No
universo sócio-histórico do Brasil no final do século XIX, o que existia era
uma sociedade em grande transformação, na qual a formação da identidade
nacional ainda estava sendo alicerçada. Tratava-se de uma sociedade carregada
de preconceitos. A literatura de então vem absorver e interpretar esse momento
histórico, em obras como O cortiço, de Aluisio Azevedo. Como nos explica
Antonio Cândido, “Talvez não haja equilíbrio social sem literatura. Deste modo,
ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na
sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no
inconsciente (...). Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais,
políticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus
sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e a
atuação deles.” (Apud CRUZ, 2008 p. 52 – 53).
Como
vimos no capítulo anterior Rita Baiana, Pombinha, Léonie, Estela e Bertoleza
são mulheres que vivem nesse quadro sócio-histórico brasileiro, na criação
ficcional de Aluísio Azevedo. Resta-nos, agora, ver como cada uma delas
vivencia de modo particular essa realidade sócio-histórica.
Explorando
a identidade da “raça” brasileira, Aluísio Azevedo criou a personagem Rita
Baiana com grande lirismo sensual, dentro da técnica naturalista de ressaltar
os atributos físicos das personagens. Por isso, como representante da mulher
brasileira, ela é mestiça, dengosa, maliciosa, generosa, usa da sua dança
criativa, alegre e sensual para seduzir e aprisionar os seus amores. O seu
percurso amoroso, no enredo do O cortiço, surpreende pelo traçado de
grandes conquistas perigosas e traiçoeiras.
Rita
Baiana provoca aquele patriarcado social vigente no Brasil do século XIX, e faz
isso por meio de seu comportamento fora dos padrões convencionais estabelecidos
para o comportamento feminino. Rita baiana rompe com muitas regras sociais de
tutela masculina sobre as mulheres. Ela não se casa oficialmente, não opta
nunca pelo matrimônio, mas conquista e aprisiona os seus amores. É solteira por
escolha e opção, e sabe como viver suas paixões avassaladoras. Assume
explicitamente o papel de mulher livre, que se sustenta sozinha, e nunca fica à
mercê de homem algum. Ela não mistura suas paixões com suas contas a pagar,
pois se auto-sustenta com a lavagem de roupas, mora sozinha e paga o seu
próprio aluguel. Não faz economia, tampouco algo como uma poupança financeira,
pois trabalha, tão somente, na medida exata do seu consumo, nada mais além. No
mais, vive apenas para desfrutar de suas paixões desenfreadas. Não por acaso,
ficou satisfeita com o assassinato do seu amante mestiço, Firmo, planejado e
concretizado pelo seu novo amor branco, o português Jerônimo, com quem passou a
viver uma paixão tórrida e egocêntrica.
Não
menos avassaladora foi a paixão vivida entre a prostituta Léonie e sua doce
afilhada Pombinha. Da somatória de menina doce, ingenuidade e atitudes
prestativas à gente pobre e analfabeta do cortiço, com a adolescente letrada,
Aluísio Azevedo criou Pombinha como uma personagem emancipada face ao sistema
patriarcal e patronal da sociedade brasileira da época. Pombinha, depois de
casada, optou por desfazer o seu casamento com seu marido Costa. Essa ruptura
deu-se quando ela descobriu a superioridade da mulher frente à submissão
egoísta de gestos pequenos do sexo masculino, e isso dentro de um casamento
padronizado. Podemos dizer que Pombinha descobriu depois de casada aquilo que
Rita Baiana sempre soube: o casamento costuma ser uma opressão para a mulher. Contudo,
enquanto Rita Baiana sempre teve uma vida livre, a liberdade de Pombinha,
obtida após a ruptura com um casamento marcado por uma vida medíocre, foi a
prostituição. Rita Baiana nunca foi prostituta.
Podemos
também pensar que Pombinha se “diplomou” com Léonie, sua “madrinha protetora”,
ou seja, ela se especializou como sócia majoritária de Léonie no empreendimento
altamente profissional da prostituição. Nas horas vagas, ambas dividem a mesma
cama entre si. Como vimos, Pombinha rompe com o domínio masculino, mas isso no
que tange ao casamento convencional e padronizado, pois a sua escolha pela
prostituição é uma forma de ascensão social que também dependem do mundo
masculino. Ela explora, principalmente, os capitalistas e os barões do café,
que pagam altas somas em dinheiro para ter as duas prostitutas, Pombinha e
Léonie, as mais competentes do Rio de Janeiro.
Diferente
não só de Rita Baiana, mas também de Pombinha e Léonie, encontramos Estela. Ela
ainda é aprisionada dentro de um casamento arranjando, uma união interesseira
que vive de aparências. Estela não é feliz com Miranda, seu marido parasita,
mas não abre mão de sair desse casamento. Ela precisa da figura masculina ao
seu “lado”, especialmente do ponto de vista da valorização social, para se
auto-afirmar. Ou seja: diferentemente de Rita Baiana e Pombinha, Estela é uma
mulher que opta pelo casamento, e que vê nele a única forma de uma vida
confortável do ponto de vista material e respeitável do ponto de vista social.
Ela não consegue romper abertamente com os padrões sociais do sistema
patriarcal, tal como Rita Baiana e Léonie. Porém, Estela também surpreende,
pois impõe ao marido o pior castigo que um homem pode viver dentro de uma
sociedade patriarcal: ele é traído constantemente pela fogosa e matreira
esposa. Estela vive os seus amores bem “escondidos”, tão “escondidos” que não
escapa de ser descoberta por um observador mais atento e, principalmente, pelo
próprio marido. O que equivale a dizer que Estela consegue, a seu modo,
desrespeitar o padrão convencional estabelecido para a mulher dentro do
matrimônio. Vimos que Zulmira, a filha de Miranda e Estela, é fruto dessa
inconstância amorosa. Estela não gosta da filha por supô-la filha do marido.
Miranda não gosta da filha por não ter certeza que é seu pai.
Miranda
casou-se com Estela, por causa do seu dote, e não tem independência financeira
para viver bem sem esse dote, por isso Estela tem o marido em suas mãos. Ela é
a senhora e dona do seu relacionamento matrimonial com Miranda.
Bertoleza,
como Estela, também está aprisionada dentro de um falso casamento, porém em
situação bem pior que Estela. O casamento de Bertoleza é uma amigação de vários
anos com João Romão. Se Estela é dona e senhora do seu casamento, Bertoleza é
uma verdadeira caixa registradora de armazenar dinheiro para João Romão, com o
fruto do seu árduo trabalho.
Por
outro lado, tanto Bertoleza quanto Rita Baiana se deixam empolgar pelo homem
branco europeu. Ambas avaliam que o homem branco é um ser superior ao negro, ao
mestiço. Mas, ironicamente, é essa suposta “superioridade branca” que leva
Bertoleza à ruína financeira, afetiva, moral e social, que a transforma em um
burro de carga para o seu querido “Seu João”. Enquanto ele ascende social e
financeiramente com o dinheiro do trabalho de Bertoleza, ela decai até a morte,
provocada por João Romão, quando, num ato de extremo desespero e dor, por ter
sido entregue a seu antigo dono, pelo seu homem branco, Bertoleza comete o
suicídio.
Entretanto,
Bertoleza sempre foi fiel em tudo ao seu homem. Ela nunca o traiu,
diferentemente de Estela. Tinha grande orgulho dele e sentia prazer em estar ao
seu lado. Mas ele João Romão era casado não com ela, e sim com o dinheiro que
vinha do trabalho dela. O envolvimento dele com ela representa bem a combinação
determinista do homem branco que se aproxima da mulher negra com objetivo
exploratório. Bertoleza, dentro da representação literária naturalista, torna-se
uma figura grotesca e animalesca; é ferida em sua feminilidade em função de um
embrutecimento que a torna um ser inferior. Na sua dignidade ela também é
aviltada em função da mentalidade escravocrata. Ela adoece na alma, mas não
consegue viver sem aquela figura masculina, representada pelo branco europeu.
Segundo Alfredo Bosi, (2003) “o naturalista julga interessante o patológico,
porque prova a dependência do homem em relação à fatalidade das leis naturais”.
(p. 172).
Como
vimos, Rita Baiana também trocou Firmo, seu amor mestiço, por Jerônimo, um
branco europeu. Mas, diferentemente de Bertoleza, Rita Baiana não só conquista
Jerônimo, como o deixa de “queixo caído” por ela, graças a sua sensualidade
venenosa de “mulher serpente”. Ou seja: Rita Baiana nunca é inferior a
Jerônimo, da forma como Bertoleza é sempre inferior a João Romão. Isso
estabelece uma grande diferença entre essas duas mulheres negras, bem como
entre o tipo de relação que elas mantêm com os homens brancos, considerados
racialmente superiores. Rita Baiana, por meio da sedução, é a dona do seu
relacionamento amoroso com Jerônimo, tanto que ele cometeu loucuras por ela:
matou Firmo, o amante mestiço indesejável de Rita, e largou sua mulher e filha
a própria sorte. Enquanto Bertoleza é seduzida por João Romão por que ele vê
nela apenas uma força de trabalho. Ela não tem nenhuma influência amorosa sobre
ele. Por fim, é claramente visível que, ao final, Rita Baiana é quem destrói
Jerônimo moralmente, mas Bertoleza é totalmente destruída por João Romão, que a
leva ao suicídio.
Mas a
personagem Bertoleza também é figura com traços de caráter surpreendentes.
Aliás, talvez mais até do que todas as outras quatro personagens objeto do
nosso estudo: Rita Baiana, Pombinha, Léonie e Estela. Bertoleza surpreende pela
sua condição humilde e de escrava humilhada. Apesar de ser analfabeta, ela
mesmo assim consegue fazer contas e dirigir com eficiência sua quitanda, de
forma a saldar todas as suas contas em dia, e ainda pagar mensalmente uma
quantia em dinheiro ao seu dono. Ela consegue poupar para comprar sua carta de
alforria, e isso tudo dentro da legalidade da lei. Trabalhava honestamente na
sua quitanda, que era bem administrada, pois tinha uma grande freguesia.
Bertoleza não sabia, mas era detentora de um alto e refinado talento: ela possuía
espírito empreendedor. Portanto, apesar da figura grotesca e animalesca com que
aparece no romance, o narrador também aponta em Bertoleza virtudes intelectuais
e morais, que existem em seu caráter, ainda que em caráter embrionário. O
problema é que tais virtudes, atuantes em Bertoleza quando ela ainda era
solteira, quando não vivia sob a tutela do casamento com João Romão, foram
totalmente anuladas pelo convívio com o marido. João Romão, e o casamento,
foram a desgraça de Bertoleza. A pressão determinista, motivada por preconceito
racial e pela mentalidade escravocrata do Brasil de então, encaminhou Bertoleza
para João Romão, um homem inferior a ela, mas que era branco. Bertoleza não
precisava de João Romão em sua vida. Ele, na verdade, desvirtuou Bertoleza, a
qual, de honesta que era, passou até a roubar material de construção da
vizinhança, para as obras do cortiço do marido.
Rita
Baiana também sofre a pressão determinista racial, tanto que ela desprezou
Firmo, o amante mestiço, por preferir Jerônimo, o europeu branco. Estela, por
exigência da sociedade burguesa, permanece junto de Miranda, seu odiado marido.
Por
outro lado, como vimos, o Naturalismo cru de O cortiço não deixa de lado
uma escrita marcada pelo lirismo, presente, sobretudo, na caracterização das
personagens Rita Baiana e Pombinha, e encontrado no discurso descritivo do
narrador quando mostras as danças, vestimentas e conquistas sensuais de Rita
Baiana, bem como na cena do mênstruo de Pombinha, que, deitada ao chão, recebe
a visita do astro rei enamorado daquela menina-mulher. Acerca desse lirismo no
naturalismo, Araripe Junior esclarece: “Assim, os naturalistas brasileiros
seriam diferentes dos europeus, por força do clima aqui dominante; isso
eliminaria do naturalismo ortodoxo as suas arestas, possibilitaria a sua
adaptação ao nosso caso. E assim ocorreria, em realidade, porque os nossos
naturalistas, e Aluísio Azevedo principalmente, desobedeciam de forma
espontânea a fórmula ortodoxa e externa, oferecendo obras de mérito.” (Apud,
CRUZ, 2008, p.39).
Em
suma, podemos dizer que a mais auto-suficiente das cinco personagens femininas
aqui estudadas é Pombinha. Isso decorre do fato de ela ser escolarizada. Por
saber ler e escrever, ganhou entendimento da vida ao escrever e ler cartas para
a gente do cortiço. Somou o seu letramento com a vivência dos dramas humanos
descritos nas cartas, e pôde compreender melhor a alma humana. Desta forma, ela
rompe com o provincianismo do seu casamento, vai de encontro ao mundo
masculino, toma o seu destino em suas mãos, e parte à procura de uma vida com
perspectivas mais amplas, dentro que é possível na sociedade da época. No caso
dela, essa tentativa de uma existência mais livre desemboca na prostituição. Ou
seja: para ela se tornar cosmopolita, a força do determinismo do meio e do
momento, prepara-lhe a cilada da prostituição. Pombinha, como prostituta, passa
da condição de menina e adolescente pobre, oprimida pelo meio, para a condição
de exploradora dos barões do café, juntamente com Léonie. Elas vendiam caro
seus copos àqueles honrados e “bem casados” cidadãos.
Por
fim, podemos afirmar que as cinco personagens deste estudo, Rita Baiana,
Pombinha, Léonie, Estela e Bertoleza, revelam traços de personalidade
surpreendentes, que vão se tornando visíveis ao longo da narrativa de O
cortiço. O percurso amoroso de cada uma é singular, dentro de um enredo,
caracterizado de grande realismo, que aproxima, em um mesmo universo, mulheres
diferentes. Em António Candido (1970), encontramos uma explicação para a
composição amorosa dessas personagens: “… a verdade da personagem não depende
apenas, nem sobretudo da relação de origem com a vida (...). Depende, antes do
mais, da função que exerce na estrutura do romance, de modo a concluirmos que é
mais um problema de organização interna que de equivalência à realidade
exterior” (p.75).
Aluísio
Azevedo organizou as experiências amorosas de Rita Baiana, Pombinha, Léonie,
Estela e Bertoleza, de forma tal, que não deixa dúvidas para o leitor que essas
cinco personagens estão bem entrelaçadas com a composição fragmentária do
romance. Elas têm ligação direta com o momento sócio-histórico, e, como
personagens, estão unidas ao material estético-literário da composição
realista-naturalista. Essas mulheres são personagens que ganham vida na união
com a composição estrutural do romance, na qual conseguem surpreender de forma
positiva no que tange, por exemplo, à autonomia financeira. Nenhuma delas
dependem financeiramente de seus pares amorosos, o que é algo raro dentro de
uma sociedade patriarcal. Por isso, segundo Antonio Candido (1970), “as personagens
planas, na sua forma mais pura, são construídas em torno de uma única idéia ou
qualidade quando há mais de um fator neles, temos o começo de uma curva em
direção à esfera” (p.62).
Portanto
essas cinco mulheres iniciam, cada uma delas, um percurso amoroso, e fazem uma
curva na escala: de personagens planas para esféricas. Elas continuam subindo
na curva esférica, através do comportamento social não padronizado, com exceção
de Bertoleza. Mas, Bertoleza, por seu lado, é a única a surpreender pela
fidelidade amorosa dedicada a seu par amoroso. Rita Baiana, Estela e Pombinha
continuam subindo na curva esférica das personagens, pois a três tem o mando
dos seus relacionamentos amorosos. Já Bertoleza também alcança o maior grau na
curva esférica, por seu espírito empreendedor, na gestão honesta e competente
da sua micro empresa, sua quitanda, fato extraordinário dentro da sociedade
patriarcal. Já Léonie trouxe consigo, da França para o Brasil, o glamour e a
experiência da prostituta francesa. Ela consegue surpreender pela audácia traiçoeira,
no desvirtuamento moral e sexual de sua afilhada Pombinha.
Todas
essas cinco mulheres conseguem surpreender; umas mais, outras menos, mas
nenhuma fecha a curva das personagens esféricas, pela cilada do determinismo da
raça, do meio e do momento, e sendo assim não conseguem mais avançar nas suas
ações.
Fonte: Rita Chapsky, in «O Pecurso Existencial das Personagens de O Cortiço». São Paulo. 2010.