A mudança do ponto de vista de
Flaubert de personagem para personagem segue o padrão do enredo do romance. Após
o casamento de Charles e Emma, o ponto de vista dela conta da narrativa. Esta mudança
de perspetiva tem início no capítulo V e é coincidente com o contraste que se começa
a notar entre o amor cego do esposo por ela e a desilusão desta, que esperava
que o matrimónio fosse outra coisa diferente e lhe trouxesse o romantismo que
lera nos romances. Na reflexão de Emma sobre a sua insatisfação conjugal, temos
uma primeira visão real dos seus pensamentos, sendo fácil concluir que tudo
está pronto para espoletar da crescente crise de personalidade que acabará por
caracterizar a sua vida.
A maior parte da ação de Madame
Bovary é narrada por um narrador na terceira pessoa, centrado
principalmente nos pensamentos e nas ações de Emma. No entanto, o ponto de
vista do narrador flutua, adotando este vários tons. De facto, o narrador fala
frequentemente como um outsider, comentando objetivamente os acontecimentos,
mas também nos mostras as coisas de forma subjetiva através do olhar das
personagens, informando-nos do que sentem e pensam. Por outro lado, Flaubert
usa com alguma frequência o discurso indireto livre, uma técnica narrativa que
permite que as palavras do narrador soem muito como os pensamentos e os padrões
de fala de uma das personagens, mesmo quando ele não a cita diretamente. Por
exemplo, quando Rouault se lembra do seu casamento no capítulo IV, Flaubert
escreve: “Há quanto tempo tudo isso aconteceu! O filho deles já teria trinta
anos. Então ele olhou para trás e não viu nada na estrada.” A narração passa
diretamente da transcrição do pensamento de Rouault para a descrição de sua
ação, sem separar o pensamento por aspas. Como resultado disso, muitas vezes temos
de parar para considerar se estamos a ouvir a voz do narrador ou a de uma das
personagens.
Uma das características mais
importantes de Emma é o conflito entre a sua natureza romântica e a tendência para
o descontentamento. O seu flashback mostra até onde o gosto pelo romance
se estende. Ainda com treze anos, ela foi incapaz de resistir à atmosfera
melancólica e romântica do convento e mergulhou em romances e canções
românticas, cujas histórias desejava desesperadamente que se realizassem na sua
própria vida. Emma, no entanto, fica facilmente descontente. Coisas que ela
acredita que a vão salvar, como o convento, a quinta do pai ou a vida de casada
acabam por não estar à altura dos seus desejos. A sua euforia após o casamento,
por exemplo, cai no momento em que encontra o buquê de noiva de Heloise na casa
de Charles, e imediatamente começa a interrogar-se por que a sua vida não
corresponde às ficções sentimentais que lera e esperava que se tornassem
realidade.
Flaubert é frequentemente
considerado um escritor realista. Os realistas desafiaram os seus antecessores
românticos escrevendo livros que se concentravam nos detalhes da vida quotidiana
sem fechar os olhos para os seus aspetos sombrios. Ora, oescritor participa nesse
movimento descrevendo as emoções, as ações e os cenários onde se movimentam as
suas personagens de forma vívida e sem embelezamento romântico ou fantástico. A
cena do casamento, que ocupa quase todo o capítulo IV, é um exemplo clássico do
que torna Flaubert um realista. É o que sucede, por exemplo, quando desce ao
pormenor: o enlace é descrito minuciosamente. O autor escreve sobre cada parte
da celebração, por vezes listando apenas item atrás de item. Mais: narra o tipo
de veículo que transporta os convidados, como usam o cabelo, de que tecidos são
feitas as roupas e a sua aparência física. A descrição do banquete é tão
elaborada que parece que há comida demais para apenas quarenta e três
convidados degustarem. No entanto, Flaubert não nos dá conta apenas dos detalhes,
dado que também tece comentários implicitamente sobre o seu valor social.
Quando nos fala sobre as jovens raparigas presentes, sobre “os cabelos
gordurosos com pomada de rosas e com muito medo de sujar as luvas”, podemos ver
como elas são desajeitadas e pouco refinadas. Ao descrever as tentativas do
povo do campo de se vestir, zomba dos seus esforços.
Tais comentários sutis sobre os traços das personagens
menores constitui apenas uma das maneiras através das quais Flaubert pinta Madame
Bovary como um retrato crítico da vida burguesa. No capítulo VI, afirma que
Emma ama as flores e os ícones da sua religião, mas que a verdadeira fé
espiritual é “estranha à sua constituição”. Esta nota mostra que a personagem, apesar
de todas as suas pretensões de grandes sentimentos, é realmente incapaz de
sentimentos profundos. A observação do narrador também satiriza os fiéis
burgueses que se mostram profundamente religiosos, mas, na realidade, possuem
pouca piedade genuína.
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