quinta-feira, 8 de maio de 2025
Benfica é campeão de voleibol feminino
sábado, 3 de maio de 2025
sexta-feira, 2 de maio de 2025
"Amor, co'a esperança já perdida", análise do poema de Camões
Este soneto, com rima interpolada e emparelhada nas quadras e interpolada nos tercetos, segundo o esquema rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, e versos decassilábicos sáficos (vv. 8 e 10) e heroicos (os restantes), aborda o tópico navigium amoris, herdado dos poetas gregos e latinos, ou seja, o amor – personificado enquanto divindade – é como um mar tempestuoso, o mar das paixões amorosas, em que se debate o barco que simboliza o amante.
O «eu» poético dirige uma apóstrofe ao Amor personificado, comunicando-lhe ter visitado o seu templo depois de ter perdido a esperança por ter ficado sem o seu amor. Segundo Faria e Sousa, Camões cantou as esperanças de duas formas: “la primera por las finezas de sus amores que dulcemente cantava; la segunda la de sus cantos celebrando la Patria y los Heroes della”. Neste soneto, o poeta recorre à renuntiatio amoris como motivo principal, construída sobre a metáfora do naufrágio amoroso. A primeira quadra versa precisamente sobre a representação do motivo do ex-voto,isto é, o sofrimento amoroso é comparado a uma tempestade da qual o marinheiro foi salvo e, por isso, leva as suas oferendas ao templo como agradecimento à divindade que o salvou. A fonte de inspiração de Camões foi a ode 5 do livro I de Horácio. Por outro lado, além deste soneto, ele aborda o mesmo tópico noutros poemas, como, por exemplo, “Como quando do mar tempestuoso”. Camões, neste soneto, apresenta a oferta do ex-voto não no formato de roupas, mas sim a própria vida. Por outro lado, se Horácio e Garcilaso, nos seus poemas, agradecem por ainda estarem vivos e livres desse amor, o poeta português doa a sua “alma, vida e esperança”, lamentando o facto de ainda estar vivo, e queixando-se da privação desse amor.
Apesar do texto fixado por Costa Pimpão apresentar o termo «soberano» no segundo verso, as fontes manuscritas trazem «sagrado», divergência que é entendida por alguns estudiosos como uma correção imposta pela censura, desde logo porque não é o único caso em que aquela modificou o texto de um poema camoniano. De facto, a censura foi uma prática tradicional da Igreja, que, na luta contra a heresia, proibia a publicação de termos pouco ortodoxos, como, por exemplo, tratar como «sagrado» o templo do Amor. Sendo exclusivamente reservado ao uso religioso, esta palavra pertence à lista de vocábulos que foram objeto de censura.
O «eu» poético – aquele que ama – deposita a alma, a vida e a esperança mo templo do Amor, em vez das oferendas comumente dadas aos deuses pelos náufragos como forma de agradecimento. Regra geral, os náufragos seguiam até ao templo dos deuses para agradecer o facto de ainda estarem vivos, porém Camões atua de forma inversa, isto é, coloca o sujeito poético a deslocar-se ao templo para protestar o facto de ainda estar vivo e questiona o desejo de vingança do próprio Amor, que é percebido como entidade hostil, chegando mesmo a afirmar que a maior vingança seria deixá-lo vivo a chorar do que tirar-lhe a vida: “nelas podes tomar de mim vingança; / e se inda não estás de mim vingado, / contenta-te com as lágrimas que choro.” (vv. 12-14).
O sujeito lírico põe a sua vida em vez das oferendas habitualmente feitas, porque já se considerava morto para as pretensões do mundo, em particular as amorosas, ou porque desejava morrer. O nome «vestidos» (v. 4) alude ao facto de o náufrago, depois de escapar ao perigo, pendurar as vestes e outros despojos do naufrágio, como ex-voto, na parede do tempo do deus invocado durante a tempestade em alto mar. Os «vestidos» eram os principais testemunhos de um naufrágio, que eram colocados no templo. Esta passagem do soneto forma uma imagética associada ao tópico do naufrágio amoroso.
A imagem do templo do Amor, presente na primeira quadra, pode assumir três formas diferentes. A mais simples é o templo como igreja, que encontramos, por exemplo, em Malatesta Malatesi. Noutra, templo é usado como metáfora do corpo, nomeadamente da pessoa amada, como sucede com Pietro Bembo ou Bernardo Capello, que assinala as semelhanças entre o templo do Amor e o rosto da mulher amada: as portas são os lábios; o teto é o cabelo louro, que cobre paredes de mármore brancas e vermelhas, isto é, a face; o grande tesouro são as próprias tranças de ouro. Por vezes, o templo refere-se ao coração do amante, dado que guarda o culto e a memória da imagem amada.
Nos dois versos iniciais da segunda quadra, o «eu» poético questiona Amor, perguntando-lhe que mais poderá querer dele, depois de ter destruído toda a glória que alcançara, isto é, o privilégio de ter vivido um amor sublime. O facto de poder desfrutar, ou não, deste amor está no poder da divindade. No momento em que decide retirá-lo, é considerado pelo que ama como um tirano. Os dois versos seguintes, por meio da metáfora e do oximoro, apresentam a recusa do sujeito lírico em “tornar a entrar onde não há saída”, ou seja, num caminho sem saída.
O verso 9 apresenta uma enumeração de três nomes: «alma», «vida» e «esperança», dois dos quais se encontram no primeiro («esperança») e no quarto («vida») da primeira quadra. Esses três nomes designam os «despojos», os restos ou fragmentos do passado. Na prática, os versos 9 e 10 patenteiam o jogo dialético, bem característico de Camões, entre o bem passado (“de meu bem passado”) e o mal presente. Esse bem durou “enquanto quis aquela que eu adoro.” (v. 11), ou seja, enquanto lhe correspondeu amorosamente?
O segundo terceto constitui o clímax do soneto. O sujeito poético, depois de ter oferecido a sua alma, vida e esperança, acaba oferecendo as suas próprias lágrimas – o seu sofrimento, a sua mágoa, a sua dor –, que são para ele mais dolorosas do que a própria morte. Atente-se no recurso ao poliptoto (figura de estilo que faz a alteração flexional de uma parte do corpo da palavra) de “mim vingança” / “de mim vingado”. Note-se que o Amor é representado, nesta composição poética, como uma entidade mítica caracterizada como omnipresente e possuidora de uma natureza vingativa (“destruída / me tens a glória toda que alcancei.” – vv. 5-6; “podes tomar de mim vingança” – v. 12; “não estás de mim vingado” – v. 13). Por outro lado, o texto desenvolve-se num crescendo: nas duas quadras, os verbos encontram-se maioritariamente no passado (pretérito perfeito: «visitei», «passei», «pus»), enquanto os tercetos começam e terminam com os verbos no presente («Vês» e «choro»), o que significa que o futuro está excluído, pois o sujeito poético não consegue libertar-se dessa prisão do Amor, prefere a morte e, portanto, não é capaz de se projetar num futuro.
Ainda relativamente ao segundo terceto, nomeadamente o verso 12, focado no tema da vingança não é caso único na obra camoniana, onde aquele que ama, tendo perdido a esperança, afirma preferir morrer a viver no seu tormento de amor. É o que sucede, por exemplo, no soneto “Se algu’hora em vós a piedade”, no qual Camões declara o seguinte: “tomarão tristes lágrimas vingança / nos olhos de quem fostes mantimento. // E assim darei vida a meu tormento; / que, enfim, cá me achará minha lembrança / sepultado no vosso esquecimento.” Note-se que Camões, além de usar nomes como «vingança», culmina o soneto com o termo «sepultado», indiciando novamente que a morte é a única fonte de liberdade.
terça-feira, 29 de abril de 2025
"O vencedor vencido": análise do poema, de Isabel Gouveia
quinta-feira, 24 de abril de 2025
"Paz": análise do poema de Tomaz Kim
Aqui foi a casa:
Alva a toalha e o pão,
O berço além.
Breve a canção:
Bater de asa
O sorriso de mãe.
Veloz a hora:
Agora,
Só o coaxar noturno e certo
Das rãs,
Enche o campo deserto.
A
segunda estrofe é constituída por imagens que sugerem o domínio do passageiro,
como o exemplifica a alusão à canção breve, símbolo da transitoriedade. Essa
ideia é reforçada pela imagem do “Bater de asa”, que indicia o efémero, o
fugaz, como o tempo e a infância que passam. Também o sorriso da mãe constitui
uma imagem forte que transmite s noções de calor humano, carinho, afeto,
proteção, bem como um sentimento quase sagrado, ligado ao cuidado e à memória
afetiva. Esse sorriso e tudo o que ele simbolizava foi um bater de asa, não foi
duradouro; pelo contrário, foi passageiro – pelo menos, é essa a sensação do
sujeito lírico – e já não existe mais, pois pertence a um passado que já passou
e não voltará. Tudo passou muito rápido, como o bater de asas de uma ave.
A
terceira e última estrofe abre com um verso que retoma o tema central do texto:
a passagem do tempo e a brevidade da vida – “Veloz a hora”. O passado a que se
referiu anteriormente passou depressa. De seguida, através do advérbio de tempo
«agora», salta para o presente, que é um tempo que contrasta com o passado. De
facto, atualmente, não há mais risos, alegria, carinho, proteção, nem vida
doméstica e familiar, que foram substituídos pelo “coaxar noturno e certo das
rãs”. A noite é uma parte do dia propícia à solidão e à reflexão. Essa solidão,
agora, é preenchida apenas pelo som do coaxar das rãs. O ambiente, que outrora
era pautado pela presença humana, hoje é ocupado unicamente pelo elemento
animal. Por outro lado, a alusão ao coaxar dos batráquios remete para um som
constante, repetitivo, monótono, que preenche o silêncio, mas não traz alegria
ou felicidade ao sujeito poético. Em suma, do passado restam apenas as
lembranças, pois agora tudo é solidão, tristeza, monotonia e melancolia.
O poema
fecha com a imagem do “campo deserto”, o que remete para uma imagem de solidão.
Agora, o tempo passou e só resta o som das rãs, num lugar vazio, apenas
preenchido pelas lembranças. Deste modo, o “campo deserto” constituirá uma
metáfora da ausência, do presente esvaziado da presença humana e do afeto,
carinho e amor que antes caracterizava aquele espaço, o que contrasta
intensamente com a imagem da casa evocada nos versos anteriores. Note-se que um
campo pode ser associado a um lugar fértil, aberto à vida, à natureza, porém,
quando é adjetivado como «deserto», passa a significar abandono, silêncio e
solidão. O campo, que antes era habitado, sinónimo de família, amor e
intimidade, preenchido por sons humanos, agora é dominado pelo silêncio humano.
O tempo passou, a vida desapareceu daquela casa, e, presentemente, sobra
unicamente o eco da memória. O adjetivo «noturno», além do já referido, remete
para a noite, para o fim do dia, o que, simbolicamente, simboliza o fim de um ciclo,
a morte e o esquecimento. O adjetivo «certo» significa que o som das rãs é
constante, inaceitável, repetido – ele substitui os sons humanos do passado,
como a voz da música, o som da canção, o riso.
Nesse
contexto, as imagens da “toalha alva”, do “pão”, do “berço” e do “sorriso de
mãe” contrastam com o “coaxar noturno e certo / Das rãs” e o “campo deserto”,
desde logo porque as imagens dos dois tercetos carregam valores simbólicos de
acolhimento, alegria, calor humano, afeto, memória afetiva e pureza. A “toalha
alva” simboliza as ideias de limpeza, ordem, cuidado, enquanto o “pão” remete
para a nutrição, a vida e a comunhão familiares. O “berço” associa-se
claramente ao tempo da infância, da origem da vida e do amor protetor. Por seu
turno, o “sorriso de mãe” representa ternura, proteção, ideias sugeridas pela
figura materna. Tudo isto trabalha para construir uma imagem de aconchego,
proteção e vida familiar e íntima, onde há afeto e relações humanas. Pelo
contrário, o “coaxar noturno e certo das rãs” e o “campo deserto” associam-se a
outro universo simbólico. De facto, esses elementos representam a natureza
impessoal, que continua o seu percurso após a partida dos seres humanos,
levados pela morte. O som das rãs é repetitivo, monótono, quase mecânico,
opondo-se ao da canção, alegre, e à espontaneidade do sorriso materno. Por sua
vez, o campo deserto é um espaço aberto, sem limites e sem proteção, silencioso
e solitário, contrastando com o lar fechado, íntimo, familiar e seguro que constituía
a casa da infância. Este contraste traduz a passagem do tempo – desde logo
sugerida pela estrutura fragmentada do poema (os versos curtos e a ausência de
pontuação) – que tem como consequência a perda de uma presença afetiva e a
transformação do espaço vivido em espaço de memória.
O título
do poema, tendo em conta que o texto evoca tanto a memória de um passado alegre
e afetuoso quanto o vazio e a desolação do presente, pode parecer curioso. Por
um lado, pode representar a paz que surge como a solidão e o silêncio após as
mudanças ocorridas por efeito da passagem do tempo, ou seja, o presente é
desolador, mas, ao mesmo tempo, é silencioso, calmo. Tratar-se-á da paz de um
espaço desabitado, hoje de contemplação após a passagem do tempo, ou a paz num
sentido fúnebre ou espiritual, quer dizer, a que surge com a morte, com o fim
de um tempo, de um ciclo. Por outro lado, o título pode ser entendido com a
memória de um passado bom. Neste sentido, a casa do passado simboliza uma forma
de paz vivida: havia comida, amor, segurança e proteção. Esta paz vem associada
à simplicidade da vida familiar e quotidiana, ao pequeno e singelo gesto que
perdura na memória. Em suma, o título constitui uma espécie de síntese do
poema: um trajeto do afeto ao silêncio, da vida à lembrança, da presença à
ausência.
Análise do poema "De Amor", de Francisco José Viegas
tenho vontade de recomeçar,
reerguer escombros,
ruínas, tarefas de pão e linho,
não dar
nome às coisas senão o de um vago
esquecimento
abandono. despede-te de mim como
se a vida
recomeçasse agora, não me procures
onde
a memória arde e o destino se
ausenta.
tudo são banalidades, afinal,
quando assim
se recomeça e a vida falha como um
material
solar e ilhéu. levamos poucas
coisas, basta
um pouco de ar, os objetos fixos,
em repouso,
os muros brancos de uma casa, o
espaço
de uma mão. arrumo as malas e os
sinais,
aquilo que nos adormece em plena
tempestade.
A
terceira estrofe – novamente uma quadra, à semelhança da primeira – retoma a
dor, o sofrimento e os acontecimentos das anteriores: “tudo são banalidades”.
Diante do recomeço, tudo se torna banal. Por outro lado, a vida é falha,
frágil, visto que “falha como um material / solar e ilhéu”. A comparação quase
torna a vida algo físico, tangível, e os adjetivos «solar» e «ilhéu» traduzem as
ideias de luz e isolamento, solidão, sugerindo que a vida, embora sendo bela,
comporta esses sentimentos. Afinal, quando uma relação termina, se desfaz, e os
intervenientes se afastam, entram num mundo de solidão, de isolamento, mesmo
que temporário. Perante este cenário, o importante é levar poucas coisas desse
passado, dessa relação que terminou: “levamos poucas coisas”. São suficientes “um
pouco de ar, os objetos fixos, em repouso”, metáforas que indiciam que, no
processo de recomeço, o essencial é o respirar, encontrar a estabilidade e o
equilíbrio.
A última
estrofe – um terceto, tal como a segunda – abre com uma série de metáforas que
prosseguem a enumeração daquilo que o sujeito poético leva do passado: a do
muro branco evoca paz, pureza, ao passo que os muros e a casa traduzem uma
imagem de produção e refúgio; a da mão pode simbolizar o afeto; o ato de
arrumar as malas associa-se à partida, mas também à preparação para algo novo,
enquanto os sinais remetem para memórias, vestígios de algo que existiu,
todavia entretanto terminou, no fundo, “aquilo que nos adormece em plena
tempestade”, isto é, que nos acalma durante momentos conturbados. Pode
tratar-se do amor na sua forma mais serena ou da aceitação da perda.
Em síntese, estamos na presença de um poema que reflete sobre o fim de uma relação amorosa e a resiliência necessária para enfrentar, bem como o processo de recomeço.
domingo, 20 de abril de 2025
A hipocrisia dos vegetarianos
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo
I. Biografia de Aluísio de Azevedo
II. Obras de Aluísio de Azevedo
III. Período literário
IV. Ação
. Resumo
. Capítulos
V. Personagens
V.1. Caracterização
1. João Romão
2. Bertoleza
3. Miranda
4. Rita Baiana
5. Estela
6. Léonie
7. Pombinha
8. Jerónimo
9. Piedade
10. Leandra
11. Ana das Dores
12. Dona Isabel
13. Leocádia
14. Zulmirinha
16. Neném
17. Velho Botelho
18. Henrique
19. Agostinho
20. Alexandre
21. Paula
22. Albino
23. Firmo
24. Senhorinha
V.2. O percurso existencial das personagens femininas
V.3. Os tipos sociais e as forças naturais instintivas.
VI. Conclusões
a) Forma
b) Conteúdo
Os tipos sociais e as forças naturais instintivas em O Cortiço
Um dos
valores maiores de Aluísio Azevedo retratados em O cortiço é a sua
facilidade em fixar conjuntos humanos, em fazer uma análise de tipos sociais.
As personagens são moldadas de acordo com a realidade observada de fora pelo
narrador sem idealizações, pois são pessoas comuns com todos os seus contrastes
(beleza/feiura, rudeza/requinte, etc.). Por isso, o comportamento das
personagens decorre de causas biológicas e sociais que determinam suas ações.
Para os naturalistas, a personagem e condicionada pelo meio físico e social em
que vive, nada podendo fazer contra o peso das influências externas,
tornando-se vítima das leis naturais. O homem passa a não ter privilégio diante
do animal, visto que todos estão sujeitos às mesmas leis, enfatizando-se a dimensão
animal e a satisfação de necessidades materiais instintivas, assim como os
condicionamentos hereditários, que induzem a personagem a ser desta ou daquela
maneira. No trecho já citado do capítulo III, p. 37, o narrador relata o
despertar do cortiço, no qual acentua um processo em que não se diferenciam
"objetos, homens, animais e vegetais". Há uma identificação dos seres
humanos com os animais, conferindo-lhes apelidos. Leandra, com "ancas de
animal do campo"; Bertoleza "trabalha como um burro de carga".
Seguindo o modelo naturalista, o narrador vê todos, homens, mulheres, brancos e
negros como animais, valorizando os instintos naturais, para relacionar o
trabalho, o esforço do homem com a condi9ao animal. Um dos sentidos da palavra
cortiço é "casa onde as abelhas se criam e fabricam o mel e a cera"
(FERREIRA, 2000, p. 190). Assim, dando sentido metafórico, tais quais as
abelhas, que zumbindo se agrupam em torno do mel, homens e mulheres
aglomeram-se em torno das bicas de água. Veja um trecho do capítulo III: Daí a
pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa
de machos e fêmeas. Uns, apos outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do
fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos [...]. O rumor crescia,
condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam
vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. (AZEVEDO,
2004, p.37-8). As pessoas vivem coletivamente, sem privacidade, como bichos,
realizando suas necessidades físicas sem se ocultar, configurando-se situações
de degradação humana, em que as personagens levam uma vida difícil, miserável.
A "Estalagem de São Romão", isto é, o cortiço onde se desenvolve a
narrativa, formado pelos grupos desprivilegiados, e transformado num lugar,
onde vida e morte nao valem muito, pois as personagens se deixam guiar pelos
instintos, e sao relacionadas como animais irracionais. Assim, o meio se revela
como fator de conformação social. O que predomina e a intenção de mostrar, como
o homem age sobre o meio e vice-versa. Deste modo, no ambiente do cortiço o
indivíduo vive em função do meio e pode ser modificado pelo mesmo. O jogo de
interesses e o conflito social marcam a trajetória dessa trama e define como são
estabelecidas as redes entre os grupos. A personagem João Romão é o mais autêntico
representante da exploração alheia. Protótipo do português ganancioso, sua
preocupação em fazer fortuna é tão grande que leva ao relaxamento da própria aparência,
a sujeição ao desconforto e a autoimposição de um regime de trabalho que
ultrapassam muitas vezes o limite físico. Associa-se a escrava Bertoleza,
"crioula trintona", quando esta fica visiva. Ela também deseja
"subir na vida" e, desta forma, chega a fazer economias para a sua
liberdade, contando ao vendeiro sobre o dinheiro que juntou: [...] E
segredou-lhe então o que já tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo
ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada
por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. Daí em diante, João Romão
tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro
(op. cit., 2004, p. 16) da crioula. [...]. O vendeiro transforma
Bertoleza em "animal de carga", explora seu corpo e seu trabalho. Ela
passa agora a ser sua amante, uma "mulher-objeto" que desperta no
dono do cortiço o interesse sexual e também material. Ele lhe prepara uma carta
falsa de alforria: [...] a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão,
e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar a burla
maior formalidade, representava despesa, porque o esperto aproveitara uma
estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do
fato; [...]. (op. cit., 2004, p. 17). A ajuda à negra só tem fins egoístas. Além
de ser enganada, continuava escrava. Enriquecer era o principal objetivo do
vendeiro e para isso não media esforços, explorando a todos, sem nenhum escrúpulo.
Juntamente com Bertoleza, João Romão dá início à construção do cortiço. Não foi
fácil essa trajetória que se fez por meio de furtos, de muitas privações e da exploração
tanto da crioula quanto dos inquilinos do cortiço, dos fregueses da venda e dos
empregados da pedreira, através da má remuneração de salários, da obrigação de
fazer com que eles morassem na sua estalagem e até comprassem na sua venda.
Durante toda a narrativa, Bertoleza permanece fiel a Joao Romao, o qual pouco a
pouco galga posicao social. Sua ambicao desperta o desejo de crescer tambem
culturalmente, influenciado pelo sucesso do vizinho nobre, o Miranda (negociante
portugues, que mora no sobrado ao lado do cortico). Começa a partir daí a
operar-se uma transformação no vendeiro devido ao convívio que ele havia
estabelecido com a família do outro. Foi graças a essa proximidade que João Romão
pode vencer as barreiras culturais e ambientais, visto que ele pertencia a uma
classe considerada superior – o branco. A posterior "aristocratização"
de João Romão, atingida após uma profunda modificação em seu comportamento e em
sua aparência física, embora revele a Acão do meio sobre o comportamento humano
e se apresente como consequência do evolucionismo, não deixa de se apoiar no
pragmatismo da personagem que, após enriquecer, passa a alimentar o sonho de
ganhar títulos nobiliárquicos. À medida que Romão vai evoluindo tanto na vida económica
quanto social, seu cortiço sofre modificações qualitativas. A ascensão do cortiço
também é a mesma do seu dono. Mas precisava livrar-se de Bertoleza que para ele
representava a miseria. Resolve o problema entregando-a ao filho do seu antigo
dono. Ela o reconhece e percebe toda a trama, entende que o seu amante, nao
tendo coragem para matá-la, restitui-a ao cativeiro e que a sua carta de
alforria era mentira. Ela, que estava certa de que tinha conseguido sua
liberdade, percebe que fora enganada. O racismo na obra é bastante pronunciado.
Bertoleza chega a se desprezar por ser negra e se envergonha, sentindo-se como
uma "mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e
clara" (op. cit., 2004, p. 188) na vida de João Romão. Suicida-se ao
perceber que não há, para sua vida, uma outra saída: [...] Bertoleza então,
erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recua de um salto, e antes que alguém
conseguisse alcançá-la, já de um golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de
lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda
numa lameira de sangue.(op. cit., 2004, p. 225). Por meio de intrigas, explorações
e mentiras, o vendeiro ascende socialmente e casa-se com Zulmira, a "doce existência
dos ricos", filha do Miranda. João Romão vence o meio e torna-se
"quase um nobre carioca", consegue o título de "sócio benemérito"
abrindo, assim, as portas para a sociedade, um objetivo que queria alcançar.
Constata-se o evolucionismo nessa narrativa, segundo o qual o forte vence o
mais fraco. Tomando como base os modelos científicos, característica do
Naturalismo, no sentido de que o homem era marcado pelo determinismo biológico
e social, procurando comprovar essas teses, os naturalistas preferiam
personagens mórbidas, adúlteras, psiquicamente desequilibradas, assassinas, bêbadas,
miseráveis, doentes, prostitutas, homossexuais, etc. Os tópicos proibidos são
descritos com detalhes: - Sim! Sim! insistiu Leonie, fechando-a entre os braços,
como entre duas colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu.
Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas
irrequietas sobre o seu mesquinho peito de donzela impúbere [...]. (op.
cit, 2004, p. 130) É apresentada aqui uma descrição minuciosa do
homossexualismo feminino, no caso, entre Leonie, uma prostituta, e Pombinha,
"a flor do cortiço". Leonie a seduz com presentes e iniciativa
homossexuais. O homossexualismo masculino também é retratado na narrativa: Fechava
a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de
espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía,
numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre
entre as mulheres, com quem já estava tao familiarizado que elas o tratavam
como a uma pessoa do mesmo sexo; [...].(op.
cit., 2004, p.42) Tentando "focalizar de perto as distorções morais que se
geram no âmbito das comunicações promíscuas" (MOISES, 2002, p. 254), no
caso de O cortiço é que o narrador descreve personagens que para
"crescer na vida" se prostituem. Gera-se, portanto, uma dúvida:
personagens como Leonie e Pombinha tinham certas "tendências", que se
inclinavam para uma herança biológica, levando-as à prostituição, ou foram
influenciadas pelo meio em que vivem? Para ascender socialmente, Leonie deixou
o cortiço e teve que prostituir-se, alcançando um certo "status", o
que lhe permitia "desfilar com os amantes pelas ruas e teatros com a mesma
leveza como regressa ao cortiço para ver sua afilhada" (AZEVEDO, 2004, p..
102). Ela saíra do cortiço e enriquecera "vendendo seu corpo", mas
nem por isso deixa de visitar seus antigos amigos, pois conservou o "trânsito
livre" e, nas suas visitas ao cortiço, ela era recebida com cochichos e admiração
diante de tanto luxo que a envolvia. Logo ficava cercada de gente e na presença
de todos chegava a louvar os preceitos morais. O narrador cria uma situação irónica,
uma vez que Leonie era "prostituta de casa cheia", mas pregava os
"bons costumes": E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida
em triunfo, Leonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças,
discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões
de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a
moral e a virtude. O interesse de Leonie em visitar o cortiço era ver sua
afilhada Pombinha, tida como "a flor do cortiço", que, apesar do meio
em que vive, teve uma educação que a colocava em destaque, visto que tinha
estudado. Mesmo depois que seu pai morreu, sua mãe, Dona Isabel, crucificou-se
para educar a filha: "não permitia lavar, nem engomar mesmo porque o médico
o proibira expressamente" ( op. cit., p. 41). Muito querida pelo povo do cortiço,
era ela quem escrevia as cartas e lia jornais para quem quisesse ouvir. Se a
encontrassem na missa não perceberiam que ela morava no cortiço, pela maneira
de se vestir e se comportar. Era protegida por uma redoma. Entretanto, a proteção
da mãe, a consideração da comunidade onde mora, ou a sua formação religiosa -
apesar da sua fé sincera, como se fosse uma guardiã contra o mal; não
conseguiram fazê-la enxergar a manifestação de sedução do comportamento de
Leonie, "com extremas solicitudes de namorado" (op. cit, 2004, p.
129). Pombinha foi pelo próprio pé, meter-se na casa da cocote, um local ideal
que ajudaria a desencadear os elementos da natureza da personagem: a força do
meio desperta-lhe os recursos genéticos que Hipolite Taine apregoa como
determinantes do comportamento humano, junto com o mesmo meio e o momento (circunstância).
No início da narrativa, Pombinha era impedida de se casar porque "não
tinha pago a natureza o cruento tributo da puberdade". Mas, Leonie seduz a
moça e, após a iniciação sexual, sai de suas entranhas "o primeiro grito
de sangue". Depois que se tornou mulher, ela compartilha do desejo sensual
de Jerónimo em relação a Rita Baiana, do momento de intimidade entre Leocádia e
o rapaz do sobrado ao lado do cortiço, o Henriquinho, da concupiscência
animalesca do Miranda, etc.: Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara
explicar e que até aí jaziam esquecidas nos meandros do seu passado,
apresentavam-se agora nítidas e transparentes. [...] Num só lance de vista,
[...] sentiu diante dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a
comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e
o Jerónimo atassalharem-se como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu
Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a
fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres. (op. cit., p.140-141). A moça
vivenciou factos que condicionaram a sua transformação. Nela despertou um outro
valor: a mulher pode mais do que o homem, como se lê nas passagens: [...]
Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tolinou as mãos contra o rosto, a cismar
nos homens. Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal
ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham
covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela Ihes fizera?...
[...] E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro
sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no
mundo simplesmente para servir ao feminino; [...] ao passo que a mulher, a
senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e
querida, prodigalizando martírios, que os miseráveis contritos, a beijar os pés
que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estranguláveis. – Ah, homens!
homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro. (op. cit., 2004, p.
140- 141) Pombinha casa-se e sente-se incapaz de submeter-se a uma vida
familiar; torna-se adúltera, sendo entregue pelo marido à mãe. Desde já,
prostitui-se, passando a sustentar sua mãe "com os ganhos da prostituição":
[...] Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tao perita no ofício
como a outra: a sua infeliz inteligência nascida e criada no modesto lodo da
estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego;
fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus
lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela
boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vítima pudesse dar de si.
(op. cit., 2004, p. 218). Aqui, o narrador trabalha a ideologia naturalista,
segundo a qual o homem é produto do meio e Pombinha foi influenciada pelo
ambiente, pois o cortiço e logo depois a casa de Leonie tiveram "inspiração"
para a sua vida de prostituição. A moça deixa seu lado angelical para assumir a
imagem da serpente, a serviço do determinismo social que conduz o destino de
Pombinha. O Naturalismo "acentua a supremacia do feminino sobre o
masculino, da fêmea sobre o macho" (SANTANNA, 1984, p. 113). Para Leonie,
os homens existem para "servir ao feminino" e Pombinha, de agora em
diante, passa a acreditar nisto: "Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis
[...] tornaram-se uma só cobra de duas cabeças" ...] (AZEVEDO, 2004, p.
218). Para infundir mais a ideia de que o homem é produto do meio, o caso se
repetirá com Senhorinha, filha de Jerónimo e Piedade. Haverá então um círculo
vicioso no qual a cadeia continuava interminavelmente: "o cortiço estava
preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia
mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria" (op. cit., 2004, p. 219), pois
sua mãe, ao ser abandonada e trocada por Rita Baiana, havia se relaxado.
Pombinha tomou Senhorinha como "sua protegida predileta, votava agora, por
sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica a que em outro tempo inspirara
ela própria a Leonie". Ao escrever sobre a prostituição, Aluísio Azevedo
acaba endossando valores ideológicos, segundo os quais o homem é produto do
meio, sem dar importância as desigualdades socioeconómicas porque passa uma
sociedade mesmo porque a obra cumpre as posturas naturalistas seguindo o modelo
europeu.
(c) Iracema Duarte Filha, in A Relação Personagem, Ambiente e Raça em O Cortiço de Aluísio de Azevedo
sábado, 12 de abril de 2025
terça-feira, 8 de abril de 2025
Análise do poema "Eu quero", de Adília Lopes
Rosa Maria Martelo, in “A luva e a mão (uma história de
salvação)”
terça-feira, 1 de abril de 2025
"Lúcia no Saldanha em Pulgas", de Adília Lopes: análise e interpretação do poema
1. Transcrição do poema
2. Análise e interpretação do poema
domingo, 30 de março de 2025
sábado, 29 de março de 2025
Análise da cantiga "Bem sabedes, senhor rei", de Gil Peres Conde
Esta cantiga de refrão em cobras singulares, composta por Gil Peres Conde, é constituída por três sétimas de rima cruzada e interpolada (ABABCAC) de versos em redondilha maior. Ela faz parte de um conjunto de oito cantigas alusivas à sua má estrela em terras de Castela, sendo muitas delas dirigidas diretamente ao rei e que têm evidentes ligações entre si e que, no seu conjunto, formam uma sequência biográfica.
Na Idade Média, o poder estava centrado, respetivamente, na Igreja, nos reis e na nobreza. Comandada pelo Papa e pelos seus representantes (cardeais, arcebispos e bispos espalhados pela Europa), a Igreja tentava manipular os reinos a seu favor através da censura, regulações e excomunhões. Os reis e nobres, por sua vez, exerciam o poder local arregimentado pelas relações de vassalagem entre suserano e vassalo. Neste contexto, surgiram os chamados escárnios e chufas, ou seja, críticas direcionadas a uma pessoa ou a grupos de pessoas, seja de forma velada, como nas cantigas de escárnio, seja de forma aberta, como nas cantigas de maldizer.
Gil Peres Conde é natural de Portugal, tendo estado ativo nas cortes de Afonso X e de Sancho IV de Castela na década de central e finais do século XIII. O trovador tornou-se célebre por ser um dos mais, senão o mais mordaz, nas suas críticas sobre o rei de Castela, que o exilou entre cerca de 1269 e 1286, talvez o ano da sua morte. Quase de certeza, pertencia à alta nobreza, no entanto perdeu o estatuto de «ricomem», ou rico-homem, quando foi exilado em Castela, devido à sua discordância relativamente à deposição de D. Sancho II, tornando-se um mero infanção (antigo título de nobreza inferior ao de rico-homem; escudeiro fidalgo). Gozava, contudo, de algum prestígio, ratificado pelas mercês recebidas do rei, o que mostra uma certa proximidade ao monarca, ainda que crítica. A discordância entre o trovador e o rei é intensificada por dois motivos principais: o poeta ter raízes portuguesas e servir um rei castelhano; e o trovador não receber do rei de Castela os soldos e doações devidas pelos serviços de guerra. As seis composições de Gil Peres Conde presentes no Cancioneiro da Biblioteca Nacional documentam o tema e exemplificam essa tensão entre suserano e vassalo.
O trovador dirige-se ao rei por meio de uma apóstrofe (“senhor rei”) – provavelmente tratar-se-á de D. Afonso de Castela, que ele servia desde 1249 e que buscou exílio nesse reino, saindo de Portugal depois de Afonso III regressar de Bolonha, com o aval do belicoso Papa Inocêncio IV, para depor seu irmão, então monarca de Portugal, correspondendo ao facto histórico de muitos partidários de D. Sancho II terem sido forçados a refugiar-se noutros reinos depois da sua derrota – para mostrar o seu descontentamento em relação à ingratidão do rei. Qual a razão desse descontentamento? O trovador sempre foi leal ao rei (“que sempre vos guardei”) e sempre o serviu “quer a pé quer de cavalo”, porém jamais foi recompensado por isso (“sen voss’haver e sem dõa”). Porém, ele admite, de imediato, uma falha: não esteve com o monarca em boa hora (“mais atanto vos errei: / nom fui vosco em hora bõa”). Ou seja, no refrão, continuando a dirigir-se ao rei diretamente, conclui, de forma irónica, que se tinha colocado ao seu serviço numa hora menos feliz.
No início da segunda cobla, o «eu» enumera os locais em que serviu o soberano: em Campou (provavelmente Aguilar de Campoo, localidade situada a norte de Carrión de los Condes, entre a Meseta e o mar Cantábrico), em Olmedo (cidade do sul da província de Valladolid), em Badalhou (Badajoz, cidade da Extremadura espanhola, próxima da fronteira portuguesa de Elvas) e Toledo (cidade e província de Castela – La Mancha, na margem direita do Tejo, capital da Hispânia visigótica e uma das primeiras cidades medievais da Península Ibérica, na qual o rei a quem se dirige foi coroado – “e outrossi em Toledo, / quand[o] i filhaste corõa”). A referência à coroação do monarca em Toledo, cidade onde D. Sandro IV foi coroado, na opinião de Graça Videira Lopes, implica que é a este soberano que o trovador se dirige nesta cantiga (já que o seu pai, Afonso X, foi coroado em Sevilha).
Na terceira e última estrofe, o «eu» poético afirma que sempre protegeu muito bem o rei em todos os lugares onde andou: “Fostes mui ben aguardado / de mim sempre u vós andastes”. Note-se que a forma verbal «aguardar» é ambígua, pois pode significar «guardar» (proteger, no caso do rei) e «aguardar» (esperar). Quer isto dizer que o trovador guarda (o rei) e aguarda (o pagamento). Além disso, reforça a ideia da sua lealdade ao declarar que nunca recusou servir o rei e que este, por sua vez, nunca recusou os seus serviços. Vocábulos como «sempre», «mui», «nunca», «tanto» enfatizam a servidão leal do sujeito poético. E termina com um “mea culpa”, servil, como se estivesse pedindo uma recompensa pelos serviços prestados, mas não merecesse o favor (ironia), já que “non fui vosco em hora bõa”.
Nesta cantiga, o trovador relata os serviços prestados ao rei, enfatiza a sua lealdade, a sua servidão, mas finalizando sempre com o reconhecimento da sua culpa, da sua falha. Este estratagema permite que a crítica ao rei seja subtil: ao mesmo tempo que não ameaça a face do monarca, reconhecendo a sua falha, exprime a sua crítica à ingratidão real. Por outro lado, a presente composição poética mostra que a crítica ao poder real se fazia de modo implícito, provavelmente só compreendida pelos recetores da época, graças ao contexto situacional.