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sexta-feira, 20 de março de 2020

Dimensão irónica e paródica de "Famílias desavindas"

Neste conto, o narrador recorre frequentemente à paródia, apostando na inversão irónica de códigos e de convenções, com distanciamento crítico.
A paródia está presente, desde logo, no facto de o início inusitado se transfigurar na conclusão do conto: o acidente propicia a reconciliação das duas famílias, depois de cerca de um século de conflito.

A dimensão irónica e paródica do conto assume os seguintes contornos:

O insólito com aparência de real (fantástico que se introduz no quotidiano recriado)

▪ Conto em que se articulam dois universos logicamente incompatíveis:
→ o da realidade e da normalidade (verosimilhante): é reforçado e legitimado pelo narrador através de marcadores históricos, de topónimos e de nomes de pessoas;
→ o do insólito / fantástico (inverosimilhante): é marcado pelo caráter incomum e pitoresco das ações narradas (semáforo a pedais; escolha do primeiro semaforeiro; origem do conflito entre médicos e semaforeiros; acidente, que culmina com o médico a assumir a função de semaforeiro).


O cómico extraído do quotidiano: o narrador denuncia/critica, recorrendo ao humor/cómico e à ironia, de aspetos negativos extraídos do quotidiano:

1. Censura dos ódios entre famílias sem motivo (a pequenez do conflito entre as famílias dos semaforeiros e dos médicos), em contraste com a magnitude dos acontecimentos nacionais e mundiais referenciados no texto, a deixar transparecer uma censura ao egoísmo e mesquinhez do ser humano. Atente-se no facto de, após duas guerras mundiais devastadoras e uma revolução que transformou profundamente Portugal, a inimizade entre as duas famílias se manter incólume e inalterada.

2. Denúncia de vícios sociais como o provincianismo, o suborno/a corrupção (nos serviços públicos – a atribuição duvidosa/por «cunha» de cargos públicos), o facilitismo, a burocracia excessiva, a incompetência profissional (cf. a descrição caricatural dos médicos e da própria função de semaforeiro), o comportamento dos médicos, que contrasta com o seu estatuto social e profissional.

3. Paródia em torno das invenções inúteis, do deslumbramento pelo estrangeiro, das relações humanas, dos estereótipos sociais. Observe-se, por exemplo, no insulto «Arrenego de ti galego», dirigido aos semaforeiros, uma fórmula semelhante a muitas outras que traduzem o repúdio pelos imigrantes.

4. Exemplos concretos do recurso à ironia:
▪ a necessidade de um sistema de semáforos no fim do século XIX para «ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade»;
▪ o semáforo acionado por um ciclista que pedala continuadamente;
▪ o suborno de um autarca do Porto com vinho («garrafas de Bordéus») para que fosse instalado um sistema de semáforos que já tinha sido recusado em Paris e em Lisboa;
▪ o concurso para o cargo de semaforeiro: o escolhido, Ramon, que nunca pedalara na vida, é um candidato que não preenchia os requisitos (andar de bicicleta), porém era «familiar de um proprietário de um bom restaurante» (sugestão de nepotismo);
▪ o médico João Pedro Bekett, que andava pelas ruas a perguntar aos transeuntes se estavam doentes;
▪ o seu filho João, que era tão modesto que informava os doentes de que o seu diagnóstico possivelmente estava errado e que deveriam consultar uma segunda opinião;
▪ Paulo Bekett era tão explicativo que os seus doentes adormeciam enquanto ele lhes explicava minuciosamente as doenças;
▪ a figura final do Dr. Paulo a dar ao pedal para se penitenciar pelo conflito com o «semaforeiro».
▪ a narração da forma como as sucessivas gerações de médicos desempenhavam as suas funções salienta a dimensão ridícula da sua pretensa superioridade social;
▪ o conflito entre as famílias do «semaforeiros» e dos médicos é descrito de modo profundamente irónico, tendo como finalidade mostrar o seu caráter absurdo.


A importância dos episódios e da peripécia final em "Famílias desavindas"

A maior parte dos episódios do conto são de agressividade entre as duas famílias. Com efeito, eles retratam a desavença entre «semaforeiros» e médicos ao longo de cerca de um século, desavença esse que é gerada por um dispositivo insólito: os semáforos a pedal.

▪ O Dr. João Pedro Bekett ofendeu Ramon por não querer que o semáforo o impedisse de atravessar a rua quando quisesse. Em consequência, o «semaforeiro» passou a dificultar-lhe a passagem – início do conflito.

▪ O Dr. João, filho do Dr. João Pedro, «passava grande parte do tempo à janela, a encadear Ximenez com um espelho colorido».

▪ O Dr. Paulo, neto do primeiro médico, passava por Asdrúbal, neto de Ramon, e insultava-o e pedia aos clientes que o insultassem também. Asdrúbal ripostava, insultando o médico de volta e, certa ocasião, chegou mesmo a levantar a mão para ele.


Peripécia final

▪ O final do conto constitui uma inversão inesperada dos acontecimentos: Paco, bisneto de Ramon, sucedeu a Asdrúbal e sofreu um acidente: um jovem que passava de moto, ao tentar concretizar um roubo por esticão, bateu no «semaforeiro» e deixou-o estendido no chão. O Dr. Paulo, seguindo a sua condição de médico, em vez de o insultar, como pensara fazer, esqueceu o ódio e foi socorrer Paco. Além disso, para mitigar o remorso e o sentimento de culta decorrentes do conflito que mantivera com Paco, substituiu-o no ofício de «semaforeiro» enquanto Paco se restabelecia do acidente no hospital.

▪ A peripécia final contrasta com os episódios de conflito entre as duas famílias, pois configura uma situação de resolução desse conflito. De facto, o acidente de Paco proporcionou a paz e a concórdia, acabando com a desavença, ao trazer à tona a faceta real do Dr. Paulo, o terceiro médico da família, que esqueceu o ódio secular entre as duas famílias para socorrer o «semaforeiro».

▪ A peripécia não deixa de configurar um momento de ironia em relação a um longo passado de ódio, mas, por outro lado, encerra uma moralidade, mostrando que o rancor e o ódio não têm de ser eternos, que as pessoas podem ser más e boas e que a solidariedade pode ser mais forte do que o ódio.

▪ A peripécia final representa o fim do conflito, do ódio, entre as duas famílias e vem demonstrar que as classes sociais superiores e as inferiores podem criar uma relação harmoniosa, graças á solidariedade entre os seus elementos.


COVID-19: ponto de situação do dia 19 de março


quarta-feira, 18 de março de 2020

Análise de "Orfeu rebelde"

O mito de Orfeu

Orfeu é uma figura da mitologia grega, filho de Calíope, musa da poesia épica, e de Apolo, deus da poesia e da música, de quem recebeu uma lira como presente.
Orfeu era um poeta que se celebrizou pelo seu canto melodioso, que encantava a própria Natureza. De facto, os sons da sua lira domavam as feras, que se deitavam a seus pés, e atraía também seres humanos e a própria Natureza.
Casou-se com Eurídice, seu grande amor. No casamento, esteve presente Himeneu para abençoar a união, mas o fumo da sua tocha fez lacrimejar os noivos, o que não trouxe augúrios favoráveis. Pouco tempo depois, Eurídice passeava com as ninfas, quando foi surpreendida pelo pastor Aristeu, que, ao vê-la, se apaixonou perdidamente e a tentou conquistar. Na sua fuga, Eurídice pisou uma serpente, que a mordeu no pé e lhe causou a morte.
Orfeu, desesperado e incontrolável, desceu ao reino dos mortos para a reaver. Perante os deuses do Inferno, cantou o seu desgosto e o seu amor, dizendo que, se não lha devolvessem, ele próprio ficaria com ela no reino dos mortos. Graças ao seu canto, conseguiu comover Hades e Perséfone a autorizarem o regresso de Eurídice ao mundo dos vivos, mas com uma condição: em caso algum, Orfeu poderia virar-se para trás, olhá-la, enquanto não tivessem transposto os limites infernais e alcançado o mundo superior, a superfície. Caminhando na frente, Orfeu estava quase a chegar aos portões do Hades e a atingir o seu objetivo, mas, com receio de ter sido enganado por aqueles deuses, virou-se para trás para confirmar se a esposa o seguia. Eurídice, lavada em lágrimas, foi imediatamente levada de volta para o mundo dos mortos. Orfeu tentou alcança-la, mas sem sucesso.
Profundamente triste, permaneceu na margem do rio durante sete dias, sem comer nem dormir, suplicando o regresso da esposa. Depois, vagueou, triste e solitário, pelo mundo, sem nunca mais querer saber de mulher alguma e repelindo todas as que o tentavam seduzir, até que um dia as mulheres da Trácia, enfurecidas pelo seu desprezo, o mataram e lançaram o seu corpo ao rio Ebro, que acabou por ser levado até à ilha de Lesbos, onde, durante muito tempo, a cabeça de Orfeu, presa numa rocha, proferia oráculos. A sua lira foi colocada num templo de Lesbos.
Outra versão do mito sugere que as musas o enterraram em Limetra, num túmulo onde o rouxinol canta mais suavemente do que em qualquer outra parte da Grécia, e a sua lira foi colocada por Zeus entre as estrelas. Orfeu encontrou por fim Eurídice e, abraçando-a, nunca mais deixou de a contemplar.

NOTA: Miguel Torga reutiliza muitos mitos gregos, tirando partido do seu significado e aplicando-os quer a si mesmo quer à sua terra. No caso do mito de Orfeu, destaca a rebeldia de quem não aceita os limites que lhe são impostos.


Assunto: rebelde, o sujeito poético pretende gravar, através do canto (a poesia), a fúria de cada momento, afirmar a sua rebeldia face à transitoriedade da vida e à inevitabilidade da morte.


Tema: a revolta contra a inexorabilidade do tempo e a morte / o ofício de poeta.


Estrutura interna

1.ª parte (1.ª estrofe) – Autocaracterização do sujeito poético.

▪ O sujeito autocaracteriza-se como um poeta rebelde cuja poesia corresponde à expressão de si mesmo («canto como sou»), da sua intensidade, da sua revolta, do seu perene sofrimento. Autocaracteriza-se igualmente como um poeta sincero («canto como sou»), autêntico enquanto ser, no seu sofrimento e nos seus sentimentos («Violências famintas de ternura»).

▪ O sujeito poético assume-se como um rebelde – a rebeldia de Orfeu – e revolta-se cantando como um possesso (comparação que traduz a fúria com que o sujeito poético exprime o seu «canto», a sua poesia).

▪ Essa fúria, essa violência constituem um grito contra a morte e contra a passagem inexorável do tempo, são motivadas pelo desejo de lutar contra a passagem do tempo e a efemeridade da vida, através da eternização dos momentos permitida pela escrita.

▪ O sujeito poético pretende que a sua voz obsessiva e esse grito contra o tempo se prolonguem para a eternidade, daí a gravação «a canivete» (metáfora), para que a própria evolução da casca torne mais duradoura e viva a sua revolta.

▪ De facto, a metáfora da «casca do tempo» expressa a ideia de que a casca eterniza a sua revolta, no entanto, contraditoriamente, estaremos perante algo efémero e aparente – a gravação da fúria de cada momento – por ser apenas casca. Afinal, o que o sujeito poético procura é encontrar a eternidade na realização poética, à maneira clássica.

2.ª parte (2.ª estrofe) – Oposição entre os «outros» e o «eu».

▪ O sujeito poético recusa a poesia de outros poetas, românticos, de canto suave e harmonioso, descomprometidos da realidade, que se conformam («Outros, felizes, sejam rouxinóis…» – v. 7 – metáfora e ironia relativamente à aceitação fácil da vida).

▪ Pelo contrário, o «eu» distancia-se desses outros poetas, pois não pretende exprimir emoções, mas um canto agressivo e violento, de revolta, de desafio (poesia romântica/descomprometida versus poesia de revolta), um grito violento revelador da falta de ternura. Então, recorre à violência, ou melhor, a uma expressão violenta e agressiva para vencer o que o instinto lhe adivinha e ele recusa: a inexorabilidade da morte e a opressão que se abate sobre ele (vide versos 8-11). O sujeito poético é um ser atormentado e revoltado que desafia as leis do tempo e da vida (v. 10).

▪ A metáfora «…. O céu e a terra, pedras conjugas…» (v. 9) exprime a união de todas as forças que se conjugam para triturar o sujeito, para o oprimir – «Do moinho cruel que me tritura…» (v. 10), metáfora e personificação que evocam a passagem inexorável do tempo (que provoca o sofrimento permanente do «eu») pelo movimento circular do moinho e contra a qual ele se revolta. O céu e a terra unem esforços para atormentar o sujeito poético, um espírito moído pelo sofrimento da vida que roda sem fim, como se de um moinho se tratasse, o moinho do tempo cuja mó é, precisamente, o céu e a terra conjugados.

▪ A personificação e a comparação presentes nos versos 9 a 11 [«… o céu e a terra (…) / Saibam que há gritos como há nortadas / Violências famintas de ternura…»] exprimem a força e a violência do grito do sujeito poético contra a passagem do tempo, semelhante à violência e à força dos elementos da Natureza, como as nortadas Por outro lado, a agressividade do «eu» traduz igualmente a aspiração ao afeto, que ele não possui.

▪ De facto, a personificação de sabor metafórico presente no verso 12 exprime a força e a necessidade de amor e ternura que o sujeito poético sente.

3.ª parte (3.ªestrofe) – Função interventiva da poesia.

▪ O sujeito poético afirma-se possuidor do instinto dos animais – que o leva a adivinhar a inevitabilidade da morte – e do corpo de um poeta que a recusa e contra ela luta através do seu canto.

▪ A comparação e a metáfora dos versos 15 e 16 («Canto como quem usa / Os versos em legítima defesa.») reafirmam a postura de rebeldia do sujeito poético e a ideia da poesia como arma e a palavra e a liberdade de expressão são veículos de denúncia.

▪ Isto remete para o conceito de poesia sugerido pelo poema: o sujeito poético canta para agir sobre o (seu) tempo, assumindo uma posição interventiva. De facto, a poesia constitui um grito, um refúgio, um desabafo, face à consciência da passagem triturante do tempo e à iminência da morte. Estes recursos estilísticos emprestam à criação poética conotações de luta: o canto poético funciona como uma arma.

▪ Os dois últimos versos do poema sugerem que o canto do sujeito poético oscila entre a exaltação e o terror em relação à realidade, visto que esta, apesar de toda a sua beleza, é caracterizada pela omnipresença da morte

NOTAS:

1.ª) Miguel Torga socorre-se do mito de Orfeu para dar voz à sua rebeldia, mas desenvolve-o de forma diferente do tratamento que lhe foi dado pelos clássicos. Por um lado, o Orfeu mitológico representa a rebeldia por causa do amor, enquanto o Orfeu de Miguel Torga simboliza a rebeldia motivada pelos seus limites e pelos limites humanos, sobretudo a impossibilidade de travar a passagem inexorável do tempo e a impossibilidade de vencer a morte. O poeta, simultaneamente, aproveita e subverte o mito: o poeta é o próprio Orfeu, o que significa que se automitifica.

2.ª) Por outro lado, de acordo com o mito grego, Orfeu caracterizava-se por ser suave e encantatório, enquanto o canto do sujeito poético é caracterizado pela intensidade, pela força, revelando a face rebelde e revoltada de um Orfeu desafiador.

3.ª) A poesia é entendida como uma arma do poeta, utilizada em legítima defesa: «Canto como um possesso», «desafio», «moinho cruel», «gritos», «nortadas», «violências». Essa arma serve de arma de defesa do sujeito poético contra o esquecimento, a morte, a passagem do tempo. A poesia é arma de combate – a única arma que pode vencer a morte; é uma poesia de desespero humanista.

4.ª) Como poeta, Miguel Torga considera-se chamado à missão suprema de gritar a sua solidariedade humanista com todos os homens, sobretudo os que são mais abandonados, e dar-lhes esperança.

5.ª) O humanismo de Torga é o humanismo de um revolucionário, de um revoltado e, mais do que um revoltado, de um rebelde. O canto poético é o seu instrumento de combate, «em legítima defesa» dos valores que «articulam» o seu humanismo, que não é de «abdicação mas de confronto».

6.ª) A mensagem do poema remete para o drama interior do homem e a sua obstinação em lutar contra esse drama, patente na imagem órfica presente nesta atitude do poeta perante a poesia e a morte, ou mesmo perante o amor feito «ternura».


Caracterização do sujeito poético
▪ O sujeito poético é um poeta revoltado e rebelde (“Orfeu rebelde” – v. 1), não por ter perdido a amada, como Orfeu, mas por causa da passagem do tempo e da transitoriedade da vida.
▪ É igualmente um ser sincero, autêntico e genuíno («Canto como sou» - v. 1) e intenso («Canto como um possesso» - v. 2).
▪ É um ser sofredor, atormentado e revoltado pela passagem inexorável do tempo e pela morte, que desafia as leis do tempo e da vida («Que o céu e a terra, pedras conjugadas / Do moinho cruel que me tritura» – vv. 9-10), faminto de ternura («Violências famintas de ternura» – v. 12).
▪ É, assim, um poeta que luta contra a passagem do tempo e contra a morte.
▪ Exprime a dolorosa condição do ser humano («Bichinho instintivo que adivinha a morte» – v. 13), mas procura superá-la, recusando-a e afirmando a sua identidade.
▪ O seu canto constitui uma arma, uma arma de defesa e complexa («Canto como quem usa / Os versos em legítima defesa. / Canto, sem perguntar à Musa / Se o canto é de terror ou de beleza.» – vv. 15-18).


Título

Orfeu é uma figura mítica ligada à poesia, o que se adequa ao poema de Torga, cujo tema é a conceção do ofício de poeta.
Por outro lado, o poeta identifica-se com Orfeu, dado que, tal como sucedia com a figura da mitologia, também o seu canto tem um forte impacto naqueles que o rodeiam,
Por sua vez, o adjetivo «rebelde» corresponde à conceção de poeta veiculada pelo poema: um poeta da revolta e da intensidade e não suave, harmonioso e encantatório como o de Orfeu.
Por último, tal como Orfeu, que procurou lutar contra recorrendo ao seu canto (foi assim que resgatou Eurídice do reino dos mortos), também o poeta se revolta contra a morte e procura combatê-la e reverte-la através da sua poesia.



Outros recursos poético-estilísticos

1. Nível fónico

Estrofes: o poema é constituído por três sextilhas.
Rima:
- esquema rimático: ABCDCD/ABCDCD/ABBCBC;
- os dois primeiros versos de cada estrofe são brancos, exceto o segundo da última estrofe, que emparelha com o seguinte;
- os quatro últimos versos de cada estrofe apresentam rima cruzada;
- consoante («canivete»/«compromete»);
- rica («canivete»/«compromete») e pobre («momento»/«sofrimento»);
- grave («canivete»/«compromete»).
Métrica irregular: versos maioritariamente decassilábicos, exceto o 2.º da 1.ª estrofe e os 3.º e 5.ºda 3.ª estrofe (de 6 e 8 sílabas).
. Ritmo oscilante, dadas as características da rima e da métrica.
. Vários casos de transporte contribuem para o ritmo do poema.
. Aliteração do fonema /c/ ao longo do poema, conjugada com a aliteração do fonema /t/, que remete para a luta e rebeldia do sujeito poético.

2. Nível morfossintático

. A adjetivação (“rebelde”, “cruel”, “famintos”, “instintivo”, “legítima”) é sugestiva de rebeldia e também de ironia no caso do adjetivo felizes.
. Predomínio de verbos e nomes expressivos de ação, força, agressividade, rebeldia, ao serviço de um estilo viril.
. Verbos:
– domínio do presente do indicativo: sugere a continuidade da luta, um processo interminável, e do sentimento de revolta do sujeito poético;
– presente do conjuntivo: o desdém;
– pretérito imperfeito do conjuntivo: a hipótese.
. Predomínio de sensações auditivas.


Marcas torguianas e presencistas do poema:
- a superlativação do “eu”;
- a emotividade da linguagem;
- a aguda da consciência da função do Poeta e da Poesia;
- o humanismo revolucionário.


Síntese

Miguel Torga é um poeta órfico, no duplo sentido em que relaciona o orfismo com o glorioso Orfeu, poeta, ora com as práticas doutrinárias que inculcam a crença de que o corpo é a prisão da alma e de que a purificação do pecado se obtém pela mortificação do corpo, pela abstenção de certos atos e pelo culto de certos ritos.
No primeiro sentido, o mais glosado dos mitos helénicos é Orfeu, patrono emblemático da poesia, o portador da lira cuja música não só subjuga a própria natureza como Caronte e os deuses do Hades, das trevas infernais em que estava Eurídice nas suas “faixas de morta, incerta, suave e sem impaciência” (Rilke). No segundo sentido, o orfismo torguiano revela-se na contínua frequência com que o poeta introduz na natureza do ato poético o ingrediente ascético e catártico que lhe dão eficácia, necessidade e sentido de único vínculo e veículo que encaminha o nosso rumo interior para o projeto superior da Poesia.
À reinvenção deste mito presidem paradoxalmente as metáforas de Orfeu Rebelde, Orfeu Cansado e Orfeu Mártir.
É introduzida aqui uma rebeldia que tem como reverso o pânico de quem se deu conta que as cordas da lírica órfica são “grades” e de quem, irremediavelmente mergulhado na desafinação da melodia, deliberadamente perdida, quer “ao menos falhar em tom agudo”, insistindo em transformar cada novo som discordante num “grito/Que no seu desespero diga tudo”.
Esquecido da sua missão de ressuscitar Eurídice, Orfeu introduz no canto e na melodia que enterneciam e domavam os deuses das trevas infernais – “a fúria de cada momento”, desinteressado de “se o canto é de terror ou de beleza” e apenas determinado a usá-lo “em legítima defesa”, a ver se o seu canto compromete a eternidade no seu sofrimento.
De resto, a estratégia da arte poética torguiana da procura do paradigma formal e a tática de rotura e desvio que lhe é implícita são o próprio absoluto da contradição órfica – inerente como foi sempre o orfismo à soberania e ao culto de Dioniso, deus da fúria, da desordem catabática, meta da divina demência ou da divina intoxicação.
Rebelde, Orfeu – Torga, os dedos enclavinhados nas grades da prisão da lira, o corpo rasgado, por dentro, pelos golpes de paixão da alma encarcerada, por fora, pelo ferro dos versos da emoção endurecida, nunca deixará de ser o apaixonado para quem é tão necessário conseguir dos deuses a descida aos infernos em busca de Eurídice como ser o rebelde que contraria a lei de a não olhar para a não perder.
Toda a poesia torguiana está cheia desse imperativo órfico em virtude do qual só na autoflagelação e na catarse do exercício poético a nossa perfuração existencial adquire a direção ascensional no sentido purificador da super-existência pela Poesia.
É, com efeito, necessário que Orfeu desça aos infernos à procura de Eurídice, não para a trazer consigo para as alegrias domésticas de uma felicidade familiar, mas para a reintroduzir na inessencialidade da noite – dessa noite que, sendo o limite do dia, é também o seu pressentimento e a sua promessa. E é igualmente necessário que Orfeu suba de novo à luz do dia, à precisão luminosa da solidão do seu corpo, à cintilação do seu olhar portador da morte que é a profundidade da vida, no mesmo sentido em que a Poesia é a profundidade do absurdo do mundo sem Deus e em que o esquecimento é a profundidade da memória. Cúmplice do esquecimento e da morte, a Poesia é, portanto, a imagem do excesso da vida incomportável no esquecimento e na morte que o olhar do rosto rebelde reintroduz nas trevas e na noite, perfil da luz e do dia (cf. “Descida aos Infernos”).




 

Relação do mito com a poesia de Torga

COVID-19: ponto de situação do dia 17 de março


terça-feira, 17 de março de 2020

Em memória: Pedro Barroso



Pedro Barroso
(1950-2020)

Análise de "São Leonardo de Galafura"

Assunto

São Leonardo navega vagarosamente ao longo da terra duriense, num antecipado “desengano” do que será o “cais divino” e já vergado às saudades da terra que vai deixar.


Tema: o telurismo.


Estrutura interna

1.ª parte (1.ª estrofe) – Realidade imaginada.

O sujeito poético imagina S. Leonardo «à proa de um navio de penedos» (um barco rabelo), a navegar, sem pressas, num «doce mar de mosto» que o prende à terra, em direção à eternidade», mas já arrependido de deixar o «cais humano» (a terra duriense), «num antecipado desengano» da vida que está para lá do «cais divino».
É de salientar o recurso ao presente do indicativo («ruma», «avança») e à perifrástica («vai sulcando», «a navegar») para sugerir a realização gradual / o lento desenrolar da viagem. Essa sugestão é dada também pelo particípio («ancorado») e pelos advérbios («devagar», «lentamente»).

2.ª parte (2.ª estrofe) – Razões da lentidão e do desengano do santo.

Na eternidade, não haverá socalcos, vinhedos, água do Douro e montes.
Na eternidade, só encontrará «charcos de luz / Envelhecida»; os montes serão todos rasos, estendendo-se os horizontes até se extinguir a cor da vida.
Nesta estrofe, predomina o futuro do indicativo («terá», «serão», «deixarão»), dado que se descreve uma realidade para a qual se caminha.

3.ª parte (3.ª estrofe) – Regresso à imagem descritiva da primeira estrofe.

O santo navega cada vez mais lentamente em direção à eternidade, aproveitando os últimos momentos de contemplação da paisagem duriense para sorver o «cheiro a terra e a rosmaninho», isto é, para que se prolongue a permanência na terra.
Note-se que o sujeito poético imagina o santo a navegar, na primeira estrofe, não num barco celestial, mas num navio de penedos (alusão às serranias transmontanas), contudo, na terceira, já desliza num barco rabelo (embarcação típica do rio Douro que transporta o vinho do Porto).
O poeta volta a usar o presente do indicativo com o mesmo objetivo da primeira estrofe.


Notas

1.ª) S. Leonardo de Galafura é um miradouro que existe no alto da montanha, junto a uma capelinha, em Galafura, freguesia do concelho da Régua, distrito de Vila Real. Vista do sopé do monte, dá a imagem de navegar pelo espaço.

2.ª) Os barcos rabelos são barcos à vela, característicos do rio Douro, usados para o transporte das pipas de vinho do Porto, do Alto Douro até Vila Nova de Gaia, onde se situam as principais caves.

3.ª) Mosto é o sumo de uva, antes da fermentação completa.

4.ª) Socalcos são porções de terreno nas encostas dos montes, suportadas por muros de pedra; são característicos da paisagem duriense.

5.ª) Este poema, como tantos outros, é o testemunho do amor telúrico de Miguel Torga pela terra duriense, daí o antecipado desengano do santo/Torga, pois ama-a e vai abandoná-la. Este amor telúrico permite compreender também o pseudónimo que Adolfo Correia da Rocha adota: a escolha de Miguel é uma homenagem ao escritor castelhano Miguel de Unamuno (1864-1936), que admirava profundamente, e a Miguel de Cervantes (1547-1616), outro escritor espanhol, autor de D. Quixote; Torga é o nome de uma urze transmontana.

6.ª) Como é característico em Miguel Torga, o poema apresenta uma estrutura circular: começa com a descrição da viagem vagarosa do santo através do Douro, apresenta a razão dessa lentidão e do desengano, antecipando o que estará «lá» no final do caminho (o futuro) e retorna ao presente e à descrição da lenta viagem em direção à eternidade.

7.ª) Em suma, as razões que justificam a lentidão do santo são as seguintes:
(A) no «cais divino» não haverá socalcos, vinhedos, água do Douro e montes;
(B) o santo é feliz na terra, onde moram a felicidade, a vida e a luz;
(C) a viagem é lenta para que o santo possa prolongar o prazer de sorver «[…] mais de cheiro / A terra e a rosmaninho!» (vv. 26-27).


Estado de espírito do sujeito poético
• sem pressa de abandonar o «cais humano», a terra duriense;
• feliz no «cais humano»;
• arrependido de deixar o «cais humano»;
• desengano e desiludido antecipadamente da vida que está para lá do «cais divino»;
• saudoso da terra duriense.


Caráter alegórico do poema

O sujeito poético estabelece um paralelo entre terra e céu, o «cais humano» e o «cais divino», duas metáforas que sobrevalorizam a terra, indício do telurismo de Miguel Torga.
Esse paralelismo atinge foros de heresia, pois o «cais humano» apresenta características e encantos que se sobrepõem ao «cais divino».


A irregularidade formal

O poema é constituído por três estrofes. A primeira é constituída por 11 versos, a segunda por 9 e a terceira por 7.
Este decréscimo de versos de estrofe para estrofe poderá simbolizar a aproximação da viagem do santo do seu destino, uma viagem que se vai, portanto, aproximando do seu final.
Relativamente à métrica, também esta é irregular, alternando verso longos com curtos, o que poderá sugerir a irregularidade do percurso feito.


O mito de Anteu

Anteu foi um gigante, filho de Neptuno (Poseidon) e da Terra (Geia), que habitava na Líbia e que obrigava todos os viajantes a lutar. Depois de os ter vencido e morto, enfeitava o templo do pai com os despojos. Enquanto estivesse em contacto com a sua mãe, geia, isto é, a Terra, Anteu era invulnerável. Um dia enfrentou Hércules e nessa luta recuperava forças cada vez que tocava no solo e era invencível. Então, Hércules ergueu-o nos braços e sufocou-o sobre os ombros, conseguindo desta maneira eliminá-lo.
Fala-se deste mito sempre que alguém estabelece contactos com a origem das suas ideias ou dos seus sentimentos e recupera energias físicas ou psicológicas.
Fazendo a apologia deste mito, Miguel Torga valoriza sobretudo a terra-mãe. Tal como Anteu, o poeta é atacado por forças que o abatem, mas, à semelhança da personagem mítica, retempera as suas energias na sua terra natal, S. Martinho de Anta (cf. Diário XI, 20 de setembro de 1968, e XV, 11 de setembro de 1989).


Recursos expressivos

1. Nível fónico

. Estrofes: três estrofes irregulares (11, 9 e 7 versos).
. Métrica irregular: há versos de 2 a 11 sílabas.
. Rima      - versos soltos em todas as estrofes;
- emparelhada e interpolada (primeira e segunda estrofes), emparelhada e cruzada (última estrofe);
- consoante (“mosto”/”posto”);
- pobre (“mosto”/”posto”) e rica (“comando”/”sulcando”);
- grave (“mosto”/”posto”).
Todos estes fatores se conjugam para dar uma ideia de irregularidade do espaço observado.
. Ritmo repousado, sobretudo na última estrofe, em harmonia com o andamento moderado da viagem de São Leonardo.
. Transporte: vv. 3-4, 5-6, 10-11, etc.
. Sons dominantes:

. Aliterações:

- do fonema /p/: sugere a viagem;
- do fonema /m/: sugere o apelo à terra duriense.


2. Nível morfossintático

. Futuro do indicativo (2.ª parte): exprime a referência à vida eterna para onde o Santo lentamente se dirige.
. O número de adjetivos é reduzido e os poucos existentes ligam-se a substantivos metafóricos: “doce mar de mosto”, “cais humano”, “rasos os montes”.
. Predomínio da coordenação: desenrolar da viagem de S. Leonardo, lenta e sequente.
. Orações:
- oração conclusiva: estabelece uma relação de consequência entre o “desengano antecipado” do Santo e a sua regalada demora ao longo do Douro;
- oração subordinada relativa: “que gasta no caminho”.

3. Nível semântico

. A construção alegórica do poema do poema orienta-se no sentido de enaltecer os encantos da terra e paisagem duriense, de traduzir o apego à terra.
. Metáforas:

. Imagens:
- as metáforas da 1.ª estrofe apresentam-nos a imagem do Santo como o capitão dum “navio de penedos”, olhando saudosamente para trás, ao deixar a terra duriense em direção à vida eterna, e, simultaneamente, revelam a atração telúrica de Torga pela terra transmontana, o fulcro da sua inspiração poética;
- a imagem dos três últimos versos da segunda estrofe deixa antever a eternidade sem montes, o que roubará à vista a cor dos horizontes.
. A expressividade dos advérbios “devagar” e “lentamente” e dos três últimos versos da terceira estrofe: a morosidade da viagem = o apego de S. Leonardo à terra duriense.
  Torga imagina o Santo a navegar não num barco celestial, como as barcas de Gil Vicente, mas “num navio de penedos” (alusão às serranias transmontanas) e, para melhor se identificar com a terra duriense, na última estrofe, o Santo já desliza num “barco rabelo” (embarcação típica do rio Douro, que servia para o transporte do vinho do Porto).
. Hipálage: “Lá não terá socalcos nem vinhedos na menina dos olhos deslumbrados” (o deslumbramento com a paisagem é do Santo e não dos olhos).
. Sinestesia: “é um sorvo [paladar] a mais de cheiro” [olfato].

Durante trinta anos, Torga tentou o “retrato poético” do Santo que sempre se lhe furtava. Mas nesse dia o “instantâneo” surgiu. Para a figura do Santo está transporta a apetência telúrica de Torga, pois, mesmo o Santo, a caminho do Paraíso, como um capitão “à proa dum navio de penedos,/A navegar num doce mar de mosto” (a paisagem duriense), não tem pressa “de chegar ao seu destino”, porque “feliz no cais humano/É num antecipado desengano/Que ruma em direção ao cais divino”. E isto porque sabe que lá os seus olhos não se deslumbrarão com os socalcos e vinhedos do Douro, com os montes, com tudo o que deixa, e tudo o que vai encontrar “São charcos de luz/Envelhecida/ (...) Até onde se extinga a cor da vida”. A viagem no rabelo é, pois, lenta para poder prolongar o prazer de sorver mais um pouco o cheiro da terra e do rosmaninho.


COVID-19: ponto de situação do dia 16 de março


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