Português: Análise do poema "Os vestidos Elisa revolvia", de Camões

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Análise do poema "Os vestidos Elisa revolvia", de Camões


Os vestidos Elisa revolvia
que lh’Eneias deixara por memória;
doces despojos da passada glória,
doces, quando seu Fado o consentia.

 
Entr’eles a fermosa espada via
que instrumento foi da triste história
e, como quem de si tinha a vitória,
falando só com ela, assi dizia:

 
– Fermosa e nova espada, se ficaste
só para executares os enganos
de quem te quis deixar, em minha vida,

 
sabe que tu comigo t’enganaste;
que, para me tirar de tantos danos,
sobeja-me a tristeza da partida.

 
    Neste soneto, Camões conta o trágico epílogo da história de amor entre Dido, rainha de Cartago, e Eneias, herói da guerra de Troia, tal como é apresentada por Virgílio no IV canto da Eneida. De facto, o poeta refaz toda a cena descrita nos versos 648 a 652 da epopeia de Virgílio, que precede imediatamente o suicídio da monarca, quando esta vê as “Eliacas Vestes” de Eneias espalhadas pelo leito, símbolo de um amor que acabou, e nele se recosta, pedindo-lhes que acolham a sua alma para a libertarem do sofrimento causado pelo abandono.

    A história de Eneias na Eneida após o final da guerra conta-se rapidamente. O herói foge de Troia, destruída pelos gregos, depois de ter salvo o pai Anquises e o filho Ascânio, e faz uma longa viagem pelo mar. O fado e os deuses fazem-no desembarcar nas costas de Itália, onde deverá dar origem à família imperial romana (gens Iulia) e, por consequência, à grandeza de Roma. A primeira paragem teve lugar em Cartago, onde mora o potente reino fenício governado por Dido. Graças à ação de Vénus (deusa do amor e mãe de Eneias) e de Juno, Dido e Eneias apaixonam-se perdidamente, apesar de a rainha ainda se encontrar de luto pelo marido, Siqueu, ao qual jurara ser sempre fiel. No entanto, para os antigos gregos e romanos, nenhum ser humano podia livrar-se dos ditames do fado e dos deuses. Assim, depois de alguns meses de intensa paixão, Júpiter envia Mercúrio, seu mensageiro, para recordar a Eneias a missão que lhe tinha sido confiada. Deste modo, o herói troiano vê-se forçado a abandonar a amada, repentinamente, mas, antes de partir, protagoniza uma despedida dolorosíssima da rainha. As embarcações troianas deixam o porto de Cartago durante a escuridão da noite, e Dido, quando acorda, encontra a praia deserta e fica desesperada. Pede, então, à irmã que empilhe, numa pira pronta a arder, todos os objetos pertencentes a Eneias, sobre os quais coloca o leito nupcial, símbolo da sua união amorosa, bem como as armas e uma figura em cera do amante traidor, com o objetivo de o esquecer para sempre. No entanto, ao ver as armas de Eneias, Dido decide suicidar-se, pois é incapaz de viver sem aquele homem que amou tão intensamente e pelo qual traiu a memória do falecido marido e a sua própria honra. Assim, pega numa espada e mata-se.

    Camões escolhe a forma do soneto para contar o desfecho trágico do amor de Eneias e Dido, isto é, o momento em que ela toma a decisão de se suicidar com a espada do amado. No que diz respeito à estrutura interna do texto, nas duas quadras, descreve-se Dido, abandonada, revolvendo as roupas deixadas por Eneias em Cartago antes de partir, entre as quais encontra a espada do herói, enquanto, nos dois tercetos, é relatada em discurso direto a invocação da rainha a essa espada, de acordo com o procedimento da sermocinatio, através do qual o poeta coloca o seu discurso na (continua aqui »»»).

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