Português: Análise dos capítulos IV a VI de Madame Bovary

sábado, 29 de outubro de 2022

Análise dos capítulos IV a VI de Madame Bovary


             A mudança do ponto de vista de Flaubert de personagem para personagem segue o padrão do enredo do romance. Após o casamento de Charles e Emma, o ponto de vista dela conta da narrativa. Esta mudança de perspetiva tem início no capítulo V e é coincidente com o contraste que se começa a notar entre o amor cego do esposo por ela e a desilusão desta, que esperava que o matrimónio fosse outra coisa diferente e lhe trouxesse o romantismo que lera nos romances. Na reflexão de Emma sobre a sua insatisfação conjugal, temos uma primeira visão real dos seus pensamentos, sendo fácil concluir que tudo está pronto para espoletar da crescente crise de personalidade que acabará por caracterizar a sua vida.
            A maior parte da ação de Madame Bovary é narrada por um narrador na terceira pessoa, centrado principalmente nos pensamentos e nas ações de Emma. No entanto, o ponto de vista do narrador flutua, adotando este vários tons. De facto, o narrador fala frequentemente como um outsider, comentando objetivamente os acontecimentos, mas também nos mostras as coisas de forma subjetiva através do olhar das personagens, informando-nos do que sentem e pensam. Por outro lado, Flaubert usa com alguma frequência o discurso indireto livre, uma técnica narrativa que permite que as palavras do narrador soem muito como os pensamentos e os padrões de fala de uma das personagens, mesmo quando ele não a cita diretamente. Por exemplo, quando Rouault se lembra do seu casamento no capítulo IV, Flaubert escreve: “Há quanto tempo tudo isso aconteceu! O filho deles já teria trinta anos. Então ele olhou para trás e não viu nada na estrada.” A narração passa diretamente da transcrição do pensamento de Rouault para a descrição de sua ação, sem separar o pensamento por aspas. Como resultado disso, muitas vezes temos de parar para considerar se estamos a ouvir a voz do narrador ou a de uma das personagens.
            Uma das características mais importantes de Emma é o conflito entre a sua natureza romântica e a tendência para o descontentamento. O seu flashback mostra até onde o gosto pelo romance se estende. Ainda com treze anos, ela foi incapaz de resistir à atmosfera melancólica e romântica do convento e mergulhou em romances e canções românticas, cujas histórias desejava desesperadamente que se realizassem na sua própria vida. Emma, no entanto, fica facilmente descontente. Coisas que ela acredita que a vão salvar, como o convento, a quinta do pai ou a vida de casada acabam por não estar à altura dos seus desejos. A sua euforia após o casamento, por exemplo, cai no momento em que encontra o buquê de noiva de Heloise na casa de Charles, e imediatamente começa a interrogar-se por que a sua vida não corresponde às ficções sentimentais que lera e esperava que se tornassem realidade.
            Flaubert é frequentemente considerado um escritor realista. Os realistas desafiaram os seus antecessores românticos escrevendo livros que se concentravam nos detalhes da vida quotidiana sem fechar os olhos para os seus aspetos sombrios. Ora, oescritor participa nesse movimento descrevendo as emoções, as ações e os cenários onde se movimentam as suas personagens de forma vívida e sem embelezamento romântico ou fantástico. A cena do casamento, que ocupa quase todo o capítulo IV, é um exemplo clássico do que torna Flaubert um realista. É o que sucede, por exemplo, quando desce ao pormenor: o enlace é descrito minuciosamente. O autor escreve sobre cada parte da celebração, por vezes listando apenas item atrás de item. Mais: narra o tipo de veículo que transporta os convidados, como usam o cabelo, de que tecidos são feitas as roupas e a sua aparência física. A descrição do banquete é tão elaborada que parece que há comida demais para apenas quarenta e três convidados degustarem. No entanto, Flaubert não nos dá conta apenas dos detalhes, dado que também tece comentários implicitamente sobre o seu valor social. Quando nos fala sobre as jovens raparigas presentes, sobre “os cabelos gordurosos com pomada de rosas e com muito medo de sujar as luvas”, podemos ver como elas são desajeitadas e pouco refinadas. Ao descrever as tentativas do povo do campo de se vestir, zomba dos seus esforços.
Tais comentários sutis sobre os traços das personagens menores constitui apenas uma das maneiras através das quais Flaubert pinta Madame Bovary como um retrato crítico da vida burguesa. No capítulo VI, afirma que Emma ama as flores e os ícones da sua religião, mas que a verdadeira fé espiritual é “estranha à sua constituição”. Esta nota mostra que a personagem, apesar de todas as suas pretensões de grandes sentimentos, é realmente incapaz de sentimentos profundos. A observação do narrador também satiriza os fiéis burgueses que se mostram profundamente religiosos, mas, na realidade, possuem pouca piedade genuína.

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