repressão e de violência nos meses imediatamente anteriores
a 3 de fevereiro de 1953.
Na noite de
1 para 2 de fevereiro desse ano, um soldado do Corpo de Polícia Indígena, de
apelido Amaral, foi morto durante uma rusga noturna na localidade de Caixão
Grande. No dia seguinte – 2 –, Zé Mulato, alcunha do enfermeiro José Joaquim,
que também desempenhava as funções de verdugo às ordens do governador da ilha,
Carlos Gorgulho, chegou a Trindade na companhia de um grupo de homens. Como
retaliação pela morte do soldado Amaral, assassinaram um nativo, na rua, o que
fez com que a população da localidade se refugiasse no mato. Todos aqueles que
não conseguiram fugir foram presos. Enquanto isso, os homens às ordens de Zé
Mulato, armados com espingardas e pistolas, disparavam indiscriminadamente
sobre as pessoas e incendiavam casas e lojas. Pouco depois, juntaram-se-lhes os
colonos brancos, armadas, fazendo-se transportar em jipes, sempre em grupo. As
perseguições e as prisões aumentaram consideravelmente e a violência
propagou-se às povoações de Batepá, Madalena, Santo Amaro e Uba Flor. A partir
de 3 de fevereiro, e pelo menos até ao dia 8, os arredores e a vila de Trindade
foram quase totalmente destruídos.
Em suma, o
massacre consistiu em vários atos de violência – assassinatos, violações, casa
incendiadas –, prisões em massa, o desterro para o campo de trabalho forçado em
Fernão Dias, onde se previa a construção de um cais acostável, além de torturas
em cadeira elétrica e exílio para a ilha do Príncipe de alguns dos mais
destacados membros da elite são-tomense e roubos de terrenos que pertenciam aos
fôrros. O massacre foi mais intenso entre os dias 3 e 7 de fevereiro de 1953,
mas prolongou-se durante vários meses.
Pra, é a
isto que se refere o título do poema. A dedicatória à poetisa e
amiga Alda Graça refere-se a Alda Espírito Santo, uma são-tomense, uma jovem à
altura dos acontecimentos, mais tarde escritora e ativista política, que, em
fevereiro de 1953, escreveu uma carta a alguns amigos, na qual descreveu os
acontecimentos como uma “matança em série, uma loucura coletiva da parte da
quase totalidade da população branca, que cumpriu ordens do governador e seus
acólitos”. Nessa longa carta, Alda Espírito Santo contou também que o povo
são-tomense era explorado e oprimido pelo governador Gorgulho, nomeadamente
através de rusgas noturnas e sequestros para trabalhar nas obras públicas sem
ou com escassa remuneração, submetidos a castigos corporais.
Todo o poema
está revestido de palavras que refletem dor, violência e morte, mas também, em
simultâneo, por palavras de esperança. Logo nos primeiros versos, encontramos
um quadro trágico e sepulcral, quando o sujeito poético afirma que o mar
devolveu os cadáveres “envolvidos em flores brancas de espumas”. As flores
brancas são, frequentemente, usadas em velórios, só que, neste caso, não houve
nenhum funeral, pois os mortos devolvidos pelo mar não receberam uma celebração
formal e com dignidade, por isso as flores são feitas das espumas das águas do
mar, podendo ser um reflexo da resposta da Natureza aos assassinatos dos
africanos. Além das “flores brancas de espumas”, os corpos estavam envolvidos
pelo “ódio incontido das feras sobre sangues coagulados de morte”, o que
evidencia a violência com que foram mortos. O sal das águas do oceano e os
possíveis espancamentos deram origem à coagulação do sangue e as “feras”
simbolizariam os assassinos que causaram as fraturas e levaram à morte das
pessoas.
Na segunda
estrofe, o sujeito poético apresenta símbolos de devastação, como, por exemplo,
o corvo e o chacal, ambos animais que surgem em cena após uma grande matança,
como sucedeu neste massacre. As praias estão cheias de corvos e chacais com
fome e sede dos cadáveres que jazem na areia. É possível associar o corvo e o
chacal aos portugueses, ou aos próprios assassinos, tendo em conta que o corvo é
uma ave carnívora que é considerada benfazeja pelos portugueses, enquanto o
chacal, também ele um mamífero carnívoro, mas que em sentido figurado significa
uma pessoa que explora os mais desfavorecidos, é apresentado como um animal,
que mais do que estar à espera de alimento, representará os próprios exploradores
ou assassinos. O pleonasmo “fomes animalescas de carnes esmagadas na areia”
pode ter uma dupla interpretação. Por um lado, enfatiza a fome dos corvos e dos
chacais e a grande devastação que é visível na praia. Por outro lado, o
adjetivo “animalesco” é usado para designar um comportamento animal por parte
de um ser humano, neste caso, a fome pela ruína, pelo sangue e pela carne que
foi esmagado, isto é, pelo corpo violentado.
Ainda na
segunda estrofe, refere-se que os corpos estão na areia “[…] da terra queimada
pelo terror das idades / escravizadas em cadeias”, o que permite deduzir que o
sujeito poético se refere aos períodos de escravidão vividos pelo continente
africano. A terra designada “queimada pelo terror das idades”, é apelidada
posteriormente “terra verde”. O verde é o símbolo da esperança, neste caso da
esperança ligada às crianças, que assim a designam: “as crianças ainda chamam
verde de esperança”. Deste modo, as crianças constituem o símbolo da pureza,
mas, sobretudo, do futuro, por isso nomeiam a terra queimada através de uma
expressão que remete para algo positivo: a esperança, o alimento essencial para
alimentar a luta pela independência e pelo consequente fim da exploração pelos
europeus.
De seguida,
o sujeito poético afirma que os corpos “se embeberam de vergonha e sal”,
recuperando a ideia do sangue coagulado, dado que a coagulação do sangue ocorre
em contacto com o sal. No caso do poema, ela foi espoletada pelo sal das águas
do mar. A vergonha será proveniente da humilhação que sofreram. Por outro lado,
as águas ensanguentadas de desejos e fraquezas refletem o paradoxo entre o forte
e o fraco: o desejo é o combustível da luta e a fraqueza decorre da tortura
física e da humilhação a que foram sujeitos.
Na quarta
estrofe, o sujeito lírico afirma que “nos olhos em fogo / ora sangue ora vida
ora morte / enterramos vitoriosamente os nossos mortos”, associando os olhos à
memória, visto que os mortos foram enterrados nos olhos, isto é, na visão, como
se fossem guardados num arquivo. Se tivermos em conta que o fogo é um elemento
simbólico que pode representar a ideia de purificação e o entusiasmo, os olhos
em fogo podem aludir a olhos que purificam e a olhos entusiasmados,
interpretação confirmada pelo verso “enterramos vitoriosamente os nossos mortos”,
visto que, apesar de terem sido humilhados e torturados até à morte, não podem
ser considerados derrotados: “reconhecemos a razão do sacrifício dos homens /
pelo amor / e pela harmonia / e pela nossa liberdade / mesmo ante a morte pela
força das horas / nas águas ensanguentadas / derrotas acumuladas para a vitória”.
Assim sendo, a morte não equivale à derrota, antes pelo contrário: pode apontar
para a vitória. A ausência de pontuação no verso “ora sangue ora vida ora morte”,
da penúltima estrofe, sugere a ideia de um tempo que não cessa, que é cíclico.
Por outro lado, a expressão “ora sangue” remete para o nascimento e para a
morte; “ora vida”, para o ciclo da existência; “ora morte”, para a luta e o fim
dessa existência.
Na última
estrofe, o sujeito poético afirma que, para o povo são-tomense, aquela terra
verde “será também a ilha do amor”, remetendo novamente para a ideia da
esperança e da vida, apesar de todas as tragédias que lá sucederam.
Em suma,
este poema põe em confronto colonizado e colonizador, enfatizando o esmagamento
e a opressão de que o primeiro é vítima e apontando para a tentativa permanente
de se reerguer, não obstante a violência que sofre por causa da fusão de
culturas.
Olhando para
si mesmo como sujeito, o homem africano busca uma identidade e passa a refletir
e a agir como uma figura atuante no que diz respeito à sua cultura: o poeta é
visto como alguém que tem a missão de criar a consciência da sua raça. Neste
poema, a função do mar enquanto elemento que devolve ou expele para a terra
africana a violência indicia, em simultâneo, o desvelar da violência que ele
engoliu (ou seja, expõe-na) e a tentativa de analisar os traumas causados pela
redescoberta da sua identidade, que primeiro nega o mar e, gradualmente,
reconhece o seu papel fundamental no ocultar e resgatar de memórias.
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