Chega-se a um momento na vida
(e por coincidência a um momento do mundo
que seja por linguagem o nosso)
em que o poeta se interroga antes de escrever:
porquê, e para quê, e para quem?
De nós mesmos falar não é possível:
seria necessário que houvesse humano respeito,
delicadeza humana, e não este descaso
de assassinos que se pisam sem desculpas.
Falar do que vai por este beco do universo
onde as comadres se acotovelam para levantar a saia
no escuro dos portais? Seria preciso
que a tristeza e a amargura e a visão do abismo
fossem partilhadas mais a fundo que a retórica
de serem tão infelizes no conforto
do piolhoso que vê mais dois piolhos na cabeça do outro.
Pensar em melhores mundos? Haverá,
mas não aqui. Aqui é o fim da festa,
o fechar das luzes do último dia
da Exposição dos Centenários, o arriar das bandeiras,
o apodrecer dos barcos pela praia.
Aqui só há lugar para metáforas,
óbvios símbolos, jogos de prendas poéticas,
para a droga de um sexo reduzido a palavras.
Cantem a beleza que se esvai, da juventude
que se perde, dos prados e das árvores,
com doce melancolia. O leitor tremula,
sente-se irmão, enfia
sorrateiramente a mão no bolso das calças,
apalpa-se e fecha os olhos, que está salva a pátria.
Jorge de Sena (30.08.1973)
(e por coincidência a um momento do mundo
que seja por linguagem o nosso)
em que o poeta se interroga antes de escrever:
porquê, e para quê, e para quem?
De nós mesmos falar não é possível:
seria necessário que houvesse humano respeito,
delicadeza humana, e não este descaso
de assassinos que se pisam sem desculpas.
Falar do que vai por este beco do universo
onde as comadres se acotovelam para levantar a saia
no escuro dos portais? Seria preciso
que a tristeza e a amargura e a visão do abismo
fossem partilhadas mais a fundo que a retórica
de serem tão infelizes no conforto
do piolhoso que vê mais dois piolhos na cabeça do outro.
Pensar em melhores mundos? Haverá,
mas não aqui. Aqui é o fim da festa,
o fechar das luzes do último dia
da Exposição dos Centenários, o arriar das bandeiras,
o apodrecer dos barcos pela praia.
Aqui só há lugar para metáforas,
óbvios símbolos, jogos de prendas poéticas,
para a droga de um sexo reduzido a palavras.
Cantem a beleza que se esvai, da juventude
que se perde, dos prados e das árvores,
com doce melancolia. O leitor tremula,
sente-se irmão, enfia
sorrateiramente a mão no bolso das calças,
apalpa-se e fecha os olhos, que está salva a pátria.
Jorge de Sena (30.08.1973)
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