Português: Comentário a O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Comentário a O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá


                 A obra narra-nos a história de um amor proibido entre dois animais que se desenrola ao longo das quatro estações do ano, começando no inverno, a estação do frio e da tristeza, no cenário de um parque onde habitam vários animais, nomeadamente o Gato Malhado, um animal já velho, mal-humorado, solitário e feio. Note-se que este temperamento do felino se coaduna com o temperamento que a estação do inverno suscita na generalidade das pessoas.

                No entanto, tudo começa a mudar no dia em que o gato encontra a andorinha, mais concretamente na primavera, a estação que simboliza o renascimento da natureza, da vida, e o amor. Este encontro muda a sua postura relativamente à vida, pois a ave traz à sua existência uma nova luz. Os encontros entre ambos sucedem-se e, inevitavelmente, o rabugento gato apaixona-se pela andorinha. Esse amor muda-o (trata-se de um tópico frequente no campo da literatura, como o demonstra a novela mais emblemática das Letras Portuguesas – Amor de Perdição –, onde encontramos um jovem rebelde, violento e sanguinário, Simão Botelho, que muda radicalmente quando conhece e se apaixona por Teresa Albuquerque, sua vizinha), tornando-o mais bem-humorado e realizado na vida. Essa mudança de estado de espírito coincide com a mudança de estação do ano: é primavera, a vida renasce, o amor brota.

                Todavia, como é frequente nas grandes histórias de amor, surge um contratempo: o amor entre ambos é proibido, visto que o Gato e a Andorinha são de espécies diferentes e os gatos são inimigos eternos das aves, pelo que as regras do mundo animal proíbem essa relação. Os animais do parque comentam criticamente e reprovam o alegado romance.

                Pelo exposto, a obra constitui uma reflexão sobre os amores impossíveis, uma temática intemporal. Assim, retrata de forma simples os preconceitos existentes na sociedade que impedem determinadas relações amorosas. Continua a não ser incomum, em pleno século XXI, a crítica e a obstaculização de romances entre pessoas de etnias diferentes, de cor de pele distinta, de classe social diversa, etc., e que envolvem a oposição de várias pessoas, nomeadamente das próprias famílias. Por exemplo, os infaustos amores narrados em Romeu e Julieta e Amor de Perdição prendem-se com preconceitos sociais e com os ódios entre as famílias dos protagonistas.

                Por outro lado, o texto suscita o confronto entre o amor espontâneo e livre e os casamentos arranjados. O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá conhecem-se, dialogam e apaixonam-se, mas não se podem casar, pois as leis do reino animal não o permitem. Mais do que isso, Sinhá acaba por se casar, contrariada, com o Rouxinol, a quem estava prometida. Recordando novamente Amor de Perdição, Tadeu Albuquerque queria casar, à força, a sua filha Teresa com o primo Baltasar Coutinho, intuito que só não se concretizou graças à rebeldia e determinação da jovem, embora tenha pago um preço elevado pela sua coragem: a reclusão num convento e a morte. Na dita vida real, durante muitos séculos, os casamentos eram arranjados pelas famílias dos noivos, que dessa forma procuravam a perpetuação de alianças políticas ou militares ou a manutenção do poder económico e do estatuto social familiar. O consentimento só passou a ser possível a partir de 1140 com o Decreto de Graciano e apenas a seguir a 1670 a indissolubilidade do casamento começou a ser contestada. Na atualidade, a realidade do casamento arranjado e forçado está bem viva. É o que sucede entre nós, por exemplo, com a etnia cigana, onde continua a ter grande prevalência, porém não se esgota aí. De acordo com um relatório da OIT, o número de pessoas obrigadas a casar passou de 15,4 milhões em 2016 para 22 em 2021. Deste total, dois terços das pessoas são mulheres, isto é, cerca de 14,9 milhões. Além disso, o relatório aponta para que a prevalência dos casamentos forçados se faça sentir mais nos países árabes, seguidos da Ásia e dos países do Pacífico, ocorrendo dois terços dos mesmos (envolvendo cerca de 14,2 milhões de pessoas) na Ásia e no Pacífico, 14,5% na África (3,2 milhões) e 10,4% na Europa e Ásia Central (2,3 milhões).

                Por último, é interessante observar que a sátira dirigida a alguns animais, nomeadamente àqueles que mais criticam o romance entre o Gato e a Andorinha. De facto, são esses animais que mais falhas e erros cometeram. Quantas vezes não sucede encontrarmos pessoas que criticam e julgam as outras sem qualquer moral para o fazerem?

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