Português: Análise do poema "Partida para o Contrato", de Agostinho Neto

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Análise do poema "Partida para o Contrato", de Agostinho Neto


           O poema “Partida para o contrato”, de 1945, aborda o tema da despedida e a dor que causa aos entes queridos. É constituído por vinte e três versos livres, sem rima e de métrica irregular, distribuídos por um monóstico, três dísticos, uma sextilha, uma sétima e um terceto.

            O título, “Partida para o Contrato”, aponta desde logo para a temática da partida, da viagem, através do mar, de alguém, neste caso para o contrato, que consistia numa espécie de trabalho semiescravo, a que muitos colonizados se sujeitavam por não haver outras formas de sustento durante o período de colonização.

            A primeira estrofe, um dístico, remete desde logo para o sofrimento vivido durante uma despedida, sofrimento esse refletido pelo rosto da pessoa, tanto da que parte como das que ficam De facto, o rosto reflete o estado de espírito (“retrata a alma”), caracterizado (“Amarfanhada”) pelo sofrimento. Atente-se na expressividade do particípio adjetival «amarfanhada». O verbo «amarfanhar» significa “criar vincos ou pregas”, “amarrotar”, “amachucar”, o que significa que, de facto, os rostos daquelas pessoas patenteavam marcas físicas do sofrimento que sentiam.

            A segunda estrofe identifica a pessoa que parte (Manuel), o momento/tempo em que sucede (“Nesta hora de pranto / Vespertina e ensanguentada”), o local para onde se dirige (a ilha de São Tomé), o espaço da travessia (o mar) e quem deixa para trás, possivelmente a mulher amada (“Manuel / o seu amor”).

            A terceira estrofe, um monóstico, é constituída por uma interrogação (“Até quando?”), que traduz a voz da mulher que fica à espera de Manuel, magoada, desamparada, sem qualquer noção de quando ele regressará ou se regressará.

            A estrofe seguinte situa-nos numa praia, caracterizada pelo horizonte, pelo sol e pelo barco que se afogam no mar. A presença do sol, um elemento que indica luz, luminosidade e calor, e da embarcação, o veículo que transporta Manuel, que indica movimento e que representa deslocamento, formam a visão que a mulher tem daquele momento: a sensação de que se está a afogar com a despedida e de que a sua dúvida, a sua interrogação, não terá resposta. Por outro lado, a presença da forma verbal «afogam» indicia a presença da morte: os barcos naufragam e os que neles viajam correm o risco de se afogar, de morrer. Perante este panorama, o «eu» poético, ao aludir à presença da noite e/ou da escuridão, enfatiza a tristeza e o sofrimento da mulher (“escurecendo / o céu escurecendo a terra / e a alma da mulher”).

            O terceto que se segue é todo dominado pela cor negra: “Não há luz / não há estrelas no céu escuro / Tudo na terra é sombra”. O mesmo sucede nos dois dísticos que encerram o poema: “Negrura / Só negrura…”. Ora, esta ausência de luz é muito significativa, pois sugere que não há alegria na vida daquela mulher, nem sabedoria ou conhecimento (“não há norte na alma da mulher”). A pessoa que não tem norte é alguém que está sem rumo, que perdeu a direção ou o caminho, que está confuso e inseguro. Assim se sente a mulher sem o seu amado Manuel. Apenas resta a cor negra, que sintetiza o sentido de ser negro como aquele que sofre. A repetição de palavras que remetem para a ideia de escuridão enfatiza a tristeza da mulher e a dúvida que sente se o tornará a ver, que se espalham com as ondas do mar, levando as certezas e a alegria.

            O «eu» poético coloca-se, no poema, como observador privilegiado da cena da partida e dos efeitos que a mesma acarreta para a mulher. Ora, este tópico constitui um traço identitário dos africanos, neste caso expresso através da descrição dos sentimentos de uma mulher apaixonada, que traduz o sentimento coletivo experimentado por todos aqueles que tiveram de passar por um momento ou uma situação análoga. Note-se, por outro lado, que o mar simboliza um espaço de dor, de separação (já era assim, por exemplo, nas cantigas de amigo), de incerteza e a linha que divide o que é familiar e o que é estrangeiro.

            Aquele que assiste à partida e que fica está inundado de dúvidas acerca do futuro e encara o mar como elemento de rutura, algo que lhe «rouba» aquilo que lhe é precioso. Para quem parte, o mar assume igualmente contornos de dor e de ausência de certezas em relação ao que será o futuro. Deste modo, o mar configura um elemento que agride o angolano e o traumatiza, ou seja, é um inimigo.

Sem comentários :

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...