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segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Análise do capítulo XXI de O Cortiço

     Referência às aspirações de J. Romão, particularmente em relação à mulher, que agora é um obstáculo à sua ascensão social, ou seja, ao seu casamento com Zulmirinha. Bertoleza era um "ponto negro" às suas ambições. Começa a haver a urgência de se desfazer dela:
        = "E se ela morresse?"
        = "E se eu a matasse?"
        = "E se eu a esmagasse aqui mesmo?"
    Esta gradação mostra essa urgência e a intensidade da ambição de J. Romão.
    Temos depois o episódio da morte do filho da Machona: Agostinho. Mas o mais importante é a reação de Romão, que nunca fora humanitário e agora vê despertar-se-lhe uma certa sensibilidade. Mas este sentimento é hipócrita, porque não é verdadeiro.
    Surge Botelho, que vai ajudar Romão a realizar as suas ambições. Este recurso a Botelho para que fizesse o trabalho sujo, mostra uma certa falta de vigor em Romão, que sempre fizera tudo, legal ou ilegalmente. É este trabalho sujo que vai resolver o problema de Romão: entrega de Bertoleza ao seu dono, pois, ao contrário do que ela pensava, nunca deixou de ser escrava. Bertoleza apercebe-se de tudo e sente que merece ser tratada com mais respeito: é um grito de justiça perante a ambição de João Romão.

Análise do capítulo XX de O Cortiço

    Modificação do espaço e também dos seus habitantes.
    Piedade acaba por ser o último indício do que era antes o cortiço ao atingir os últimos graus de degradação. O que antes caracterizava o cortiço de J. Romão passa agora a caracterizar o outro cortiço, o "Cabeça-de-Gato": um organismo vivo com uma enorme sensibilidade.
    O novo cortiço de Romão é agora uma espécie de pensão, onde habitam já pessoas de uma claase social mais alta e não apenas lavadeiras e trabalhadores. As pessoas passam a ser vistas individualmente e já não se verifica o espírito de grupo.
    O capítulo termina com a degradação que atingiu Piedade e estabelece o contraste com a outra Piedade, que fora casada com Jerónimo. Mostra-se a influência do meio e da raça. Obviamente, isto vai refletir-se também no comportamento de Senhorinha. É todo um ciclo que se repete.

Análise do capítulo XIX de O Cortiço

     A vida no cortiço prossegue: as obras começaram e os moradores adaptar-se da melhor forma possível. Bertoleza sente-se presa na rotina e na monotonia e sente-se triste por sentir que João Romão a trata de modo diferente. Agora, não passa de um estorvo no caminho do homem, que pretende pedir a mão de Zulmira.
    Enquanto isso, Jerónimo e Rita procuram aproveitar a nova vida: ele tinha posto de lado os seus sonhos portugueses (de onde vinha) e tornara-se quase um legítimo brasileiro, com os mesmos hábitos e vícios. Piedade, por seu turno, recuperada da luta com Rita, começa a beber. A sua filha com Jerónimo, que passava a semana no colégio, no centro da cidade, consola a mãe aos fins de semana. Durante algum tempo, o pai deixa de pagar o colégio, pois até o pão ao padeiro deve. Num contacto posterior com Piedade, durante o qual ele se encontra bêbedo, ambos brigam e o homem confessa que deixaria de pagar a escola da filha.

Análise do capítulo XVIII de O Cortiço

     Volta-se ao incêndio, a Libório e à sua relação com João Romão. Este episódio serve para caracterizar moralmente o taberneiro, que se aproveita da situação e rouba o dinheiro ao velho, deixando-o morrer.
    Temos depois a referência ao cortiço depois do incêndio: ficam os destroços do espaço e das pessoas. A destruição deste cortiço e a ambição de J. Romão levam-no a construir outro cortiço. Aproxima-se mais de Miranda.
    Romão conta o tesouro de Libório, mas desanima quando vê que grande parte do dinheiro já não tem validade. Porém, ele é muito prático em relação ao dinheiro: a culpa não é da sua ambição, mas de Libório, que o guardou, e do governo, que limita os prazos de validade.
    As mudanças do cortiço não se verificam apenas ao nível do espaço, mas também das personagens. J. Romão continua a ver Bertoleza como obstáculo às suas ambições. Ela, apesar de o seu futuro ser estreito e sombrio, continua a adorar o amigo.
    Temos ainda a referência a Rita e Jerónimo, que já não apresenta nenhuma das características que faziam dele português, nem os seus hábitos de trabalho. Jerónimo abrasileirou-se de todo: preguiçoso, extravagante, luxurioso, ciumento; sem fazer economia, entregue apenas aos prazeres com a mulata.
    Pelo contrário, Piedade vivia num progressivo decadentismo, afundado na bebida e para quem o único prazer era a visita da filha, que vem desempenhar no cortiço o papel que antes era da responsabilidade de Pombinha. São duas personagens a quem foi dado um estatuto superior: Pombinha e Senhorinha, que também vão ter uma relação como a de Pombinha e Léonie.
    O capítulo termina com a visita de Piedade a Jerónimo e num ambiente de degradação.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A vós, Dona abadessa", de Fernando Esquio

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Fernando Esquio, mais uma vez em linguagem crua, tem como alvo uma abadessa, a quem o trovador alegadamente lhe envia um conjunto de “objetos de consolação” (“caralhos franceses”), ricamente adornados. A composição poética toma maliciosamente a forma de um bilhete cortês que acompanha a oferta, com o nome do “servidor” logo no segundo verso. Ou seja, o poema aborda o tema da masturbação feminina.
    O trovador dirige-se à abadessa através de uma apóstrofe (“A vós, Dona abadessa”), para lhe declarar que lhe vai enviar um presente (“de mim, Dom Fernand’ Esquio, / estas doas vos envio” – vv. 2-3), porque sabe que o merece: “quatro caralhos franceses” para ela e dois para a prioresa. O que é posto aqui em questão é a condição celibatária, isto é, a falta de atividade sexual, dos religiosos. O trovador acha-se no direito de oferecer um consolo (o que designaríamos hoje por vibrador) à abadessa, para que esta experimente, ainda que indiretamente, o membro viril de um homem. Desta forma, denuncia-se que as religiosas, por não poderem possuir parceiros sexuais, tinham a possibilidade de se satisfazer sexualmente com consolos (“caralhos franceses”).
    Ironicamente, o trovador chama-se amiga, mas é por causa dessa relação de amizade que não olha a despesas (“nom quer’ a custa catar”) para lhe oferecer o mais depressa possível (“ca nom tenho al tam aginha”, quer dizer, não tenho nada rápido) “quatro caralhos de mesa” (aparentemente, os consolos adornavam os tocadores das damas). Dito de outra forma, o presente foi caro, mas o trovador não quer fazer conta dele (v. 9), pois a religiosa (a abadessa) é sua amiga. De seguida, o «eu» poético, no que diz respeito à procedência, assegura que os obteve através de uma burguesa (“que me deu ua burguesa”), e enviar-lhos-á em saquinhos próprios, cada um contendo dois.
    O presente agradará à abadessa (“Mui bem vos semelharam”), pois possuem traços especiais: têm cordões (“ca sequer levam cordões”), são descomunalmente grandes (“quatro caralhos asnaes”) e possuem um manípulo que facilita o seu manuseio (“enmanguados em coraes / com que calhedes a mam.”). Assim sendo, o trovador destaca quatro aspetos dos consolos: a origem, a qualidade, o tamanho e a praticidade.
    Em primeiro lugar, ele deixa bem claro que os caralhos são franceses (origem), o que implica que haveria outros tipos de caralhos no mercado além daqueles. Dito isto, tendo em conta que as práticas sexuais femininas eram fortemente reguladas pela Igreja, como poderiam as mulheres aceder a brinquedos sexuais? Parece evidente que a esmagadora maioria não teria acesso aos mesmos, desde logo porque não seria fácil encontra-los. Seja como for, a cantiga parece fornecer uma solução para a questão, quando refere a figura de uma burguesa (a qual teria fornecido os consolos), o que quererá dizer que eles seriam encontrados num ambiente urbano. Por outro lado, a referência à burguesa e ao seu papel de «fornecedora» dos objetos significará que se trata de um assunto exclusivamente feminino, tratado entre mulheres.
    Em segundo lugar, temos a qualidade do produto. O «eu» poético descreve os “caralhos franceses” e dá conta que são ornados de coral (v. 20), o que aponta para o facto de haver o cuidado de os enfeitar e embelezar, desde logo porque, além da função sexual que cumpriam, eram igualmente um artefacto de mesa (“quatro caralhos de mesa” – v. 12), adornos. Claramente, estamos na presença de uma ironia.
    Em terceiro lugar, é abordada a questão do tamanho, que, de acordo com o verso 19 (“asnaes”), evidencia a qualidade do produto. Por outro lado, esta referência ao tamanho descomunal indicia que havia variedade de tamanhos à escolha. Na cantiga, o trovador, porque é amigo dela, faz questão de enviar à abadessa os melhores / maiores possíveis, para lhe provar o sentimento que nutre pela mulher e porque esta merece.
    Em quarto e último lugar, a praticidade é sugerida pelo facto de os “caralhos” possuírem um manípulo que facilitava o seu manuseio. Ou seja, os instrumentos eram de grandes dimensões e fáceis de manusear, pelo que certamente proporcionariam prazer a quem os usasse.
    A cantiga dá testemunho da existência de brinquedos eróticos na Península Ibérica medieval, de origens variadas, aspetos, tamanhos e materiais. O acesso, quase de certeza, seria bastante restrito, e itens mais paramentados – como os referenciados à abadessa – deveriam ter um custo elevado. Note-se que, de acordo com o verso 15 (“Muito bem vos semelharam”, ou seja, me lembram de vós), não seria a primeira vez que a abadessa possuiria esse tipo de objeto.
    Por outro lado, se havia outros tipos de instrumentos e com outras imagens, estes talvez fossem mais acessíveis a outras mulheres interessadas. Seja como for, esta cantiga alude, por um lado, a uma temática diferente no contexto da poesia trovadoresca – a masturbação feminina – e, por outro, traduz práticas dissidentes das regulamentadas pela Igreja. O sexo – ou, como é o caso desta composição poética, a sua simulação – podia consumar-se de modo diverso do regulamentado e permitido pela união matrimonial. Se uma abadessa conseguia ter acesso a um instrumento de prazer como este, o que impedia que uma mulher casasa também o pudesse?

Análise do capítulo XVII de O Cortiço

     Os partidos unem-se, agora, contra um inimigo comum, os membros do outro cortiço. Entretanto, dá-se um novo incêndio e surge também a polícia. Apesar de inimigos, os membros do "Cabeça-de-Gato" afastam-se e deixam que os outros resolvam o seu problema e apaguem o fogo, que devasta quase todo o cortiço. Agora é a luta dos bombeiros contra o fogo, que é aplaudida pelos habitantes do cortiço. Passa-se rapidamente da aflição para a ovação. Isto mostra o cortiço como um organismo vivo, com uma enorme sensibilidade, respondendo a todos os apelos dos sentidos: luta de duas mulheres  luta de dois partidos  luta dos dois cortiços  incêndio  aflição  ovação. Isto mostra como, em pouco espaço de tempo, o cortiço experimenta sensações diferentes.
    O capítulo mostra ainda a capacidade de união, apesar das divergências, quando a situação o exige. A rivalidade que se pode estabelecer entre os grupos marca a união entre cada um. Este é o último grito da união que existia neste cortiço. Sucedem-se as obras e o ambiente modifica-se.

Análise do capítulo XVI de O Cortiço

     O capítulo volta a Piedade, aos seus lamentos e aflições pela ausência do marido, que a levam a partir em sua busca. Mas encontra Rita e o contraste entre ambas é evidente e acabam por lutar. Esta luta de mulheres acaba por se transformar numa luta de facções: os portugueses, que apoiam Piedade, e os brasileiros, que estão do lado de Rita Baiana. Mas a luta é interrompida por um novo acontecimento: a chegada dos habitantes do "Cabeça-de-Gato" para vingarem a morte de Firmo.

Análise do capítulo XV de O Cortiço

     Referência a Florinda, que apenas procura um homem que trate bem dela, que lhe dê comida e vestuário. Quando tal não acontece, muda de homem. Temos a enumeração de factos com um certo grau de sordidez e repugnância.
    Mas o fundamental do capítulo é a vingança encetada por Jerónimo. Firmo é morto e, então, nada já impede a relação de Jerónimo e Rita, que reconhecem o amor e a paixão que os juntava.
    A indicação do caráter da personagem era mais subtil no Realismo, ao contrário do que aqui acontece, onde temos a explicação e apresentação do que provocou a mudança do caráter de ambos. Morto Firmo, unem-se como se estivessem cumprindo um destino; a união é um condicionamento da raça e o clima. O sujeito da mudança é Rita, símbolo dessa raça e desse clima. A relação que se vem a verificar entre ambos ainda é aquela que menos foge à normalidade, ao contrário, por exemplo, da de Pombinha e Léonie.
    O que leva também Rita a aproximar-se de Jerónimo é a procura de uma raça superior: "... e Rita preferiu no europeu o macho da raça superior."

Análise do capítulo XIV de O Cortiço

     A relação de Rita e Firmo começa a desmoronar-se e ele apercebe-se disso. O fim tem o auge quando Rita não comparece a um encontro marcado por ambos. Isto acontece precisamente no dia em que Jerónimo deixa o hospital e a sua principal ambição é vingar-se de Firmo, conseguindo ao mesmo tempo afastá-lo de Rita, o que favorece a sua aproximação.

Análise do capítulo XIII de O Cortiço

     Temos a descrição da evolução do cortiço e o aparecimento de um outro, o "Cabeça-de-Gato", estabelecendo-se entre ambos uma grande rivalidade.
    O afastamento de Rita e Firmo acentua-se, pois, enquanto ela mora no cortiço de J. Romão, ele mudara-se para o cortiço inimigo.
    Porém, o capítulo centra-se nas transformações operadas em João Romão, ao nível do vestuário, dos hábitos e costumes. Mas a modificação é apenas física e exterior; interiormente continua na mesma. Miranda começa a aceitar Romão e o fosse entre este e Bertoleza acentua-se cada vez mais.
    Começa a ganhar relevo a figura de Botelho, personagem muito prática, que vai incrementar o casamento de J. Romão com a filha de Miranda, que não é mais que um negócio.
    Romão é convidado para a casa de Miranda. Fica a ideia de que a sociedade é apenas exterior. A família de Miranda e Romão apenas são diferentes em termos exteriores.
    Bertoleza começa a ser sentida como um obstáculo para os objetivos ambiciosos de J. Romão.

Análise do capítulo XII de O Cortiço

     Também em relação a Pombinha se confirma a hipótese da influência do meio sobre as personagens, tal como já acontecera em relação a Jerónimo e a João Romão.
    Algo vai distinguir Pombinha das outras personagens do cortiço: alcança um grande grau de consciência do que a rodeia e dos seus sentimentos. A mudança é visível a nível físico, mas subtil a nível psicológico e tem como causas a relação com Léonie e o ciclo menstrual, que lhe dá uma nova visão das coisas, e ainda a carta de Bruno para a mulher Leocádia. Apercebe-se da relação entre homem e mulher e tem uma visão irónica e cínica. Isto revela uma certa superioridade e acaba por ser vítima da sua própria inteligência. Prova-se a tese proposta: influência da raça, meio e momento na personalidade. O homem não tem capacidade de resistir ao condicionamento causado pelos três fatores apontados.

Análise do capítulo XI de O Cortiço

     Denuncia-se o autor do incêndio: a bruxa. É importante referir o processo de construção da forma e estrutura do romance: por exemplo, acerca do fogo já nos tinham sido dados indícios nos capítulos interiores (cap. X, por exemplo, na conversa entre a bruxa e Marciana). Criam-se expectativas que depois se realizam. Isto dá orientação e organicidade à narrativa.
    Este processo marca uma diferença em relação à literatura anterior: há uma maior preocupação pela forma e pela estrutura: os indícios obrigam a que a narrativa se oriente num certo sentido.
    Na romagem que fazem à polícia, mais uma vez se evidencia o comportamento de grupo, o espírito coletivo, que se levanta em coro para dar uma resposta na delegacia.
    Mas, neste capítulo, há outros aspetos importantes: Rita rendera-se à atitude atenciosa de Jerónimo, o que provoca cada vez mais a aproximação entre ambos.
    Referência ainda à contínua evolução de João Romão e seu progressivo afastamento de Bertoleza.
    Mas por um maior processo de evolução passa Pombinha. Temos o recurso à analepse para explicar o porquê dessa evolução. Mais uma vez, temos o anúncio de expectativas que se vão concretizar.
    Durante o jantar oferecido por Léonie a D. Isabel e Pombinha, verifica-se que D. Isabel aceita tudo o que vem da prostituta, o que a aproxima do resto do cortiço. Pombinha vai passar uma experiência que vai ter nela importantes repercussões: a homossexualidade, que é uma prática pouco aceite na época.
    A descrição de A. A. é nua e crua: dá conta de todas as reações do corpo aos sentidos e fica uma ideia de animalidade e bestialidade. Pombinha aceita, mas fica cheia de pudor e vergonha. Daí a sua necessidade de ficar só.
    O final do capítulo pauta-se por uma certa individualidade em relação a Pombinha, o que só acontece com as personagens principais e contrasta com a ideia de grupo que fica do resto da obra. O que ela sente é ambíguo: sente arrependimento, mas também surpresa face ao prazer que é possível sentir. O sonho aparece mais como uma alegoria do prazer de ser possuída. Há uma sobreposição do plano onírico e do plano físico. Isto vai provocar grandes transformações em Pombinha, que vão continuar no capítulo seguinte.

Análise da cantiga "Ansur Moniz, mui’houve gram pesar", de Afonso X

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Afonso X, constituída por três sétimas de rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABBACCB, satiriza Ansur Moniz, numa chufa em que, ironicamente, defende este cavaleiro que tinha tido problemas com os seus porteiros. O indivíduo é apresentado como um fidalgo rural de pouco importância que aspirava a ser um grande senhor, uma personagem desconhecida, talvez a mesma que aparece em duas cantigas de Vasco Peres Pardal, daí a queixa por os porteiros o terem incluído no grudo dos escudeiros, de baixa condição social.
    No verso inicial, o sujeito poético expressa o seu grande pesar (obviamente irónico) por os porteiros (o porteiro era uma figura importante nas cortes medievais – reais e senhoriais –, visto que era a si que competia fazer a triagem dos visitantes e indicar-lhes o lugar) terem colocado Ansur Moniz, de forma vil ou como um vilão (“vilanamente” – advérbio de modo), entre os escudeiros. O advérbio enfatiza o modo desonroso como o alvo da sátira foi tratado. Ansur Moniz é uma personagem desconhecida que, de acordo com o texto, possuía pretensões de grande senhor (tratar-se-á talvez do mesmo que surge em duas cantigas de Vasco Pardal), havendo que interpretar a queixa por os porteiros o incluírem no grupo dos escudeiros, de baixa categoria social. Em sinal de discordância, o «eu» lírico censura-os (atente-se na fórmula exclamativa de jura “Per boa fé”), condenando o tratamento dedicado a Ansur Moniz, pois este provém “dos de Vilan’Ansur de Ferreiros”. Note-se que este topónimo se refere a um lugar situado na província de Burgos: Villasur de Herreros. Por outro lado, o trovador faz nestes versos um jogo com o nome do fidalgo (vilão Ansur), bem como com o topónimo, algo em torno de “vilão ao sul de Ferreiros”. Neste sentido, podemos interpretar a fala do sujeito poético, ao referir-se às origens de Moniz, como significando que ele provém de uma linhagem mais humilde.
    Na segunda estrofe, o trovador continua a detalhar a ascendência de Ansur Moniz, referindo que também descende dos “d’Escobar” e de Campos, mas não dos de Cizneiros. Estes três topónimos pertencerão, provavelmente, ao mesmo território, isto é, Escobar referir-se-ia a Escobar de Campos, concelho da atual província de Leão, ao passo que Cizneiros será Cisneros, um concelho localizado no centro-sul da província de Palência; finalmente, Campos fará referência ao anteriormente citado Escobar de Campos ou, também, Terra de Campos, uma extensa comarca que se estende pelas províncias espanholas de Leão, Zamora, Valladolid e Palência. Ou seja, Ansur Moniz descende da família de Vilanansur, Escobar e Campos, <apelidos brasonados importantes, menos que os de Cisneros, que contrastam com a humilde procedência de lavradores e carvoeiros, profissões baixas na escala social. De facto, o alvo da sátira parece proceder de lavradores e carvoeiros. O facto de estes dois vocábulos surgirem maiusculados parece sugerir que se trataria também de eventuais formas onomásticas, o que vai contra a lógica discursiva da cantiga.
    Outro ramo da família é os “d’Estepar”, um município da província de Burgos, na mesma comarca que Vilanansur de Ferreiros, em Castela-Leão, bem como “d’Azeved”, provavelmente a atual Acebedo, em Leão, não obstante haver estudiosos que a associem a uma povoação localizada perto de Caminha. É possível ainda que haja aqui um equívoco com o azevém, uma planta para forragens. É aí que estão sepultados os seus pais (“u jaz su padr’e sa madr’outro tal”) e repousarão, no futuro, ele próprio e os seus filhos (“e jará el e todos seus herdeiros.”).
    Ao longo da sua vida, Ansur Moniz tomou iniciativas destinadas a melhorar a sua posição, indiciando a sua preocupação e a sua demanda de prosperidade e reconhecimento, tendo ganhado mais do que os seus antepassados (“er foi el gaanhar / [mui] mais ca os seus avoos primeiros”), superando o estatuto desses seus familiares em termos de posses e riqueza. Os versos 17 e seguintes são de muito difícil leitura. Aparentemente, Ansur Moniz comprou foices, terra e trabalhadores e ainda a povoação de Vilar de Paos para o seu sustento (provavelmente, tratar-se-á da antiga Villar de Palos – atualmente, Villadepalos – , povoação do concelho de Carracedelo, também em Leão, que surge citada num censo populacional do século XVI). Outra leitura desses versos sugere que Ansar Moniz teria comprado foice, estrume, cabreiros e Vilar de Rates (campo com buracos de toupeira), para o seu sustento. No entanto, perante a inexistência de um topónimo igual ou similar a Vilar de Paes (ou Vilar de Raes) devemos supor a existência de um erro de transmissão. Prosseguindo a leitura inicial, as aquisições da propriedade “pera seu corp’” significam que o fez para seu uso e benefício pessoais, pois não está no seu feitio ser e viver pobre. De acordo com outra interpretação, a expressão “e diz ca nom lh’em cal” significa “que não se importa”, o que, neste caso, quererá dizer que Ansur Moniz diz que não se importa de viver pobre. Nos dois últimos versos, encontramos a conclusão: a quem falha consigo mesmo falham-lhe os companheiros, ou seja, quem não se cuida deixa de ter amigos.
    De acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, a ironia desta cantiga reside na utilização de nomes comuns e socialmente marcados na enumeração da sua linhagem e propriedades. Na esteira da Farsa dos Almocreves, de Gil Vicente, ou do Lazarilho de Tormes, estamos perante um daqueles casos de um fidalgo pobre que de tudo é capaz, incluindo passar fome, para salvar as aparências.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Abadessa, Nostro Senhor", de Gonçalo Anes do Vinhal

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), constituída por quatro sétimas e uma finda (estrofe final que remata uma cantiga, formada por um, dois ou três, raramente quatro), satiriza uma abadessa, em forma de agradecimento pela forma generosa como foi acolhido no mosteiro (a todos os níveis, incluindo o sexual).
    De facto, o trovador dirige-se ao seu interlocutor – uma abadessa desconhecida – para lhe agradecer por o ter recebido no mosteiro e pelo bom tratamento que lhe dedicou, incluindo o sexual: “Abadessa, Nostro Senhor / vos gradesca, se lhi prouguer, / porque vos nembrastes de mi”. Pelos versos transcritos, percebe-se que ele deseja que Deus agradeça à mulher por esta o ter acolhido quando chegou ao mosteiro em busca de um abrigo: “u cheguei a vosso logar, / que tam bem mandastes pensar / i do vosso comendador!”. O último verso da primeira estrofe identifica o sujeito poético como “comendador”. Relativamente à sua identidade, o Projeto Littera apresenta três leituras possíveis: esse comendador seria o próprio trovador (o “herdeiro” desse mosteiro) e a mudança de sujeito, no final de cada estrofe, constituiria uma maneira irónica de afirmar que o tratamento a que tinha direito teria deixado a desejar; a segunda hipótese apontaria para o comendador ser outra pessoa, que recebe todos os favores, enquanto o viajante cansado fica à porta (qual Castelhano, no Auto da Índia, esperando, nos quintais da Ama, que esta lhe abra a porta e o receba, enquanto ela se diverte, dentro de casa, com o outro amante, o Lemos), ou seja, neste caso, a cantiga seria uma queixa deita pelo trovador por não ter sido tão bem tratado como o comendador; a terceira possibilidade apontaria para uma usurpação dos legítimos direitos do trovador em matéria de comendas (situação semelhante à denunciada por um outro trovador, João Soares Coelho, numa cantiga que dirige a Airas Peres Vuitorom: “Dom Vuitorom, o que vos a vós deu”).
    Partindo do pressuposto de que o comendador é o próprio trovador, a abadessa teria oferecido um serviço completo a um visitante, que estava morto de cansaço, e foi tão bem recebido que lhe perguntavam se seria capaz de retribuir o gesto que tanto lhe agradou: “e todos me perguntaram / se vos saberei eu servir / quam bem o soubestes guarnir / de quant’el havia sabor.”
    Por isso, na terceira estrofe, o «eu» lírico deseja que Deus a recompense, por se ter lembrado dele, por o ter tratado tão bem. Se algo falhou relativamente ao acolhimento, não foi por falta de espaço da abadessa: “o comendador i chegou / e se el bem nom albergou, / nom foi por vosso coraçom” (vv. 19 a 21). Isto permite supor que o tratamento ao qual ele se refere seria também de cariz sexual, pela ênfase dado no final de cada estrofe. Nos versos 17 e 18, por exemplo, o trovador refere que ela se lembrou dele da maneira que era conveniente (“por que vos nembrastes de mim, / u m’era mui mester assaz”) e que, como conclui nos versos seguintes se alguma falha ocorreu, não foi por falta de esforço da parte da abadessa.
    Na quarta estrofe, reitera o agradecimento por o ter recebido no mosteiro: “Deus vos dê por en galardom / por mui, que eu nom poderei, / porque vos nembrastes de mim, / quand’a vosso logar cheguei;”. De seguida, o trovador declara que, quando o comendador chegou ao mosteiro, foi tão bem suprido de amor e prazer que não seria possível fazer melhor: “ca já d’amor e de prazer / nom podestes vós mais fazer / ao comendador entom”.
    Na finda, constituída por três versos, o «eu» poético exprime o desejo de que a abadessa seja recompensada cem vezes mais, pois serviu ao comendador tudo o que havia no mosteiro: “Cento dobr’hajades por en / por mi, que lhi nom minguou rem / de quant’havia na maison.” (o termo “maison” é um galicismo que significa “casa”, em geral religiosa).
    Ao contrário de diversas outras cantigas de escárnio e maldizer, nesta não existe vocabulário obsceno, sendo as ideias transmitidas de forma subtil, maliciosa. Por outro lado, é evidente uma mistura entre religiosidade e sexualidade, por exemplo, quando agradece ou quando deseja que Deus recompense a abadessa: “Nosso Senhor / vos gradesca”; “Hajades por en galardom / de Deus”; “Deus vos dê por em galardom / por mim”. A insistência exagerada na ideia da retribuição divina e na impossibilidade de o próprio comendador retribuir a abadessa contribui para a formação do tom de malícia.
    Nota, por último, para a presença da palavra perduda (verso de uma estrofe que não rima com nenhum outro, mas que pode ou não rimar com os versos correspondentes das estrofes seguintes), concretamente no terceiro verso de cada estrofe, incluindo a finda: “porque vos nembrastes de mi” (v. 3); “mais nembrastes-vos bem de mim” (v. 10); “porque vos nembrastes de mim” (v. 17); “porque vos nembrastes de mim” (v. 2); “de quant’havia na maison” (v. 31).
    Esta cantiga satiriza os religiosos que têm comportamentos inadequados ou mesmo luxuriosos. O foco são os agradecimentos de um comendador em razão dos cuidados que recebeu durante a sua estada num mosteiro. A expressão, repetida ao longo do poema, “nembrastes-vos bem de mi” enfatiza, em cada estrofe, os “bons cuidados” que a abadessa lhe dedicou. Ela acolheu-o no convento, quando ele aí chegou, depois de uma longa viagem, muito cansado e necessitado de cuidados que poderão contemplar também o próprio corpo da mulher.
    A já referida subtileza que caracteriza esta composição poética é exemplificada, por exemplo, pela expressão que podemos encontrar no verso 5 da primeira estrofe: “cheguei a vosso logar”. Ora, a interpretação da mesma pode resultar dúbia, pois pode ser entendida como referenciando o final de um trajeto, como também pode ser lida com o sentido de “aproximar-se” (com valor erótico). Outro exemplo encontra-se no termo “maison”, um provençalismo que, além do significado já apontado, remete para uma casa de dimensões consideráveis, e que concretiza o “logar” referido noutras estrofes, mas que pode ser lido de forma literal ou metafórico, enquanto alusão à vagina. Assim, ficamos na dúvida se o comendador agradece à abadessa o facto de o ter “recebido” e tratado prazeirosamente na sua própria “maison” metafórica, ou se os vocábulos “logar” e “maison” se referem apenas e só ao mosteiro real onde a religiosa o recebeu e agasalhou com tudo o que havia naquela habitação, incluindo os favores sexuais dela mesma ou de outra mulher que lá morasse também.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A um corretor que vi", de Estêvão da Guarda

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, escrita por Estêvão da Guarda, é constituída por três sétimas, com rima emparelhada, segundo o esquema AAABBCC, e satiriza o caso de um casal em apuros por dificuldades económicas, que o obrigam a vender ao desbarato as suas roupas com peles, mesmo se já muito usadas.
    A cantiga estrutura-se a partir de um diálogo jocoso entre o trovador e o corretor, isto é, o intermediário, responsável pela venda das roupas. É fácil imaginar o cenário: o sujeito poético, certo dia, viu o corretor a vender roupa que ele tinha visto, revestida então de “penas veiras”, isto é, feita com pele matizada. O corretor é, pois, um simples intermediário na venda.
    Quem dá início ao diálogo é o trovador, que identifica a pessoa a quem pertencem as roupas: a esposa de alguém com estatuto, como se pode depreender do tratamento por “Dom” (“– Da molher som de Dom Foam.”), que, apesar do título, deverá estar a viver uma situação financeira bastante difícil. A expressão “Dom Foam” era uma fórmula usada habitualmente para esconder uma identidade concreta.
    O corretor responde ao trovador, confirmando que são essa figura e a esposa quem estão a vender tudo quanto possuem: “– Vendem quant’ham, / el e aquesta sa molher”. Essa confirmação reforça a ideia da decadência e da extrema necessidade que atingem o casal: a situação é tão difícil que teve que recorrer à venda dos próprios bens, incluindo a roupa, para sobreviver. Os dois versos que separam o sexto verso do refrão funcionam como forma de introduzir a explicação para a venda da roupa: “ham-no mester, ham-no mester!”, isto é, têm necessidade, o que confirma que tudo se deve a dificuldades económicas. Além disso, a repetição presente no refrão indicia a urgência do casal.
    Os dois versos iniciais da segunda estrofe confirmam que as roupas que estão a ser vendidas são de mulher. Ironicamente, refere que esta ficará quase despida, o que significa que está a vender quase todo o vestuário, em virtude da necessidade extrema. A mulher fica quase nua ao olhar público por vender a roupa, enquanto essa mesma venda deixa igualmente a nu a depauperada situação financeira do casal. A btítulo de curiosidade, convém ter presente o significado da expressão “ver grós”, a qual, segundo Gema Valin (in “La indumentaria en la lírica Gallego-Portuguesa: algunas consideraciones sobre el uso y el significado de las penas veiras”), constituiria uma outra designação para as “penas veiras”, a partir do francês “vair gros”, cuja técnica “consistia en combinar el gris del lomo y el blanco del vientre de la ardilla formando um damero, y cuandolos cuadrados eran de mayor tamaño se le daba el nombre de gros vair”. Seja qual for a interpretação, esta passagem da cantiga indicia que os “panos” são de baixa qualidade de tão usadas.
    O trovador insiste na questão: por que razão a mulher deseja vender as vestes por vontade própria, se tal atitude a deixa quase nua? A resposta do intermediário é imediata: ele tem a certeza de que (“– Sei eu, de pra,”) o casal o faz por necessidade financeira, de acordo com o refrão. Mas como pode o corretor ter tanta certeza, passe a redundância, acerca da razão da venda? Foi a própria mulher quem lho disse: “– Sei eu, de pram, / per ela, quanto vos disser:”. A citação indireta funciona como uma espécie de argumento de autoridade que assegura a veracidade do que é dito.
    A sátira acerca da penúria em que vive o casal intensifica-se na terceira estrofe. O trovador afirma que é difícil acreditar que “eles” – o casal –, por falta de recursos financeiros, vendam a roupa da mulher por um valor extremamente baixo. Ora, esta atitude reflete o desespero e a extrema necessidade do par, ficando assim exposta a gravidade da sua situação de pobreza, que os leva a sacrificar a própria dignidade.
    Mais uma vez, o interlocutor do sujeito poético faz luz sobre os acontecimentos e explica, de novo, que é a necessidade extrema (“Per com’ estam”) que os faz descer àquele ponto: eles necessitam de vender aqueles “panos”, mesmo que por um valor muito baixo, porque nada mais lhes resta.

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