A nostalgia da infância
. A nostalgia
constitui um conceito diferente da saudade (por exemplo, a saudade de alguém
ausente). O sentimento da nostalgia é a lembrança de uma felicidade longínqua e
aparentemente perdida, como se o passado fosse, por natureza, melhor do que o
presente.
. Por
outro lado, a infância é um motivo literário muito antigo e diretamente
associado a valores como a pureza do ser humano e a inocência que o estado
adulto já não permite. Encarada como uma espécie de paraíso perdido, a
infância provoca muitas vezes atitudes nostálgicas.
. A
decetividade que caracteriza o presente do eu lírico leva-o frequentemente
a manifestar-se nostálgico em relação à infância.
. O
tempo da infância, porém, é idealizado, sendo apresentado como um símbolo
da inconsciência, ingenuidade, inocência e felicidade (ou seja, uma época
dourada que se associa à ausência da dor de pensar) e do sonho
(isto é, do refúgio num mundo de fantasia que permite ao eu libertar-se
das amarras da realidade).
.
Insatisfeito com o presente e incapaz de o viver em plenitude, o eu
poético refugia-se numa infância idealizada, regra geral, desprovida de
experiência biográfica e submetida a um processo de intelectualização. De
facto, trata-se de uma nostalgia imaginada, intelectualmente trabalhada e
literariamente sentida.
. O
próprio eu tem consciência de que a infância é uma época idealizada,
visto que, na realidade, nem enquanto era criança ele parece ter sido feliz: “E
toda aquela infância / Que não tive me vem, / Numa onda de alegria / Que não
foi de ninguém” (poema “Quando as crianças brincam”).
.
Deste modo, a evocação da infância não passa de uma tentativa infrutífera de
evasão da melancolia do presente através de um passado que, porque
concebido apenas ilusoriamente como um paraíso perdido, acaba por não
permitir ao eu libertar-se da tristeza, do tédio e da angústia que o
atormentam.
. Para
Pessoa, a infância é o passado irremediavelmente perdido, o tempo
longínquo em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que apenas
sentia, inconsciente daquilo que sentia, sem pensar. Era o tempo em que ainda
não procurava conhecer-se e, por isso, era um ser uno, não fragmentado em
diversos «eus».
. A
passagem da infância à idade adulta não é um processo evolutivo e
tranquilamente natural; pelo contrário, é um processo de rutura, de corte, de
morte: “A criança que fui vive ou morreu?”. Frequentemente, sente-se habitado
por «outro», diferente da criança que foi: “Sou outro? Veio um outro em mim
viver?”.
.
Assim, o passado e o presente opõem-se, não se complementam. O
passado – da infância – é alegria, felicidade inconsciente, enquanto o presente
é nostalgia, ânsia, desconhecimento de si mesmo e do futuro.
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