Português

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Transgressão: código sexual e amoroso

          A nível amoroso, a transgressão concentra-se na relação de Baltasar e Blimunda, que é vivido à margem das regras sociais da época: não são casados, uniram-se por um ritual de sangue e da colher, vivem uma relação de igualdade de papéis, guiando-se por um estado de perfeição que não é deste mundo.

          A nível sexual, a transgressão atinge o auge no contraste entre a relação carnal que o rei e a rainha mantêm - sexo ritual protocolar para procriação (pp. 11-13, 319-320), profusamente caricaturado pelo narrador - e a relação carnal entre Baltasar e Blimunda, caracterizada por uma entrega sexual permanente e mútua de corpos e almas, sem tabus ou limites, que não os que as próprias personagens definem (pág. 77).

          Outro momento da obra em que a transgressão sexual é bem evidente está relacionada com a proposta que o irmão de D. João V faz à rainha, bem como os sonhos eróticos que atormentam D. Maria Ana Josefa com aquele.

          Por último, o «desfile» que ocorre pelas ruas da cidade por alturas do Entrudo é outro momento de excesso e de transgressão sexual.

Transgressão: código escrito

          Memorial do Convento é uma obra dominada pela noção de transgressão, visível em vários domínios.

          Um desses domínios é o código escrito. Neste caso, a ideia de transgressão está presente nos seguintes aspectos:

     a. a desconstrução e reconstrução das regras da pontuação (vide linguagem):
» a supressão das marcas gráficas do discurso directo (diálogos);
» a substituição dos pontos finais por vírgulas, criando uma leitura contínua;
» o uso de maiúsculas no meio da frase para introduzir as falas das personagens;
» etc.
     b. a inversão de expressões bíblicas e de provérbios / adágios populares ("ainda agora a
         procissão vai na praça");

     c. a diversidade de registos de língua:
» o registo cuidado;
» o registo familiar;
» o registo popular, nomeadamente o calão ("merda", "puta", "mijo");
      d. os aforismos ("Não está o homem livre... com a verdade...");

      e. os jogos de palavras.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Vénia

          Dr. Aires Pereira do Couto, meu enorme professor de Latim.
          O professor que eu sempre desejei ser, mas nunca serei: competente, justo, sério, recto, exigente, estudioso incansável e apaixonado, implacável com as falhas de carácter.
          Foi o primeiro a falar-me, à entrada de uma aula, de uma «coisa» nova, uma «rede», que estava a ser preciosa na preparação da sua tese de mestrado: a Internet. Isto em 1989, creio.
          Concedeu-me a oportunidade de melhorar a nota da segunda frequência a Latim III, que calhou no dia seguinte à final da Liga dos Campeões em que o Benfica foi derrotado pelo Milan por 1 a 0 e em que obtive a miserável nota de 11.
          Quem se ficou a rir foram a Ana Amaral, do alto do seu 18 inexpugnável, e o José António Salvador, do seu 16, mas este por pouco tempo.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Espaço social em 'Memorial do Convento'

            O espaço social do Memorial concentra-se em torno de dois locais - LISBOA e MAFRA - e procura recriar a sociedade portuguesa - cortesã e popular - dos primeiros decénios do século XVIII, focando aspectos como a Inquisição, as festividades, a corte, a escravatura, as injustiças, a feitiçaria, os autos-de-fé, os rituais religiosos e cortesãos, as epidemias, etc.


1. LISBOA

          Citando Auxília Ramos e Zaida Braga, responsáveis intelectuais pela colecção RESUMOS, da Porto Editora, «Lisboa aparece descrita através de uma série de sensações auditivas (pregões, vozes alteradas, toques dos sinos, das trombetas, rufos de tambores, salvas de tiros anunciando a chegada ou a partida das naus, o som monocórdico das rezas, das ladainhas e da sineta dos frades mendicantes) que constroem a imagem de uma cidade - apesar de, na voz do narrador, parecer 'tão quieta' - em constante movimento.» (pág. 23).

          Em Lisboa, são vários os ambientes que constroem a visão epocal da capital do reino:


          1.1. O Paço
  • A subserviência e o vazio dos gestos repetidos e inúteis por parte do enxame de cortesãos que rodeiam o rei e a rainha;
  • Os aspectos caricaturais que definem a relação conjugal dos monarcas (o cerimonial, a ausência de afectividade, intimidade, amor, etc.).

          1.2. O Entrudo e a Procissão da Quaresma
  • A religião enquanto pretexto para a prática de excessos e desvarios (a satisfação de prazeres carnais) e brincadeiras carnavalescas (as pessoas comem e bebem em demasia, dão «umbigadas pelas esquinas», atiram água à cara umas das outras, batem nos mais desprevenidos, tocam gaitas, espojam-se nas ruas...);
  • A penitência física dos pecados da carne (o jejum e o açoite - pág. 28) e a mortificação da alma (o jejum e o açoite - pág. 28) e a mortificação da alma  após o desregramento do Entrudo (é tempo de «mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se...»);
  • As manifestações de fé caracterizadas pela histeria, pelo sadomasoquismo e pelo primitivismo: as pessoas arranham-se, arrastam-se pelo chão, puxam os cabelos, esbofeteiam-se, autoflagelam-se para gáudio das mulheres e amantes que assistem à procissão a partir das janelas;
  • Os comportamentos das mulheres que reclamam mais violência e vigor na «actuação» do seu «servidor» e obtêm prazer dos actos de autoflagelação dos penitentes (sadismo: obtenção de prazer a partir do sofrimento de outrem);
  • A alteração dos comportamentos femininos: as mulheres, nesta época, são livres de percorrer sozinhas as ruas e de frequentar as igrejas, comportamento que facilita o adultério;
  • A alteração periódica da mentalidade machista masculina: os homens «fecham» os olhos» aos

Espaço psicológico

1. Os sonhos
  • Os sonhos do rei e da rainha contrastam com os das outras personagens, sobretudo porque evidenciam o desamor que marca a ralação do casal real: D. João V sonha com a sua própria imortalidade, com a descendência e com o convento, enquanto D. Maria Ana sonha com o cunhado em razão da sua insatisfação sexual;
  • Baltasar sonha com Blimunda, com o trabalho, com os animais, a terra, o ar;
  • Baltasar e Blimunda têm sonhos comuns e, por vezes, sonham em conjunto com o padre Bartolomeu de Gusmão, nomeadamente no que diz respeito à passarola, o que evidencia o profundo envolvimento das três personagens na realização daquela obra, ao contrário da construção do convento, executada à custa do trabalho de milhares para a realização do sonho de um só - D. João V.

2. Os pensamentos
  • Os pensamentos das personagens revelam o seu mundo interior, os seus desejos, sonhos e ambições.

3. A atmosfera do romance
  •  A atmosfera do romance é densa e pesada, em virtude da religiosidade opressiva, com traços de fanatismo, imposta pelos clérigos e pelas ordens religiosas que manobram a vida dos lisboetas, os habitantes da corte, os operários que trabalham nas obras do Convento de Mafra. Tudo parece girar em função da motivação religiosa: desde o nascimento da herdeira real, resultado de uma promessa, à construção do convento. A própria rainha vive dominada pelo fanatismo religioso.
  • Por outro lado, à excepção das touradas, todos os divertimentos e acontecimentos importantes ou são de cariz religioso, ou têm a ver com a Igreja, ou misturam o religioso e o profano (como os festejos que antecedem a procissão do Corpo de Deus), ou ainda a religião e a luxúria (por exemplo, a procissão da penitência e as saídas das mulheres para visitar as igrejas durante a Quaresma. Pairando sobre tudo isto está sempre  mancha negra da Inquisição e os autos-de-fé, para gáudio e elevação espiritual de nobres e plebeus.
  • O sermão proclamado aquando do transporte da pedra e após a morte de Francisco Marques representa a demagogia exercida pelo clero sobre o povo ignorante.
  • O lar de Marta Maria e João Francisco distingue-se desta imagem profundamente negativa da sociedade portuguesa pela tolerância com que recebem o filho e a nora, que suspeitam não estarem casados conforme mandam as leis da Igreja, não questionando algumas estranhezas que notam em Blimunda, embora essa tolerância não seja tão grande que a aceitem se ela for uma cristã-nova.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Blimunda


          Blimunda Sete-Luas é filha de Sebastiana Maria de Jesus, condenada ao degredo, acusada de ser visionária e cristã-nova, num auto-de-fé, onde conhece Baltasar.
          Fisicamente, poucos dados nos são transmitidos sobre a personagem, sendo todo o realce dirigido para os olhos, descritos diversas vezes - de facto, ela possui uns olhos misteriosos, extraordinários, de cor indefinida ("... olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra..." - pág. 55), e para o corpo, alto e delgado. O cabelo é "... russo, injusta palavra, que a cor dele é a do mel..." (pág. 103).
          Tem 19 anos no momento em que conhece Baltasar e mantém intacta a sua virgindade, que entrega a Baltasar na sequência do seu encontro do auto-de-fé. Tem poderes mágicos: é vidente, pois possui a capacidade de, em jejum, "ver por dentro" das coisas e das pessoas (capacidade que só emprega em Baltasar no derradeiro momento da comunhão mística entre ambos); tem também o poder de recolher vontades, dois traços fundamentais e imprescindíveis na construção da passarola, que se tornará, igualmente, o seu projecto. Estes seus poderes são aplicados no mundo real, concreto, no entanto ela consegue ver para além das aparências, já que possui o dom da ecovisão, o dom de ver por dentro das pessoas e das coisas, afastando-se da materialidade e aproximando-se da espiritualidade adstrita à arte de Scarlatti e ao sonho de voar do padre Bartolomeu de Gusmão. O facto de o único ser que ela se recusa a ver ser Baltasar, o «seu homem», pode significar a dificuldade em «ver» quem se ama, talvez por medo do que possa encontrar.
          É, portanto, uma personagem marcada pela excepcionalidade, revelada pela sua ascendência (é filha de uma feiticeira), pelo valor simbólico do nome que lhe é atribuído ("Sete-Luas") e pelos seus dotes particulares de vidência ("ver por dentro").
          O seu único amor é Baltasar, com quem forma um só, por quem está disposta a realizar todos os sacrifícios e a quem dedica uma afeição verdadeira, espontânea e duradoura. Por outro lado, o amor dela por ele é também o símbolo da aceitação e renúncia, dado que nunca o olha por dentro, como vimos. Aos olhos de Scarlatti, Blimunda e Baltasar surgem, respectivamente, como Vénus e Vulcano (pág. 168). Com efeito, apaixonada pelo ex-soldado, mantém com ele uma relação de amor, de cumplicidade "que não é deste mundo", de igualdade de direitos e de companheirismo, a que não falta a atracção física revelada em jogos eróticos de prazer. Esta cumplicidade e partilha entre o casal traduzem a imagem de uma mulher desfasada  e adiantada relativamente à época em que vive, pois ela afirma-se independentemente do homem com quem vive e que para ela olha de igual para igual, fazendo-a partilhar os seus sonhos, medos e vida, em suma. O amor que vivem é um amor fora das normas do seu tempo, um amor não-cristianizado, mas nem por isso menos (a seu modo) sagrado, e miticamente exemplar. Foram talhados um para o outro, como lembra o ditado popular ("O casamento e a mortalha no céu se talha"), convivendo em harmónica união ("Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais..." - pág. 90), também sugerida pela simbologia do novo nome: o 7 simboliza o ciclo completo, uma dinâmica perfeita. Talvez por isso nunca tenham tido filhos. A união e a harmonia do casal são tais que este é perspectivado como se de uma personagem se tratasse: "... já sabemos que destes dois se amam as almas, os corpos e as vontades...". Entre as lides do campo, os trabalhos no convento, a construção da passarola e a recolha de vontades, Baltasar dispõe sempre de tempo e espaço para, do lado direito da enxerga, amparar Blimunda com a mão que lhe resta.

          A relação entre ambos fica marcado, desde o início, por circunstâncias extraordinárias, desde o ritual de aceitação da colher até ao ritual de baptismo através do sangue virgem de Blimunda, passando pelo recurso ao silêncio enquanto forma primordial de comunicação: "não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.".  As palavras são frias e desnecessárias no meio dos gestos. Um homem, uma mulher, dois corpos, duas almas, duas vontades. Por outro lado, amparam-se mutuamente, pois ele acalma-a na sua maldição de ver por dentro as pessoas e ela ajuda-a na falta da sua mão.

          Como acima ficou dito, Blimunda, tal como Baltasar, colabora na construção da passarola, contribuindo com os seus poderes mágicos na recolha das duas mil vontades que a farão voar e com o seu poder de "ver por dentro", que lhe permite verificar os seus defeitos de construção e corrigi-los, evitando deficiências na construção. A recolha das vontades deixa Blimunda exausta e doente, "uma extrema magreza, uma palidez profunda que lhe tornava transparente a pele", e será apenas a música do cravo de Scarlatti a salvá-la e restituí-la à vida.
          Por outro lado, o envelhecimento físico não deteriora a juventude interior da personagem e a relação que mantém com Baltasar, sobretudo porque, aos olhos deste, ela continua a mesma. O próprio cansaço e o esgotamento que a atinge a nível físico após a peregrinação por Lisboa em busca das vontades levam o narrador a associar às imagens dos sóis e das luas a perda de algum brilho e fulgor: "... cansados de tanta caminhada, de tanto subir e descer de escadas, recolheram-se Blimunda e Baltasar à quinta, sete mortiços sóis, sete pálidas luas..." (p. 181).
          Com o decorrer da intriga, Blimunda revela uma sabedoria e uma postura muito próprias, apresentando-se como um elemento mágico não explicado, tendo aprendido coisas sobre a vida e a morte, sobre o pecado e o amor "na barriga da mãe", onde permaneceu "de olhos abertos" (cap. XXIII, p. 331). Daí que tenha uma presença bastante forte, sólida e afirmativa no romance. As restantes personagens (o padre Bartolomeu, Baltasar, Scarlatti e Marta Maria) reconhecem o mistério que subjaz ao seu olhar e ao seu extraordinário poder perceptivo, inexplicável até para a própria personagem.

          Após o desaparecimento de Baltasar (ela própria tinha pressentido que não voltaria a estar com ele, daí que o tivesse conduzido para a barraca e o amasse com sofreguidão), secou as lágrimas e partiu à sua procura durante 9 anos. Esse percurso revela uma mulher corajosa, determinada, persistente, disposta a tudo para encontrar o seu amor. Durante essa demanda, acaba por matar um dominicano, sedento de um momento de prazer, com o espigão de Baltasar, que simbolicamente representa o marido em defesa da mulher: "Do outro lado do convento, num rebaixo (...) aonde tiver que ir, inferno ou paraíso." (cap. XXIV, pp. 344-346). Na sequência desse desaparecimento e durante a sua busca, os olhos de Blimunda adquirem novas características, além da indefinição da cor, pois neles se reflectem inquietações e preocupações: "... que segredos se escondiam no rosto impenetrável, nos olhos pardos, cujas pálpebras raramente batiam, e que a certas horas e certa luz pareciam lagos onde flutuavam sombras de nuvens, as sombras que dentro passavam, não as comuns do ar..." (p. 354). Na sua incansável procura, só à sétima vez que passou por Lisboa o encontrou a ser queimado num auto-de-fé, juntamente com António José da Silva, autor de comédias de bonifrates e conhecido por O Judeu.

Texto expositivo-argumentativo (2) - AI

O Simular da Vida de Fernando Pessoa



          Fernando Pessoa finge completamente a dor. O fingimento poético possibilita a construção da arte, pois fingir é inventar, elaborar mentalmente conceitos que resultam dum processo criativo, que é vital para o ser humano.
          O fingimento artístico não impede a sinceridade, apenas implica o trabalho de representar, de exprimir intelectualmente as emoções ou comunicações, como podemos constatar no poema Autopsicografia.
          Pessoa não consegue fruir instintivamente a vida por ser consciente e racional. Como por exemplo, nos poemas Ela canta pobre ceifeira… ou Gato que brinca na rua, onde a felicidade parece existir na ordem inversa do pensamento e da consciência.
          Esta dialéctica possibilita criar diferentes linguagens e realidades e assim permite-lhe atingir a finalidade da arte.

Texto expositivo-argumentativo (2)

          Comente a opinião, a seguir transcrita, sobre a teoria do fingimento poético em Pessoa ortónimo, referindo-se a poemas relevantes para o tema em análise.

          Escreva um texto de oitenta a cento e vinte palavras.
          "É na poesia ortónima que o Pessoa 'restante', o que não cabe nos heterónimos laboriosamente inventados, se afirma e 'normaliza': é então que ele 'faz' de si e os seus poemas são 'chaves' para compreender o seu extraordinário universo literário."
António Mega Ferreira, Visão do Século

Baltasar

          Baltasar Mateus - uma personagem ficcional - é um ex-soldado recém-chegado da Guerra da Sucessão espanhola (1704 - 1712), natural de Mafra e com 26 anos. Apresenta uma deficiência física - é maneta, em virtude de ter perdido a mão esquerda na guerra, "estralhaçada por uma bala" -, que provocou a sua expulsão do exército, o que significa que, à semelhança do Bailote de Aparição ou do Antigo Soldado de Felizmente há Luar!, representa todos aqueles que são explorados até ao tutano enquanto são saudáveis e que, depois, são desprezados e abandonados quando já não têm utilidade prática. Essa expulsão leva-o a vaguear como pedinte em Évora com o intuito de fazer um gancho que lhe substitua a mão perdida até chegar a Lisboa, onde conhece Blimunda num auto-de-fé. Mais tarde, torna-se açougueiro na capital, porque o gancho que lhe substitui a mão esquerda lhe facilita o trabalho. Mais tarde torna-se um dos operários que trabalham na edificação do convento como servente ou boieiro ou a fazer carretos com os carros de mão.
          Conhece Blimunda e o padre Bartolomeu num auto-de-fé, iniciando aí uma relação que o levará a participar do sonho de voar e a colaborar activamente na construção da passarola. Todos estes factos contribuem para o agigantar da sua imagem ao longo do romance, chegando mesmo a alcançar uma esp´cei de divinização: "(...) Com essa mão e esse gancho podes fazer tudo quanto quiseres, e há coisas que um gancho faz melhor que a mão completa, um gancho não sente dores se tiver de segurar um arame ou um ferro, nem se corta, nem se queima, e eu te digo que maneta é Deus, e fez o universo (...)"; "Olhou o desenho e os materiais espalhados pelo chão, a concha ainda informe, sorriu, e, levantando um pouco os braços, disse, Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar." (cap. VI, pág. 68).
          No fundo, Baltasar é apresentado, inicialmente, como um marginal, lutando pela sobrevivência e não hesitando em matar, isto é, uma espécie de herói pícaro[1]:
  • foi soldado na Guerra de Sucessão espanhola, de onde foi expulso por ter ficado mutilado da mão esquerda;
  • sem salário, inicia uma vida aventureira e errante: pede esmola para conseguir ter um gancho de ferro, mata um homem que o quisera roubar e conhece João Elvas, rufia e igualmente antigo soldado.
          Por outro lado, encarna a crítica à inutilidade da guerra, já que se sacrificam homens em nome de interesses que lhes são alheios: "A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores, recusava-se a ir à batalha, e tanto desertava para o inimigo como debandava para as suas terras, metendo-se fora dos caminhos, assaltando para comer, violando mulheres desgarradas (...) por artes de uma guerra em que se haveria de decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlos austríaco ou um Filipe francês, português nenhum..." (pág. 36).
          O envelhecimento físico que vai manifestando ao longo da obra, à medida que os anos passam, não deteriora a sua juventude interior e a relação que mantém com Blimunda, sobretudo porque aos seus olhos Baltasar continua o mesmo: "... tens a barba cheia de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas, Baltasar, tens encorreado o pescoço, Baltasar, já te descaem os ombros, Baltasar, nem pareces o mesmo homem, Baltasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo..." (p. 326) [2]
          No final da obra, Baltasar paga com a sua própria vida a perseguição do sonho da passarola ao ser queimado num auto-de-fé. Deste modo, é transformado no verdadeiro herói do romance, superando «a imagem do povo oprimido e espezinhado de que faz parte».

[1] A picaresca caracteriza-se por uma série de peripécias e aventuras vividas por uma personagem (o herói pícaro) de baixa condição social, que serve a vários amos, em toda a espécie de expedientes, esfomeado, errante, com um código de honra muito duvidoso que consiste em safar-se da forma mais airosa possível de toda a sorte de dificuldades, principalmente através da sua astúcia e habilidade pouco escrupulosas.

[2] O narrador faz aqui uma distinção entre duas perspectivas: a "nossa", objectiva, externa, que só vê aparências; a de Blimunda, subjectiva, interna, que "vê" mais longe e mais fundo, porque observa com os olhos do amor.

Padre Bartolomeu de Gusmão

          Bartolomeu de Gusmão nasceu em Santos, São Paulo, Brasil, em 1685. Desde cedo interessou-se pelo estudo da Física, tendo concebido uma máquina de elevação de água a cem metros de altura, no Seminário de Belém. Veio para Portugal, pela segunda vez, em 1708, onde cursou Cânones em Coimbra e desenvolveu os seus estudos de Física e Matemática. Em 1709, dirigiu uma petição a D. João V anunciando-lhe que tinha descoberto "um instrumento para se andar pelo ar da mesma sorte que pela terra e pelo mar". O rei concedeu-lhe privilégio para o referido instrumento através de um alvará de 19 de Abril desse ano. Na sequência desta permissão, o padre Bartolomeu de Gusmão desenvolveu diversas experiências com balões de ar aquecido, algumas delas na presença da figura real e da corte. Em 1713, deslocou-se para a Holanda para aprofundar os seus estudos e desenvolver as suas experiências. Regressado a Portugal, acabou por se converter ao judaísmo em 1724 e fugir para Espanha, procurando iludir a perseguição da Inquisição. Aí faleceu, na cidade de Toledo, nesse ano, durante a sua fuga.

          O Padre Bartolomeu de Gusmão é uma personagem parcialmente referencial, como o próprio nome, já que a designação de Lourenço não aparece nos livros de História, assim como não são factos históricos a construção da passarola (da qual só é conhecido um desenho) e a viagem de Lisboa até Mafra. Sendo, de facto, em parte, uma personagem referencial, apresenta, contudo, diversos traços da personagem histórica:
  • a relação com a corte e com as academias: "... e o outro reverendo (...) encarece as atenções com que a corte extensamente distingue o doutor Bartolomeu de Gusmão." (p. 175);
  • a construção da passarola: "Se o padre Bartolomeu de Gusmão, ou só Lourenço chegar a voar um dia." (p. 166);
  • o doutoramento em Cânones: "Já o padre Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em cânones, confirmado de Gusmão por apelido onomástico e forma escrita." (p. 159);
  • as viagens ao Brasil e à Holanda.
          Ele é, antes de mais, um sonhador: tem o sonho de voar, por isso toda a acção se centra na construção da passarola, projecto concretizado na quinta do duque de Aveiro, em São Sebastião da Pedreira. A concretização desse sonho depende da protecção e da amizade de D. João V, o que não consegue impedir a perseguição do Santo Ofício. Não obstante todas as dificuldades que lhe surgem, acaba por construir a passarola e voar, com a ajuda de Baltasar e Blimunda.
          Bartolomeu de Gusmão tem, no início do romance, 26 anos, a mesma idade de Baltasar.


(em actualização...)

D. Maria Ana Josefa

          D. Maria Ana, de origem austríaca (o narrador refere, no início do romance, que tinha vindo da Áustria há dois anos), tornou-se rainha de Portugal ao casar com D. João V.
          A rainha é apresentada como uma personagem muito religiosa, beata, submissa e medrosa. O enfoque inicial é dado à sua relação matrimonial, que a deixa extremamente insatisfeita, quer amorosa quer sexualmente, desempenhando sempre um papel passivo. O casal real não dorme junto, mantém relações sexuais duas vezes por semana apenas para tentar conceber um herdeiro e não comunica. Essa insatisfação leva-a a ter sonhos eróticos com o cunhado, o infante D. Francisco, facto que lhe acarreta novos problemas, pois vive atormentada pela consciência de estar / viver em pecado, já que considera os sonhos um «acto» vergonhoso e criminoso, um pecado que atenta contra a castidade. Consequentemente, procura superar os remorsos e o sentimento de culpa cumprindo penitência, rezando e peregrinando pelas igrejas, em missas e novenas intermináveis. Como afirma o narrador, D. Maria Ana é somente a «devota parideira que veio ao mundo só para isso».
          Vive num ambiente de repressão, constantemente vigiada pela família à distância, com poucas ocupações e temas de conversas com as aias - ambiente esse de que procura fugir através do sonho - e cheia de saudades de casa.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Prémios (alguns) de José Saramago

  • 1979 - Prémio da Associação de Críticos Portugueses
  • 1980 - Prémio Cidade de Lisboa
  • 1982 - Prémio do Pen Clube Português e Prémio Literário do Município de Lisboa
  • 1984 - Prémio do Pen Clube Português; Prémio D. Dinis; Prémio da Associação Portuguesa de Críticos
  • 1985 - Comendador da Ordem Militar de Santiago de Espada; Prémio da Crítica pelo conjunto da obra
  • 1987 - Prémio Grinzane-Cavour (Itália), pela obra O Ano da Morte de Ricardo Reis
  • 1991 - Grande Prêmio de Novela da Associação Portuguesa de Escritores; Prémio Brancatti (Itália); Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras Francesas
  • 1992 - Prémio Internacional Ennio Faiano (Itália), por Levantado do Chão, e Prémio Internacional Literário Mondello (Itália); Prémio Literário Brancatti (Itália)
  • 1993 - Grande Prémio de Teatro da Associação Portuguesa de Escritores; Membro do Parlamento Internacional de Escritores, em Estrasburgo; Prémio The Independent (Reino Unido) e Prémio Vida Literária da APE
  • 1994 - Membro da Academia Universal das Culturas (Paris); Sócio da Academia Argentina de Letras
  • 1995 - Prémio Consagração da Sociedade Portuguesa de Autores
  • 1996 - Prémio Camões
  • 1998 - Prémio Nobel da Literatura

Obras de José Saramago

. Romance
  • Terra do Pecado (1947)
  • Manual de Pintura e Caligrafia (1977)
  • Levantado do Chão (1980)
  • Memorial do Convento (1982)
  • O Ano da Morte de Ricardo Reis (1986)
  • A Jangada de Pedra (1986)
  • História do Cerco de Lisboa (1989)
  • O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991)
  • Ensaio sobre a Cegueira (1995)
  • Todos os Nomes (1997)
  • A Caverna (2000)
  • O Homem Duplicado (2002)
  • Ensaio sobre a Lucidez (2004)
  • As Intermitências da Morte (2005)
  • A Viagem do Elefante (2008)
  • Caim (2009)

. Teatro
  • A Noite (1979)
  • Que Farei com Este Livro? (1980)
  • A Segunda Vida de Francisco de Assis (1987)
  • In Nomine Dei (1993)
  • Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido (2005)

. Poesia
  • Os Poemas Possíveis (1966)
  • Provavelmente Alegria (1970)
  • O Ano de 1993 (1975)
  • Poesia Completa (2005)

. Crónicas
  • Deste Mundo e do Outro (1985)
  • A Bagagem do Viajante (1973)
  • As Opiniões que o DL teve (1974)
  • Os Apontamentos (1976)
  • Folhas Políticas (1976-1998) (1999)

. Contos
  • Objecto Quase (1978)
  • O Conto da Ilha Desconhecida (1998)
  • A Maior Flor do Mundo (2001)

. Ensaio
  • Poética dos Cinco Sentidos (O Ouvido) (1979)

. Viagens
  • Viagem a Portugal (1980)

. Diário
  • Cadernos de Lanzarote I (1994)
  • Cadernos de Lanzarote II (1995)
  • Cadernos de Lanzarote III (1996)
  • Cadernos de Lanzarote (1993-1995) (1997)
  • Cadernos de Lanzarote IV (1998)
  • Cadernos de Lanzarote V (1998)

. Discursos
  • Discursos de Estocolmo (1999)

Retrato de D. João V

          O retrato do Rei é feito de forma indirecta, através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos, dos encontros com a madre Paula, das idas à câmara da Rainha, das conversas com o Tesoureiro...
          Filho de D. Pedro e da rainha D. Maria Sofia de Neuburg, foi proclamado rei em 1 de Janeiro de 1707, tendo, no ano seguinte, casado com a princesa Maria Ana Josefa de Áustria, de quem teve seis filhos, a somar aos inúmeros bastardos que semeou pelo reino.
          Preocupado com a ausência de descendentes legítimos e influenciado pelo poder da Igreja católica, faz a promessa de construir um convento em Mafra se, no prazo de um ano, a rainha gerar um descendente. A promessa é cumprida após o nascimento da princesa Maria Bárbara.

          D. João V é infiel à rainha, adúltero, pois mantém inúmeras relações extra-conjugais, das quais resultam os (acima) referidos filhos bastardos. A sua relação com a esposa é desprovida de qualquer afectividade, consistindo no simples cumprimento de um dever. Mais: as páginas iniciais descrevem-no-las de forma caricata e sarcástica: repletas de formalismos, sem espontaneidade, cumplicidade, intimidade, amor ou prazer. Chegados aqui, convém recordar que o casamento entre ambos foi «arranjado», que os noivos mal se conheciam e que se uniram sem qualquer traço de amor que os aproximasse. A relação matrimonial esgota-se na necessidade de gerar um herdeiro para o trono.
          Por outro lado, é extremamente vaidoso e egocêntrico, por isso compraz-se na contemplação do número ordinal romano V por ser comum ao Papa e a si próprio (cap. I); é servido por inúmeros criados (p. 13); exige que a data de sagração do convento seja um domingo que coincida


(em actualização...)
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