Este poema foi incluído na obra O
Grito Claro, publicado em 1958. Nele, Ramos denuncia a desumanização de que
são vítimas os trabalhadores do Estado, traduzida na alienação que o trabalho
rotineiro e monótono impõe a quem dele necessita para (sobre)viver e que se
traduz na perda da individualidade que advém do esmagamento do espírito do
funcionário público, tratado como uma máquina ou uma parte dela. A sociedade
não liberta; pelo contrário, escraviza; não valoriza e dignifica, antes
desumaniza.
Na primeira estrofe, o sujeito
poético autocaracteriza-se como uma pessoa solitária, confusa, sem amigos e
despojada de sonhos, com uma visão profundamente negativa e pessimista do mundo
em que vive, que o oprime.
Diariamente reduzida a uma coisa, um
objeto, o “funcionário cansado” perceciona a cidade como um espaço físico (e
social) asfixiante e opressivo, no qual a escuridão da noite, as ruas e as
casas se tornam ameaçadoras ao agigantarem-se contra ele (“as casas engolem-nos”)
– a casa é representada como um monstro que o engole (devora); as ruas
limitam-lhe os movimentos (“ e a rua é estreita / em cada passo”), como secada
uma fosse uma calha à qual está preso (como o comboio aos carris) e lhe
dirigisse os passos até ao quarto onde vive, solitário, e para onde retorna
todas as noites com o coração pesado e a alma triste. O espaço, com efeito,
aprisiona-o, a ele e aos seus sonhos, perdendo tudo o que possa ter de mais
íntimo, pessoal e criativo. O que sobra? Um “funcionário cansado”,
“irremediavelmente perdido no [seu] cansaço”. Atente-se na repetição,
nomeadamente da expressão “num quarto só” (quatro vezes em todo o poema), que
acentua a solidão do sujeito poético. Por outro lado, a personificação da
noite, responsável pela dispersão dos sonhos e dos amigos, bem como das casas
que o engolem, sublinha a confinação e o aprisionamento do «eu», vítima de uma
realidade que não o deixa respirar.
A cidade, percecionada, pois, como
extensão do poder instituído, impede a libertação da servidão em que o
funcionário se encontra, situação que é partilhada pela generalidade dos que
executam tarefas burocráticas (atente-se no uso do plural “engolem-nos” e
“sumimo-nos”) através das quais o Estado afirma o seu poder, ao mesmo tempo que
os responsabiliza, na medida em que as normas são superiormente decididas. Ao
funcionário cabe apenas cumprir as ordens que lhe dão e é essa obediência que
lhe garante uma vida “útil” à sociedade, o seu sustento e o da família.
No final do dia, espera-o um quarto,
uma outra “gaiola” idêntica à do pássaro que observa através da janela do
escritório (verso 16). Ao espaço reduzido em que trabalha, sucede o espaço
exíguo em que dorme sozinho. A pequenez do espaço em que faz a contabilidade
continua cá fora e, quanto mais pequenos forem os espaços, mais fácil será
exercer um controlo sobre os indivíduos, tanto na vida pessoal como na vida
profissional e social. Culpado do crime de desejar uma vida na qual lhe seja
permitido sonhar, criar, manifestar a sua singularidade de ser humano, o
funcionário é condenado à solidão do quarto para não ser contaminado com
pensamentos alheios ao desejo de ser útil à nação por parte do “chefe”, cujas
promoções se fazem à custa do cumprimento escrupuloso do «dever» e da denúncia
de quem pensa de modo diferente.
Habituado a ser dirigido pelo
“chefe”, este funcionário sente-se perdido fora do local de trabalho; o mundo
parece-lhe confuso, as relações sociais são inexistentes ou ocasionais, a
escuridão causa-lhe medo, porque é nela que se encontra consigo próprio e o que
vê dentro de si deixou há muito de fazer sentido, é uma noite mais negra que a
noite citadina: “A noite trocou-me sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos /
tenho o coração confundido e a rua é estreita / […] com toda a vida às avessas
a arder num quarto só.” O sujeito poético, solitário, sem amigos e despojado
dos seus sonhos, manifesta uma visão pessimista da sua vida e do mundo que o
rodeia, sentindo-se emparedado pelo espaço.
No início da segunda estrofe,
autocaracteriza-se como um funcionário “apagado” e “triste”. O seu cansaço
nasce do conflito que existe entre o seu reconhecimento de uma vida dedicada à
colaboração com uma organização social que o desorganiza a ele, dado que lhe
suga a vitalidade, e a necessidade de o fazer, apesar de saber que é apenas uma
peça de uma vasta engrenagem e das manifestações de desprezo que sente. O seu
lado visível aceita as ordens provenientes do superior hierárquico e o seu lado
invisível assiste, impotente, ao esmagamento quotidiano da sua individualidade.
Isto significa que existe um
desajuste entre a sua sensibilidade de poeta e a sua condição de funcionário.
De faco, esta obriga-o a uma vida compassada pelo ritmo dos números e dos
documentos com que trabalha, o “Débito e Crédito” referenciado no poema. No
entanto, em desajuste relativamente a esta condição de funcionário, a sua alma
insatisfeita “não dança com os números” e arrasta o seu “olhar lírico” de poeta
para lá da realidade, para a beleza de um pássaro, para as “velhas palavras
generosas” do seu sonho aprisionado. Neste passo do poema, o sujeito poético
recorre, nalguns versos, a uma ironia triste: “A minha alma não dança com os
números”, “o chefe apanhou-me com o olhar lírico”, “debitou-me na minha conta
de empregado”.
Apesar de tudo, é no local de
trabalho, onde vigora o “policiamento do chefe”, que o funcionário ousa deitar
o “olho lírico” (ironia e metáfora: traduzem a possível transformação que a
vida poderia trazer à sua vida), para a “gaiola do quintal em frente” (metáfora),
atitude que o faz sentir “envergonhado” por se evadir, momentaneamente, do
“Débito e Crédito Débito e Crédito”. Este passo do poema pode ter duas
interpretações: por um lado, o funcionário sentirá inveja do pássaro por este
lhe parecer ter tido mais sorte, dado que nasceu pássaro inconsciente da sua
prisão (os animais irracionais, enquanto tal, não pensam, não refletem, pelo
que não têm consciência do que são ou experienciam); por outro lado, o olhar
que o «eu» lhe dirige é um olhar de cumplicidade terna com o animal
encarcerado, tal como ele.
A realidade é que, da janela do
escritório, o funcionário observa um espaço exterior domesticado e murado do
qual está ausente o céu; o desejo por parte dos agentes do poder de dominar os
que se encontram na base da pirâmide é extensiva à natureza. Quer o ser humano
quer a natureza não humana existem apenas para serem úteis: o funcionário faz a
contabilidade, o quintal produz o que lá decidiram plantar e o pássaro decora o
quintal e distrai o dono com o seu canto.
Domesticado como um animal numa
jaula, o funcionário, “cansado” de pactuar com uma sociedade em que não se
revê, sente-se “envergonhado” após ter sido “apanhado” a olhar o pássaro preso.
O “chefe”, estupidificado por anos de chefia, não percebeu que um ser humano
digno desse nome lamenta a triste vida dos pássaros engaiolados, eles que
nasceram para voar no infinito do céu. Provavelmente convencido de que o
funcionário desejava trocar a vida rotineira e monótona de “o deve” e “o haver”
por outra diferente, decidiu diminuir-lhe o salário, pois muitos outros
estariam dispostos a fazer a contabilidade dias inteiros sem tirar os olhos do
papel.
A divisão interior que o conflito
entre a vontade da “alma” e a necessidade de ser um funcionário exemplar não se
manifesta em revolta contra o agente controlador da sua vida, apenas se anuncia
nas perguntas retóricas que o funcionário se coloca e para as quais sabe a
resposta: “Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? / Porque
me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?” Estas interrogações
traduzem o desalento solitário, a insatisfação calada e só confessada a si
mesmo.
Cansado de não viver, mas da vida
desagregadora da sua realidade interior, da ausência de esperança / sonho em
que a sua vida se transformou, tem consciência de que, caso escolhesse um
caminho alternativo à submissão ao “chefe”, se condenaria à angústia gerada
pelo desemprego, pela despromoção social, pelo sentimento de culpa e pela
miséria. Na engrenagem social de que ele e a maioria das pessoas faz parte, não
há final feliz para ninguém, porque a exploração dos que estão empregados e o
desespero dos que procuram emprego é mortal para uns e outros, ainda que por
razões diferentes.
Na solidão do quarto, o funcionário
“soletra” as “velhas palavras generosas” (metáfora) que outrora o fizeram
sentir-se vivo, talvez porque já não as saiba pronunciar tão bem como
antigamente, de tão descabidas que elas agora lhe parecem no isolamento em que
vive e em tempos de desprezo pelo que é genuinamente humano.
Em suma, na segunda estrofe, o «eu»
poético revela as razões da sua insatisfação e do seu cansaço: a atividade que
exerce como funcionário público, daí o seu autorretrato – apagado, triste e
inadaptado à rotina de um trabalho que não é compatível com a sua alma de
“poeta”. O seu trabalho envolvendo contas e contabilidade, cálculos e números
fazem parte de um mundo material, de um tipo de atividade da qual a sua alma
lírica não participa.
Apesar da sua condição de funcionário
que arrasta uma existência apagada, o funcionário soletra “velhas palavras” que
povoam o seu sonho abafado – “flor”, “rapariga”, “amigo”, “menino”, “irmão”, “beijo”,
“namorada”, “mãe”, “estrela”, “música”. São palavras que podem encher de calor
a alma mais fria, de cor o lugar mais cinzento, palavras carregadas da poesia
que o funcionário não ousa, apenas timidamente soletra e deixa escapar do “olho
lírico”. A enumeração dos versos 22 a 24 simbolizam aspetos como amor, afeto,
beleza, vida, inocência, amizade, alegria, luz, que a vida tem e ao «eu»
faltam.
No entanto, o sonho de libertação é
impossível, pois o sujeito poético esconde, envergonhado, as suas evasões
poéticas, como se verifica com o olhar a gaiola do quintal em frente do seu
escritório, está soterrado na prisão da sua vida, autolimitado, sozinho na
noite que o venceu e lhe “trocou os sonhos e as mãos”. Aprisionado num espaço
físico e social absolutamente asfixiante que o engole e aos seus sonhos, num
universo de funcionários que só podem ter olhos para os papéis, perde tudo o
que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo, e fica um “funcionário
cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] […] cansaço”. De acordo com o
«eu» poético, a existência sem poesia constitui um grande vazio, por isso
intenta um momento de evasão, traduzido pelo soletrar de “palavras generosas”,
sem as quais a vida se resume a nada.
Em suma, neste poema de António
Ramos Rosa, o poeta aborda a temática da opressão da sociedade de meados do
século XX, em pleno Estado Novo, e denuncia a desumanização de que são vítimas
os trabalhadores estatais, manifestada na alienação que o trabalho rotineiro
impõe a quem dele precisa para (sobre)viver, que se manifesta na perda da
individualidade decorrente do esmagamento do interior do sujeito poético,
tratado como uma máquina ou peça dela. A perda dessa interioridade é denunciada
nos versos que exprimem o estado de confusão mental de um funcionário que, após
o final de um dia de trabalho, projeta no espaço físico que o rodeia os sentimentos
e emoções que tem dentro de si e que é a realidade desconfortável que lhe
resta, depois de destruída a sua humanidade numa atividade profissional que
assenta na desvalorização do pensar, do sentir, do sonho e da liberdade
individual.