Este
soneto, com rima interpolada e emparelhada nas quadras e interpolada nos
tercetos, segundo o esquema rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, e versos
decassilábicos sáficos (vv. 8 e 10) e heroicos (os restantes), aborda o tópico navigium
amoris, herdado dos poetas gregos e latinos, ou seja, o amor –
personificado enquanto divindade – é como um mar tempestuoso, o mar das paixões
amorosas, em que se debate o barco que simboliza o amante.
O «eu»
poético dirige uma apóstrofe ao Amor personificado, comunicando-lhe ter
visitado o seu templo depois de ter perdido a esperança por ter ficado sem o
seu amor. Segundo Faria e Sousa, Camões cantou as esperanças de duas formas: “la
primera por las finezas de sus amores que dulcemente cantava; la segunda la de
sus cantos celebrando la Patria y los Heroes della”. Neste soneto, o poeta recorre
à renuntiatio amoris como motivo principal, construída sobre a metáfora
do naufrágio amoroso. A primeira quadra versa precisamente sobre a
representação do motivo do ex-voto,isto é, o sofrimento amoroso é
comparado a uma tempestade da qual o marinheiro foi salvo e, por isso, leva as
suas oferendas ao templo como agradecimento à divindade que o salvou. A fonte
de inspiração de Camões foi a ode 5 do livro I de Horácio. Por outro lado, além
deste soneto, ele aborda o mesmo tópico noutros poemas, como, por exemplo, “Como
quando do mar tempestuoso”. Camões, neste soneto, apresenta a oferta do ex-voto
não no formato de roupas, mas sim a própria vida. Por outro lado, se Horácio e
Garcilaso, nos seus poemas, agradecem por ainda estarem vivos e livres desse
amor, o poeta português doa a sua “alma, vida e esperança”, lamentando o facto
de ainda estar vivo, e queixando-se da privação desse amor.
Apesar
do texto fixado por Costa Pimpão apresentar o termo «soberano» no segundo
verso, as fontes manuscritas trazem «sagrado», divergência que é entendida por
alguns estudiosos como uma correção imposta pela censura, desde logo porque não
é o único caso em que aquela modificou o texto de um poema camoniano. De facto,
a censura foi uma prática tradicional da Igreja, que, na luta contra a heresia,
proibia a publicação de termos pouco ortodoxos, como, por exemplo, tratar como
«sagrado» o templo do Amor. Sendo exclusivamente reservado ao uso religioso,
esta palavra pertence à lista de vocábulos que foram objeto de censura.
O «eu»
poético – aquele que ama – deposita a alma, a vida e a esperança mo templo do
Amor, em vez das oferendas comumente dadas aos deuses pelos náufragos como
forma de agradecimento. Regra geral, os náufragos seguiam até ao templo dos deuses
para agradecer o facto de ainda estarem vivos, porém Camões atua de forma
inversa, isto é, coloca o sujeito poético a deslocar-se ao templo para
protestar o facto de ainda estar vivo e questiona o desejo de vingança do próprio
Amor, que é percebido como entidade hostil, chegando mesmo a afirmar que a maior
vingança seria deixá-lo vivo a chorar do que tirar-lhe a vida: “nelas podes
tomar de mim vingança; / e se inda não estás de mim vingado, / contenta-te com
as lágrimas que choro.” (vv. 12-14).
O
sujeito lírico põe a sua vida em vez das oferendas habitualmente feitas, porque
já se considerava morto para as pretensões do mundo, em particular as amorosas,
ou porque desejava morrer. O nome «vestidos» (v. 4) alude ao facto de o
náufrago, depois de escapar ao perigo, pendurar as vestes e outros despojos do
naufrágio, como ex-voto, na parede do tempo do deus invocado durante a
tempestade em alto mar. Os «vestidos» eram os principais testemunhos de um
naufrágio, que eram colocados no templo. Esta passagem do soneto forma uma
imagética associada ao tópico do naufrágio amoroso.
A
imagem do templo do Amor, presente na primeira quadra, pode assumir três formas
diferentes. A mais simples é o templo como igreja, que encontramos, por exemplo,
em Malatesta Malatesi. Noutra, templo é usado como metáfora do corpo,
nomeadamente da pessoa amada, como sucede com Pietro Bembo ou Bernardo Capello,
que assinala as semelhanças entre o templo do Amor e o rosto da mulher amada:
as portas são os lábios; o teto é o cabelo louro, que cobre paredes de mármore
brancas e vermelhas, isto é, a face; o grande tesouro são as próprias tranças
de ouro. Por vezes, o templo refere-se ao coração do amante, dado que guarda o
culto e a memória da imagem amada.
Nos
dois versos iniciais da segunda quadra, o «eu» poético questiona Amor,
perguntando-lhe que mais poderá querer dele, depois de ter destruído toda a glória
que alcançara, isto é, o privilégio de ter vivido um amor sublime. O facto de
poder desfrutar, ou não, deste amor está no poder da divindade. No momento em
que decide retirá-lo, é considerado pelo que ama como um tirano. Os dois versos
seguintes, por meio da metáfora e do oximoro, apresentam a recusa do sujeito
lírico em “tornar a entrar onde não há saída”, ou seja, num caminho sem saída.
O verso
9 apresenta uma enumeração de três nomes: «alma», «vida» e «esperança», dois
dos quais se encontram no primeiro («esperança») e no quarto («vida») da
primeira quadra. Esses três nomes designam os «despojos», os restos ou
fragmentos do passado. Na prática, os versos 9 e 10 patenteiam o jogo
dialético, bem característico de Camões, entre o bem passado (“de meu bem
passado”) e o mal presente. Esse bem durou “enquanto quis aquela que eu adoro.”
(v. 11), ou seja, enquanto lhe correspondeu amorosamente?
O
segundo terceto constitui o clímax do soneto. O sujeito poético, depois de ter
oferecido a sua alma, vida e esperança, acaba oferecendo as suas próprias lágrimas
– o seu sofrimento, a sua mágoa, a sua dor –, que são para ele mais dolorosas
do que a própria morte. Atente-se no recurso ao poliptoto (figura de estilo que
faz a alteração flexional de uma parte do corpo da palavra) de “mim vingança” /
“de mim vingado”. Note-se que o Amor é representado, nesta composição poética,
como uma entidade mítica caracterizada como omnipresente e possuidora de uma
natureza vingativa (“destruída / me tens a glória toda que alcancei.” – vv.
5-6; “podes tomar de mim vingança” – v. 12; “não estás de mim vingado” – v.
13). Por outro lado, o texto desenvolve-se num crescendo: nas duas quadras, os
verbos encontram-se maioritariamente no passado (pretérito perfeito: «visitei»,
«passei», «pus»), enquanto os tercetos começam e terminam com os verbos no
presente («Vês» e «choro»), o que significa que o futuro está excluído, pois o
sujeito poético não consegue libertar-se dessa prisão do Amor, prefere a morte
e, portanto, não é capaz de se projetar num futuro.
Ainda
relativamente ao segundo terceto, nomeadamente o verso 12, focado no tema da
vingança não é caso único na obra camoniana, onde aquele que ama, tendo perdido
a esperança, afirma preferir morrer a viver no seu tormento de amor. É o que
sucede, por exemplo, no soneto “Se algu’hora em vós a piedade”, no qual Camões declara
o seguinte: “tomarão tristes lágrimas vingança / nos olhos de quem fostes
mantimento. // E assim darei vida a meu tormento; / que, enfim, cá me achará
minha lembrança / sepultado no vosso esquecimento.” Note-se que Camões, além de
usar nomes como «vingança», culmina o soneto com o termo «sepultado»,
indiciando novamente que a morte é a única fonte de liberdade.
Bibliografia:
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VITALI, Marimilda, “As cadeias da esperança”