Português: 2025

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Resumo do capitulo II de O Meu Pé de Laranja Lima

    O capítulo abre com Zezé a explicar que, na sua família, os mais velhos tomavam conta dos mais novos e relembra com carinho a relação com os irmãos, especialmente com Lalá, que já não lhe dá tanta atenção desde que começou a namorar. Deste modo, a relação mais próxima atualmente é a que mantém com o mais novo, Luís, por quem Zezé demonstra grande carinho e responsabilidade.
    Os dois irmãos vão brincar para o quintal e Zezé, com a sua fértil imaginação, transforma o espaço num zoológico (que, na verdade, não passa de um galinheiro), na Europa e até num campo de aviação, imaginando que o morcego Luciano era um avião. A criança inventa histórias, dá nome a lugares e cria brinquedos com objetos simples, tudo para entreter o irmão, bem como para se proteger do mundo que o rodeia, já que é frequentemente punido pelas suas travessuras.
    Enquanto brincam, Zezé escuta a conversa entre Glória e Lalá sobre si e apercebe-se de que elas já têm conhecimento de uma das suas últimas travessuras – cortar uma corda de roupa com um pedaço de vidro. Ele sente-se culpado e, resignadamente, aceita a punição que certamente se seguirá.
    A mãe decide que todos devem ir visitar a casa nova, para onde se mudarão dois dias após o Natal, facto que desperta em Zezé a recordação da dura infância da progenitora, impedida de frequentar a escola e forçada a trabalhar desde os seis anos. Este passo suscita o tema do Natal, abordado num tom triste e melancólico, em virtude da pobreza da família. Zezé, não obstante, tem alguma esperança no nascimento do Menino Deus.
    Ao visitarem a casa pela primeira vez, cada irmão escolhe uma árvore do quintal. Zezé fica para trás e entristece, porque as melhores já foram escolhidas. Glória tenta animá-lo e indica-lhe um pé de laranja lima. Inicialmente, o menino rejeita-o, mas Glória destaca o facto de serem ambos muito jovens e de poderem crescer juntos, como irmãos. Depois de escolher a sua árvore, Zezé sente-se insatisfeito e frustrado, desejando ser muito rico no futuro para poder comprar uma selva inteira. Nesse momento, enquanto está sentado no chão, só e a choramingar, a árvore fala pela primeira vez com a criança, dizendo-lhe que concorda com Glória e que ela iria perceber que tinha feito uma boa escolha. Zezé reage com admiração, mas rapidamente se deixa encantar pela forma como a árvore lhe explica que a ligação entre os dois é única e especial. A partir desse momento e até a mudança de casa se concretizar, o menino visita o pé de laranja lima – que passa a chamar Minguinho – com regularidade. Rapidamente, cria um vínculo mágico com a árvore, imaginando que falam um com o outro. O pé passa então a representar um refúgio emocional para Zezé, um amigo secreto que o compreende e escuta. O capítulo termina com o menino a declarar que, mesmo se pudesse trocá-lo por outras árvores, não o faria.

domingo, 15 de junho de 2025

Benfica é tetracampeão de basquetebol masculino!

Tetracampeonato

Regime iraniano sob ataque


                O cartune, da autoria de Christian Adams, aborda o ataque de Israel à República Islâmica do Irão, representando simbolicamente a destruição dos alicerces do regime teocrático. Através da imagem de uma estátua sendo atacada por mísseis, o cartunista critica a rigidez do poder religioso e aponta para a sua crescente instabilidade, diante de pressões externas e/ou internas. É uma representação política visual que sugere a fragilidade de um sistema que aparenta solidez, mas está sob ataque.

                Em primeiro plano, encontramos uma estátua imponente do líder iraniano Ali Khamenei. A figura está de pé, trajando vestes religiosas tradicionais — túnica longa e turbante — com expressão severa e uma das mãos levantadas em gesto de autoridade ou bênção, o que remete para o poder teocrático iraniano. A escultura é feita em pedra acinzentada, reforçando a ideia de rigidez, conservadorismo e culto à personalidade. Na base da estátua, lê-se parcialmente a inscrição "ISLAMIC REPUBLIC" (República Islâmica), que está rachada e a ser atingida por explosões. Vários mísseis atingem ou dirigem-se para a sua base, vindos de diferentes direções. As explosões são intensas, com cores quentes como vermelho, laranja e amarelo, em forte contraste com os tons frios do restante da imagem. Esses elementos criam uma sensação de tensão, destruição iminente e conflito direto. O facto de os ataques se concentrarem na base da estátua é simbólico: indica que os fundamentos do regime estão a ser atingidos na tentativa de os destruir, mesmo que sua “fachada” ainda permaneça em pé, embora inclinada.

Num plano mais afastado, deparamos com a cidade de Teerão, capital do Irão, identificável pela sua paisagem urbana e pela presença da Milad Tower, um dos marcos mais reconhecíveis da urbe. Os edifícios são modernos, sugerindo uma sociedade urbana, dinâmica e conectada ao mundo contemporâneo. As cores utilizadas são predominantemente frias e claras (tons de azul, cinza e branco), criando um contraste com as explosões vibrantes do primeiro plano. Esse fundo urbano representa a população civil, a modernidade e a vida real que existe paralelamente à estrutura teocrática representada pela estátua. Pode também simbolizar o contraste entre o desejo de progresso da sociedade iraniana e o conservadorismo do regime vigente.

Ao fundo, estão representadas as montanhas nevadas, que representam a cordilheira de Alborz, que cerca Teerão. Elas estão pintadas em tons de branco e azul claro, transmitindo uma sensação de solidez, permanência e tranquilidade natural. Esse elemento pode ter um duplo simbolismo: por um lado, reforça a geografia iraniana, situando o cenário de forma inequívoca; por outro, pode simbolizar a resistência do povo iraniano, ou até a ideia de que o país (a terra, o território) permanece, independentemente das estruturas de poder que nele se ergam ou desmoronem. A paz das montanhas contrasta diretamente com o caos e destruição do primeiro plano.

                Em suma, este cartune utiliza metáforas visuais potentes para retratar os ataques que Israel está a desferir sobre o regime da República Islâmica do Irão, a pretexto de destruir a ameaça que constitui o seu programa nuclear. A estátua representa o poder teocrático, rígido e autoritário, enquanto os mísseis e explosões indicam que esse poder está sendo desafiado e corroído, especialmente nas suas fundações. A cidade moderna ao fundo aponta para uma sociedade que deseja avançar, enquanto as montanhas evocam permanência e resiliência. A obra transmite uma mensagem clara: apesar da aparência imponente do regime, as suas bases estão sob ataque — e talvez prestes a ruir.


sexta-feira, 13 de junho de 2025

Estrutura de O Meu Pé de Laranja Lima

    O Meu Pé de Laranja Lima está dividido em duas secções relativamente proporcionais, dois momentos que caracterizam distintamente o crescimento de Zezé.
    A primeira parte da obra tem o subtítulo “No Natal, às vezes nasce o Menino Diabo”, é constituída por cinco capítulos (“O descobridor das coisas”, “Um certo pé de laranja lima”, “Os dedos magros da pobreza”, “O passarinho, a escola e a flor” e “Numa cadeia eu hei de ver-te morrer”) e apresenta as personagens que darão corpo ao enredo principal, permitindo, dessa forma, começar a desenhar o perfil do protagonista, o “descobridor das coisas”, conjugando a vulnerabilidade natural de uma criança de cinco anos com a determinação e a força de uma criança que crê que o mundo existe para ser entendido e explorado.
    Miguel Neves Santos (op. cit., pp. 7-11), subdivide esta primeira parte nas seguintes sequências: “A família e o «Descobridor de Coisas»”, “A Ilusão e a Desilusão: Sonho e Miséria”, “Imaginação e Crescimento”, “Memória e Esperança”, “A Sensibilidade e o Bom Coração do «Menino Diabo»”.
    A segunda parte, composta por nove capítulos (“O morcego”, “A conquista”, “Conversa para cá e para lá”, “Duas surras memoráveis”, “Suave e estranho pedido”, “De pedaço em pedaço é que se faz ternura”, “O Mangaratiba”, “Tantas são as velhas árvores”, “A confissão final”), tem como subtítulo “Foi quando apareceu o Menino Deus em toda a sua tristeza” e é nela que se desenvolvem os aspetos mais marcantes da narrativa. Deste modo, o leitor assiste ao crescimento de Zezé, cuja existência oscila entre a felicidade e a tristeza, a esperança e o infortúnio.
    O subtítulo remete para momentos de revelação e de transformação, que se revelam também dolorosos e que guiam o percurso de aprendizagem de Zezé, uma criança que, graças à experiência que vai adquirindo, deixa progressivamente de o ser, “principalmente aos olhos de um narrador adulto que parece também notar tal facto, à medida que compõe a história que quer contar.” A testemunha de tudo isso é o pé de laranja lima, o «amigo de todas as ocasiões” que se constitui como uma das mais importantes para a compreensão da obra.
    Miguel Neves (op. cit., pp. 13-19) subdivide esta segunda parte nas seguintes sequências: “Amigos Inesperados: a Importância das personagens secundárias”, “Pequenas e Grandes Conquistas: a Vida é feita de Mudanças”, “Entre o Céu e o Inferno: o Afeto dá Lugar à Violência”, “Sarar as Feridas e Reparar os Sonhos”, “A Dor e o Vazio Impostos pela Perda Irreparável”.

Análise de O Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos

 I. Vida de José Mauro de Vasconcelos


II. Obras


III. Obra


IV. Época


V. Ação

        1. Resumo

        2. Estrutura

        3. Resumo dos capítulos

                3.1. Primeira parte

                        3.1.1. Primeiro capítulo

                        3.1.2. Segundo capítulo

                        3.1.3. Terceiro capítulo


quinta-feira, 12 de junho de 2025

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Resumo do capitulo I de O Meu Pé de Laranja Lima

A obra abre com o relato de uma caminhada de Zezé e Totoca, seu irmão, que lhe dá instruções práticas para a vida e o afasta da imaginação e das ilusões que poderão colocar o protagonista em perigo ou fazê-lo sofrer. Por meio de comentários, breves memórias e curtas analepses, o leitor começa a conhecer as personagens e o contexto da ação.
    Os dois irmãos caminham de mãos dadas e Totoca ensina a Zezé coisas do mundo, como, por exemplo, o caminho para a escola ou como atravessar a rua em segurança, nomeadamente a movimentada Rio – São Paulo, explicando que, antes de o fazer, é necessário olhar para os dois lados. O protagonista sente medo, mas esforça-se para não o demonstrar, enquanto o irmão o incentiva a fazer o trajeto sozinho, afirmando que está a crescer e necessita de aprender.
    Enquanto caminham, conversam sobre diversos temas. Zezé evidencia uma grande curiosidade filosófica e poética sobre a vida. Por exemplo, questiona se a “idade da razão pesa” e mostra admiração por Tio Edmundo, um senhor aposentado que ele considera «sábio» e que gostaria de imitar quando crescesse, incluindo uma gravata de laço, porque todos os poetas que vê nas revistas usam esse acessório.
    Entretanto, chegam à nova casa para onde a família se vai mudar. Zezé gosta da habitação, mas não compreende o motivo da mudança. A conversa revela, então, um contexto familiar difícil: o pai está desempregado, a família enfrenta problemas financeiros, por isso terão que se mudar para a outra casa. Além disso,  a mãe começará a trabalhar fora, e até a irmã Lalá já está empregada. O próprio Totoca, apesar de ainda ser jovem, terá que ajudar na missa para contribuir financeiramente para o núcleo familiar.
    Mesmo sendo criança, Zezé percebe a dureza da vida e tenta lidar com as circunstâncias com criatividade e fantasia. Assim, pergunta sobre o seu «zoológico», uma brincadeira infantil que envolve a presença imaginária de animais como panteras e leoas. Totoca brinca de forma afetuosa, dizendo que será ele quem desmontará o zoológico da casa antiga para o remontar na nova.
    Totoca, de seguida, tenta descobrir como o irmão mais novo conseguiu aprender a ler sozinho, mesmo antes de completar seis anos, um acontecimento que causara o espanto de toda a família. Zezé insiste que não sabe como aprendeu e ninguém o ensinou. Recorda-se apenas de uma ocasião em que perguntou a Tio Edmundo se era possível alguém aprender a ler com cinco anos, ao que aquele respondeu afirmativamente, acrescentando que era, no entanto, incomum. Zezé recorda também um episódio em que surpreendeu Jandira, a irmã, ao ler uma oração afixada atrás da porta. Ninguém acreditava que ele realmente soubesse ler, por isso Jandira deu-lhe um jornal e a criança leu-o. Em poucos minutos, os vizinhos e os familiares estavam reunidos para assistir ao «fenómeno», concluindo que tinha aprendido a ler sem ajuda direta de ninguém, o que causou um misto de espanto, orgulho e desconfiança.
    Posteriormente, Zezé relembra uma conversa com Tio Edmundo, durante a qual lhe pediu um presente: um cavalinho de pau chamado “Raio de Luar”, como o do cinema. O homem aceita o pedido, mas em troca quer um abraço, um gesto a que a criança acede sinceramente, ao perceber que o Tio se sente só e falta dos filhos. Logo a seguir, promete-lhe que vai ler para ele, provando a sua habilidade recém-descoberta.
    No final do capítulo, Tio Edmundo cumpre a promessa e oferece-lhe o cavalinho. Ele testa Zezé com um jornal, e a criança lê corretamente até palavras difíceis como «farmácia». Em suma, ninguém entende como o pequeno aprendeu a ler, e nem este mesmo sabe explicar – é tratado quase como um «milagre». Emocionado, Tio Edmundo compara o seu nome ao de José do Egito, que também foi um menino especial, e prognostica que a criança será alguém especial. Zezé não entende as palavras do homem, mas afirma que quer ouvir essa história quando “crescer mais”, pois adora histórias difíceis.
    Neste contexto, Totoca fica impressionado, mas, em simultâneo, aborrecido por o irmão ter aprendido a ler tão cedo, acrescentando que agora ele terá que ir à escola, pois a irmã Jandira considerou que seria uma forma de manter a casa mais tranquila pela manhã. Além disso, avisa que não voltará a atravessar a rua com Zezé, que terá de aprender a fazê-lo sozinho.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Resumo de O Meu Pé de Laranja Lima

    O Meu Pé de Laranja Lima é uma obra narrativa autobiográfica que relata a infância sofrida e as desventuras de Zezé, um menino de cinco anos natural de Bangu, periferia do Rio de Janeiro, no final dos anos 20 do século XX. Muito esperto e independente, aprende a ler sozinho e, como qualquer criança deixada solta, “vive aprontando”, expressão que designa as asneiras e partidas que prega e que, regra geral, têm consequências desastrosas para quem as faz e as sofre: “Aprendia descobrindo sozinho e fazendo sozinho, fazia errado e fazendo errado, acabava sempre tomando umas palmadas.”

    A sua vida é tranquila e estável, habita uma casa confortável e vive com conforto material, até ao momento em que o pai perde o emprego e a mãe se vê forçada a trabalhar na cidade, mais especificamente no Moinho Inglês, uma fábrica de tecidos. Para agravar a situação, a família é extensa – Zezé tem cinco irmãos: Glória, Totoca, Lalá, Jandira e Luís. Operária na fábrica, a mãe passa o dia a trabalhar enquanto o pai, desempregado, fica em casa e começa a beber. Em virtude da nova situação para que é arrastada, a família vê-se forçada a mudar de casa e a levar uma vida modesta, por isso não é de espantar que os Natais outrora fartos sejam substituídos pela mesa vazia e por uma árvore sem presentes. No quintal da nova residência, existem diversas árvores, e cada membro da família escolhe uma para chamar sua. Zezé é o último a escolher e fica com um modesto pé de laranja lima, com o qual mantém longas conversas e a que chama carinhosamente Minguinho e Xururuca. Dadas a sua traquinice e as constantes travessuras, é frequente ser agredido fisicamente pelos pais e pelos irmãos, indo depois consolar-se com a árvore. Certa vez, foi sovado de tal maneira por uma das irmãs e pelo pai que ficou uma semana sem ir à escola.

    A outra grande amizade de Zezé é Manuel Valadares, também conhecido por Portuga, um emigrante português que trata a criança com o afeto, a atenção e paciência que não tinha em casa. Por uma fatalidade do destino, Valadares é atropelado pelo comboio e morre, evento que tem um fortíssimo impacto em Zezé, que fica doente. Outro acontecimento dramático marca negativamente a sua vida: o pé de laranja lima é cortado por ter crescido mais do que era suposto.

    Zezé recupera e recomeça avida, apesar de sentir um enorme vazio. Entretanto, a situação económica da família melhora quando o pai encontra emprego numa fábrica. Por outro lado, não há também motivo para temer o corte do pé de laranja lima, dado que tal não acontecerá tão cedo. É neste contexto que a história termina, com Zezé a assumir simbolicamente que a sua árvore amiga já fora cortada, associando-a ao desaparecimento do Portuga, sem o pai perceber.

    A ação termina com o narrador a ser um Zezé agora adulto que se dirige a Manuel Valadares, mais de quarenta anos depois, e lhe confessa o impacto que teve na sua existência. Por outro lado, desabafa a influência que teve em si o facto de ter sido precocemente atingido pela realidade dura e cruel, que choca com a inocência, a alegria e a esperança que deveriam caracterizar a infância.

Época de escrita de O Meu Pé de Laranja Lima

    O período de vida de José Mauro de Vasconcelos coincidiu com uma época marcada por algumas das transformações mais importantes ocorridos no mundo ocidental.
    Em termos históricos e políticos, o escritor viveu a sua adolescência e juventude no chamado Período (ou Era) Vargas, numa alusão ao governo liderado por Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945. Esta fase da História do Brasil ficou marcada por um conjunto de reformas sociais e económicas que tiveram como foco principal a industrialização e a crescente urbanização, bem como pela forte centralização do poder e pelo nacionalismo.
    Posteriormente, surge o período histórico que coincide com a vida adulta do escritor e que diz respeito à fase compreendida, sensivelmente, entre a década de cinquenta e o início dos anos 80 do século XX. São anos marcados pela instabilidade política e pela alternância entre a democracia e a ditadura militar, que se estendeu de 1964 a 1985. Assim sendo, quando publicou O Meu Pé de Laranja Lima, o Brasil já estava sob o regime militar, caracterizado, entre outras coisas, pela censura e pela repressão política. Esta época de alternância ficou marcada por um surto de crescimento e progresso, acompanhado de grandes desequilíbrios sociais, que persistem e, de certo modo, se acentuam na vida quotidiana dos brasileiros. Ao tema da pobreza juntam-se, sistematicamente, os da injustiça e da opressão, por exemplo, e que inspiram muitas das suas obras. A taxa de pobreza era muito elevada, havia graves problemas de acesso à educação e saúde, especialmente no interior do país e entre as classes mais baixas, daí que muitas famílias migraram do campo para as cidades em busca de melhores condições. Além disso, havia também problemas de negligência infantil, com crianças de classes populares a enfrentarem abandono, trabalho precoce e violência, temas tratados em diversos livros de José Mauro de Vasconcelos.
    Culturalmente, a vida do escritor coincide com as diferentes fases do Modernismo, caracterizado pela liberdade criativa, pelo olhar atento ao comportamento humano, pela tendência para exibir traços nacionalistas e pela valorização dos aspetos que revelam a identidade de cada região.
    Por outro lado, novamente nas palavras de Miguel Santos (op. cit., p. 6), “Privilegia-se […] o espaço da imaginação, a exploração dos limites da consciência racional do indivíduo, o papel do sonho e até do delírio, mas, ao mesmo tempo, não se negligencia o real, a ciência, o conhecimento e promove-se uma visão reflexiva e inquiridora face ao mundo. São também estes alguns dos traços que tornam a sua obra não só uma viagem através da sensibilidade humana, mas também um relevante e esclarecedor testemunho acerca da realidade social, de que todos fazemos parte.”

terça-feira, 10 de junho de 2025

A obra de José Mauro de Vasconcelos

    Miguel Neves Santos, numa análise de O Meu Pé de Laranja Lima, publicada na coleção Análise de Obras Essenciais, da Fábula Educação, pronuncia-se sobre a obra de José Mauro de Vasconcelos nos seguintes termos: “A nitidez dos cenários que apresenta nos seus textos decorre, então dos espaços e ambientes que ele mesmo percorre, à medida que interiormente vai dando forma aos seus romances, através da memória e da imaginação. O autor define da seguinte maneira a génese do seu processo criativo: «Quando a história está inteiramente feita na imaginação é que começo a escrever. Só trabalho quando tenho a impressão de que o romance está saindo por todos os poros do corpo. Então vai tudo num jacto.»
    É talvez por isso que as obras de José Mauro se revestem de uma linguagem simples, tantas vezes corrente e popular, mas com uma acuidade tremenda, que coloca o leitor em permanente contacto com os aspetos concretos da realidade em que o autor quis reparar e nos quais quis que o leitor se focasse.
    Neste contexto, O Meu Pé de Laranja Lima (1968) surge como um dos momentos mais altos da carreira literária do autor. Redigido numa fase de inquestionável maturidade artística, esta obra coloca em evidência as suas virtudes poéticas, naquela que é também uma viagem ao passado, num romance com um evidente cariz autobiográfico, posto desde logo em destaque pela escolha do nome do protagonista, Zezé, mais uma das múltiplas ocasiões em que a infância de José Mauro se projeta literariamente.
    A história desta criança de seis anos, personagem principal do enredo, criou um estrondoso impacto em leitores de todas as idades, facto que se mantém até aos dias de hoje, visto tratar-se de uma das obras mais lidas de sempre. De facto, continua a ser admirável o número de pessoas que, ao longo dos anos, vai afirmando que foi esta a sua primeira leitura significativa enquanto jovens, que foi esta a primeira vez que entenderam o valor emocional que um livro pode acarretar, que foi após a leitura desta obra que se tornaram verdadeiramente leitores.
    Em suma, José Mauro de Vasconcelos coloca nas suas obras as vivências quotidianas de um mundo contemporâneo que definitivamente tarda em revelar-se moderno e sofisticado para todos. A sua escrita expõe o seu apreço pela clarificação dos pensamentos e sentimentos das personagens a cada instante. Além dos papéis sociais, importa sobretudo a dimensão psicológica e a carga emotiva que cada pessoa traz consigo (nada melhor que uma criança para reparar com profundidade nos aspetos mais simples da existência). São esses cenários repletos de humanidade que privilegia e é precisamente esse lado pessoal que permite ao leitor ligar-se às vidas que vão surgindo página após página. Muitas das obras do autor estabelecem, inclusivamente, interessantes nexos de intertextualidade com outros romances e autores da época, como, por exemplo, a célebre história d’ Os Capitães da Areia, publicado em 1939, por Jorge Amado.”

Obras de José Mauro de Vasconcelos

. Banana Brava (1942)

. Barro Blanco (1945)

. Longe da Terra (1949)

. Arara Vermelha (1953)

. Arraia de Fogo (1955)

. Rosinha, Minha Canoa (1962)

. Doidão (1963)

. O Garanhão das Praias (1964)

. O Meu Pé de Laranja Lima (1968)

. Rua Descalça (1969)

. O Palácio Japonês (1969)

. Farinha Órfã (1970)

. Chuva Crioula (1972)

. O Veleiro de Cristal (1973)

. Vamos Aquecer o Sol (1974)


segunda-feira, 9 de junho de 2025

Biografia de José Mauro de Vasconcelos

    José Mauro de Vasconcelos nasceu em Bangu, no Rio de Janeiro, no dia 26 de fevereiro de 1920, no seio de uma família pobre, oriunda do Nordeste brasileiro e com raízes portuguesas (era filho de um imigrante lusitano). Viveu uma infância com parcos recursos, tendo ido viver aos 8 anos para casa de uns tios, na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. Os seus primeiros anos foram marcados, portanto, por um contexto socioeconómico desfavorável, um facto de que contribuiu para que tivesse um olhar bastante crítico sobre o mundo. A nova família educou-o com esmero, porém acabou por se aperceber de que era um «menino dado», o que deixou marcas no seu trabalho adulto como uma nostalgia de perda.
    Aos 9 anos, aprendeu a nadar e recordou, ao longo de toda a sua vida, com grande prazer, a época em que mergulhava nas águas do Rio Potengi para se preparar para competições de natação em que participava regularmente, tendo vencido diversas. O seu primeiro emprego sucedeu aos 16, 17 anos, como parceiro de treino de boxers peso-pena.
    A sua juventude foi agitada, nomeadamente após os anos de frequência da escola, marcada por um curso superior inacabado e incursões em áreas profissionais muito distintas (carregou bananas numa quinta em Mazomba, foi pescador, garimpeiro, pugilista, professor primário em Recife...). No curso ginasial, leu romances de Graciliano Ramos, Paulo Setúbal e José Lins do Rego.
    A frequência durante dois anos do curso de Medicina permitiu-lhe que se tornasse uma espécie de enfermeiro, enquanto viajava pelo interior profundo do Brasil. Por outro lado, serviu de modelo para o Monumento à Juventude Brasileira, uma estátua da autoria do escultor Bruno Giorgi, em 1941, que foi colocada nos jardins do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro.
    À semelhança do que sucedeu com o escritor Lima Barreto, conviveu de perto com a loucura, dado que o pai adotivo era diretor de um hospício e aí teve oportunidade de ler livros de psiquiatria e conviveu com os loucos. Numa entrevista dada à revista “Manchete”, em 1973, declarou que talvez esse interesse o tenha conduzido à frequência do curso de Medicina.
    Depois de ter concluído os estudos secundários, José Mauro de Vasconcelos frequentou sucessivamente as faculdades de Medicina, Direito e Desenho e Filosofia, sem, contudo, ter concluído qualquer curso. Em 1952, beneficiando de uma bolsa de estudos, frequentou durante três dias a Universidade de Salamanca, em Espanha, saindo com o pretexto de que “tudo ali era muito chato”, facto que evidencia o seu empenho em dar prioridade às múltiplas experiências que se inscrevem no lado mais prático e emocional da sua vida, em detrimento de um saber académico que condicionasse a liberdade da sua imaginação. De Salamanca partiu para Madrid, Itália e França, a expensas próprias. Regressado ao Brasil, estabeleceu-se no Rio de Janeiro, cidade onde trabalhou como lutador de boxe, como referido anteriormente.
    Começou a escrever em 1940, tendo sido os romances de estreia – Banana Brava e Barro Blanco – bem recebidos pelos críticos literários, tendo chegado a ser comparado a Jack London. As experiências vividas foram criando a matéria-prima para as suas histórias. Com efeito, os traços realistas e autênticos das suas obras decorrem, de facto, do seu contacto com questões como a pobreza extrema, as desigualdades sociais, a mudança, a família, a morte e os sonhos. De facto, o conhecimento que foi adquirindo, sobretudo durante as suas viagens, a partir dos 20 anos, pelo Brasil e pela Europa, constituiu uma das principais bases da sua criação literária. Por exemplo, da sua primeira viagem à selva, durante a qual abriu mato a peito, morou com os índios e se aventurou no garimpo, nasceu a obra Banana Brava, um livro-experiência que lhe “custou a perna direita quebrada em três lugares”. No regresso da aventura, ao subir o rio Tocatins, trazia a obra pronta na cabeça, tendo-a escrito em 27 dias. Quando chegou a São Paulo, onde residia por favor na casa de uma tia, decidiu tratar da perna paralisada, por isso viajou para o Rio de Janeiro a fim de se tratar num hospital de indigentes, onde conheceu um grade dominicano que leu o livro e o levou para a Editora Agir.
    José Mauro de Vasconcelos, apesar das suas origens bem humildes, frequentou a alta sociedade paulista, aparecendo com frequência nas colunas sociais de Tavares de Miranda, da revista “O Cruzeiro”. Por outro lado, soube também valorizar as dedicatórias inscritas nos seus textos. Por exemplo, em O Meu Pé de Laranja Lima, faz uma oferta a Ciccillo, com a advertência “para os vivos” na edição original, e “para os que nunca morreram”, nas edições posteriores à morte do amigo, antes de mencionar os parentes já falecidos.
    José Mauro de Vasconcelos participou também no cinema nacional. Assim, em 1956, no romance Arara Vermelha foi adaptado e distribuído pela Columbia Pictures do Brasil, com Tom Payne na realização e Anselmo Duarte, Odete Lara, Milton Ribeiro, Hélio Santos e Ricardo Campos no elenco. Em 1961, estreou-se como ator no filme Mulheres e Milhões, tendo sido galardoado com o prémio Saci de melhor ator. Em 1962, participou em A Ilha, ao lado de grandes nomes, como Eva Vilma, Elizabeth Hartman ou Laura Verney.
    José Mauro de Vasconcelos faleceu em São Paulo, a 24 de junho de 1984, aos 64 anos, vítima de uma broncopneumonia.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Trump e Putin e o Bastardistão

Bastardistão

 1. Introdução
 
    A caricatura política tem uma longa tradição como forma de crítica social e política, servindo de espelho — por vezes distorcido, por vezes intensamente preciso — da realidade contemporânea. Num único quadro, é possível condensar ideias, emoções, ideologias e posicionamentos com uma força simbólica raramente encontrada em discursos extensos ou análises formais. Este cartune, do artista Kamensky, retrata o mundo dividido entre “Trumpistão” e “Putinistão” e constitui um exemplo notável dessa capacidade de síntese e provocação, oferecendo-nos uma leitura alegórica e crítica do panorama internacional atual, nomeadamente da forma como Rússia e Estados Unidos «negociam» o conflito que resultou da Invasão da Ucrânia por parte dos russos.

2. Os Arquétipos Autoritários: Trump e Putin como Representações de Regimes
 
2.1. Donald Trump
 
    Trump surge de pé, com uma postura hirta, uma expressão facial de resolução fria, com traços rígidos e fechados – sem empatia, sem sorriso. Os olhos parecem cerrados. Por cima do lábio superior, é visível um bigode que recorda o característico de Hitler. No que diz respeito ao vestuário, usa o seu icónico traje de campanha: um fato escuro (azul-marinho ou preto), gravata vermelha comprida (uma das suas peças de vestuário mais típicas) e camisa branca. No braço esquerdo, exibe uma braçadeira vermelha com um círculo branco, que contém ao centro a letra T (de Trump, traduzindo um exercício do poder político autocrático e de culto da personalidade), que evoca a estética autoritária ou paramilitar (semelhante às usadas em regimes totalitários por figuras como Adolf Hitler ou Mussolini). O cabelo apresenta tonalidades amarelas-claras / douradas, penteado numa espécie de topete volumoso inclinado para trás, como é característico da figura real. O rosto é redondo, apresenta bochechas volumosas e lábios comprimidos, traços enfatizados pela caricatura para transmitir a sensação de rigidez e arrogância. Por outro lado, o tom de pele alaranjado, outro traço característico das caricaturas de Donald Trump, remete para a maquilhagem que, normalmente, usa em público. Na mão direita, segura uma motosserra que pinga sangue e emite fumo negro, pormenores que simbolizam a convivência com os atos violentos de Putin por motivos taticistas e economicistas
    A representação de Donald Trump no cartune vai muito além da caricatura física. Ele surge como símbolo de um estilo político marcado pelo populismo, pela confrontação com instituições democráticas e pelo culto à personalidade. A gravata vermelha, o fato escuro e a expressão determinada são reforçados por uma motosserra ensanguentada, um objeto que dispensa explicações sobre a natureza destrutiva da liderança que representa.
    A presença de uma braçadeira com a letra “T” no braço de Trump (a inicial do seu próprio nome) é uma clara alusão aos símbolos totalitários do século XX. Embora não haja referência direta ao nazismo, o uso da braçadeira evoca associações com regimes que apostaram na identificação simbólica total com o líder. Tal iconografia insinua que o “Trumpistão” é mais do que uma extensão dos EUA — é uma entidade ideológica alternativa, autoritária e violenta.

2.2. Vladimir Putin
 
    Do lado oposto da imagem, Putin surge como guerreiro arquetípico. De tronco nu e com o símbolo “Z” — associado às tropas russas na guerra contra a Ucrânia — o presidente russo carrega um machado ensanguentado. A escolha da arma é significativa: o machado evoca brutalidade, execução sumária, punição corporal. Por outro lado, convém ter presente que a letra “Z” começou a aparecer pintada em veículos militares russos nos primeiros dias da invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022. Originalmente, servia como uma marcação tática, usada pelas forças russas para distinguir os seus veículos dos ucranianos no campo de batalha — especialmente porque ambos os lados utilizavam modelos semelhantes de armamento soviético. Porém, acabou por ser interpretada como uma alusão ao presidente ucraniano, Zelensky, e ao objetivo russo de o eliminar.
    Ele encontra-se também de pé, de frente para Trump, numa posição espelhada que sugere igualdade (ideológica? de ação? de propósito?). A sua expressão é impassível e fria, típica das caricaturas que o representam como um homem calculista, frio e insensível. Por seu turno, os olhos estão cerrados, enquanto, por cima do lábio superior, ostenta um bigode similar ao de Estaline, um antigo dirigente soviético sanguinário. No que diz respeito ao vestuário, encontra-se, de facto, de tronco nu, realçando a musculatura magra e o peito, uma imagem que procura reproduzir fotografias em que Putin se deixou fotografar desse modo, procurando transmitir uma representação sua como homem viril, guerreiro. Usa umas calças militares verde-escuras com um cinto largo, no qual está preso um machado grande, de lâmina larga, completamente coberto de sangue, simbolizando as vítimas que faz com a invasão da Ucrânia, no que constitui uma alusão ao célebre machado de guerra, cuja origem remonta às culturas indígenas da América do Norte e que, hoje em dia, é usada como metáfora para conflito, hostilidade ou confrontação aberta. O machado de guerra era uma arma real utilizada por várias tribos indígenas, como os Apaches, por exemplo, a qual possuía igualmente um valor cerimonial e simbólico. Quando duas tribos em guerra faziam a paz, era tradição enterrar o machado de guerra, um gesto que simbolizava o fim das hostilidades. Daí surgiu a expressão «enterrar o machado de guerra», que conserva o significado de pôr fim a um conflito. Prosseguindo a descrição de Putin, calça umas botas militares de cano alto, reforçando o papel de comandante em tempo de guerra. No braço esquerdo, que está caído ao longo do corpo, enverga uma braçadeira similar à de Trump, sendo a única diferença o facto de conter a letra Z, uma alusão, como já foi referido, ao líder ucraniano, Zelensky, o alvo prioritário das forças russas. O cabelo, de tons acinzentados, é muito curto, acentuando o seu aspeto militarista e austero. O rosto é anguloso, salientando-se o queixo pontiagudo, as bochechas rosadas e a pele entre o pálido e o rosado mais suave. As rugas na testa e entre os olhos sugerem tensão, experiência e um certo desgaste físico.
    Regressando aos bigodes das duas figuras – Trump possui um semelhante ao de Hitler e Putin ao de Estaline, podemos estar perante uma alusão ao acordo assinado, por altura da II Guerra Mundial, entre o então líder alemão e o soviético – o célebre Pacto Molotov-Ribbentrop (datado de 23 de agosto de 1939) –, que dividia a Europa Oriental em duas esferas de influência e que tinha como objetivo evitar uma guerra entre a Alemanha e a União Soviética.
    Em suma, a representação de Putin assenta num imaginário de força bruta e sobrevivência, características muitas vezes exaltadas na propaganda oficial russa. O “Putinistão” torna-se assim a imagem de um regime baseado na violência estatal, no expansionismo territorial e na supressão da dissidência interna.

3. A Estética da Violência: Motosserra, Machado e Sangue
 
3.1. Os Objetos como Metáforas do Poder
 
    O uso de armas primitivas e ensanguentadas — a motosserra de Trump e o machado de Putin — reforça a ideia de que o poder que exercem não é racional, civilizacional ou democrático. São instrumentos que destroem, mutilam e intimidam. O sangue que pinga dos mesmos, e que se acumula no chão, simboliza os custos humanos e éticos das suas políticas.
    No caso de Trump, a motosserra pode também ser lida como referência à devastação ambiental, especialmente face ao seu negacionismo climático e desregulação das proteções ecológicas nos EUA.

3.2. A Poética do Sangue
 
    O sangue é o símbolo mais explícito do cartune. Não há tentativa de disfarçar ou suavizar a violência — pelo contrário, ela é frontal, visível e omnipresente. O aperto de mão entre os dois líderes acontece com as mãos manchadas de sangue, uma poderosa metáfora da cumplicidade na destruição de direitos, vidas e democracias. Na prática, Trump, que prometeu acabar com a guerra rapidamente durante a campanha para a sua eleição, tem-se comportado quase como um aliado de Putin, mostrando-se disponível para sacrificar a independência da Ucrânia, desde que os seus interesses em solo ucraniano sejam atendidos. É também uma denúncia clara de que a aliança ideológica entre os dois não é apenas teórica ou retórica: ela tem consequências materiais e trágicas.

4. A Geografia da Ideologia: Trumpistão, Putinistão e Bastardistão

4.1. A Divisão do Mundo em Blocos Ideológicos
 
    Ao fundo, vemos o globo terrestre dividido. De um lado, o “Trumpistão”; do outro, o “Putinistão”. Esta bipartição não representa nações reais, mas sim zonas de influência ideológica, como se o mundo estivesse a ser repartido por duas potências autoritárias concorrentes, mas paradoxalmente aliadas. Trata-se de uma distorção do mapa-múndi que substitui fronteiras políticas por fronteiras simbólicas, representando a guerra ideológica em curso.
    Esta representação evoca, de forma distorcida, a lógica da Guerra Fria, mas sem o contraponto da democracia liberal. Aqui, não há um “mundo livre” (o bloco ocidental) — apenas dois modelos de autoritarismo que se fortalecem mutuamente.

4.2. Bastardistão: O Mundo Bastardo
 
    A inscrição “DIE WELT BASTARDISTAN” em letras vermelhas chama imediatamente a atenção. “Die Welt” significa “o mundo” em alemão; o termo inventado “Bastardistão” insinua que o mundo está a ser dominado por regimes violentos e sanguinários. Este conceito remete à ideia de que a política internacional foi sequestrada por figuras que destroem valores universais, deslegitimando qualquer noção de ordem global assente no direito, na ética ou nos direitos humanos.

5. Elementos Visuais Secundários e Simbologia Oculta
 
5.1. A Lata de Tinta
 
    Ao centro, no chão, encontra-se uma lata de tinta vermelha (sangue), em cima da qual está um pincel molhado. No solo, existem diversas manchas de tinta vermelha (novamente sangue), algumas das quais caem da motosserra de Trump e do machado de Putin. O pincel e a tinta foram usados para dividir o mapa-múndi ao meio, representando as duas metades do mundo, cada uma dominada pelas duas figuras do cartune.

5.2. A Linha Vermelha
 
    A linha vermelha que divide o mundo ao meio (O Ocidente dominado por Trump e o Oriente por Putin), divisão essa marcada a sangue, evoca a Guerra Fria, durante a qual o mundo foi dividido em dois blocos – o ocidental (capitalista e democrático), liderado pela NATO e pelos Estados Unidos, e o Bloco de Leste (comunista), dominado pela União Soviética e pelo Pacto de Varsóvia. Essa linha imaginária evocava uma fronteira ideológica e não apenas territorial, enquanto a do cartune se refere a dois modelos de autoritarismo populista.

6. Significado Político e Cultural da Caricatura
 
6.1. O Papel da Sátira Política
 
    A caricatura de Kamensky insere-se na tradição da sátira como resistência. Ao exagerar, deformar e provocar, a sátira obriga-nos a confrontar realidades que muitas vezes preferimos ignorar. Como afirmou George Orwell, "toda a arte é política", e neste caso, a arte é também um grito de alerta. Não se trata de humor leve — trata-se de um comentário feroz sobre a realidade global, que apela à ação, à consciência crítica e à resistência cultural.

sábado, 31 de maio de 2025

Trump e Putin a brincar com o fogo da guerra


    Este cartune, de forte teor crítico e simbólico, retrata os líderes Donald Trump e Vladimir Putin, respetivamente dos Estados Unidos e da Rússia, em trajes primitivos, agachados ao redor de uma fogueira onde arde uma espécie de rolo de madeira das cores da Ucrânia com a palavra “Ukraine”, numa cena que evoca o homem pré-histórico, fazendo uso do fogo no interior de uma caverna (sugerida pelo fundo da imagem escuro) para cozer alimentos. A cena é carregada de ironia e simbolismo político, aludindo diretamente ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia, mas também à postura ambígua dos Estados Unidos em relação ao mesmo.

    Donald Trump aparece a segurar um pau com um pombo branco (símbolo da paz) preso na ponta, que está a assar diretamente sobre o fogo. O pombo transporta no bico um ramo de oliveira verde (símbolo da esperança e da vida), reforçando a imagem da paz ameaçada. Ao mesmo tempo, Trump dirige-se a Putin com a frase: “Vlad, don’t play with fire!” (“Vlad, não brinques com o fogo!”). Esta fala metafórica comporta uma pesada carga de ironia, pois ele próprio está a contribuir ativamente para o agravamento do conflito, demonstrando uma hipocrisia implícita — alerta o outro para o perigo enquanto pratica uma ação igualmente incendiária.

    Putin, por sua vez, é representado com uma expressão feroz e uma postura agressiva, lançando mísseis em direção ao lume. A sua atitude deixa claro o papel ativo da Rússia no conflito (o iniciador e instigador), reforçando a ideia de que está a alimentar intencionalmente as chamas da guerra.

    A imagem do fogo, símbolo universal de destruição, violência e descontrolo, representa aqui a guerra na Ucrânia. Recordemos que o seu domínio foi uma das maiores conquistas da humanidade, símbolo de poder e sobrevivência. Neste cartune, o fogo é usado para “cozinhar” a paz, representada pelo pombo, o que sugere que esses líderes ainda lidam com os conflitos de forma bárbara, destrutiva e impulsiva, como se estivessem presos a uma mentalidade arcaica. Por sua vez, o toro com a inscrição “UKRAINE” funciona como base da fogueira, indicando que é este território o foco da destruição e da disputa de poder entre as grandes potências.

    Ambos os líderes estão infantilizados e caricaturados, com corpos desproporcionais e em trajes ridículos, o que pode ser interpretado como uma crítica à sua falta de maturidade e responsabilidade, bem como à ausência de racionalidade que os caracteriza. Esta escolha estética sugere que, apesar do poder que detêm, comportam-se como crianças inconscientes das consequências das suas ações.

    Em suma, o cartune utiliza o humor negro e a caricatura para expor a incoerência e a irresponsabilidade dos líderes mundiais perante um conflito de grande escala. Ao apresentar Trump como alguém que parece apelar à paz enquanto participa na sua destruição e Putin como o instigador ativo da violência, a imagem comporta uma crítica contundente: a paz está a ser sacrificada por egos políticos, jogos de poder e atitudes que, embora envoltas em discursos oficiais, são profundamente destrutivas. É uma representação visual poderosa da complexidade e da tragédia geopolítica contemporânea.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Benfica é campeão de voleibol feminino

Voleibol feminino Benfica

    Cinquenta anos depois, o Benfica volta a ser campeão nacional de voleibol feminino, conquistando o seu 10.º título. A última vez que tinha acontecido fora na longínqua época de 1974-1975, a qual coincidiu com o nono título obtido pelas chamadas Marias.

    «As Marias do Benfica» é a designação com que ficou conhecida a equipa do Benfica dos anos 60 e 70 do século XX, a qual conquistou nove títulos nacionais consecutivos entre 1966/67 e 1974 e 1975. O nome não surgiu por acaso. De facto, todas as jogadoras dessa equipa de ouro se chamavam Maria.

    Cinquenta anos depois, o campeonato regressa a casa.

Campeãs nacionais

sexta-feira, 2 de maio de 2025

"Amor, co'a esperança já perdida", análise do poema de Camões

Este soneto, com rima interpolada e emparelhada nas quadras e interpolada nos tercetos, segundo o esquema rimático ABBA / ABBA / CDE / CDE, e versos decassilábicos sáficos (vv. 8 e 10) e heroicos (os restantes), aborda o tópico navigium amoris, herdado dos poetas gregos e latinos, ou seja, o amor – personificado enquanto divindade – é como um mar tempestuoso, o mar das paixões amorosas, em que se debate o barco que simboliza o amante.

    O «eu» poético dirige uma apóstrofe ao Amor personificado, comunicando-lhe ter visitado o seu templo depois de ter perdido a esperança por ter ficado sem o seu amor. Segundo Faria e Sousa, Camões cantou as esperanças de duas formas: “la primera por las finezas de sus amores que dulcemente cantava; la segunda la de sus cantos celebrando la Patria y los Heroes della”. Neste soneto, o poeta recorre à renuntiatio amoris como motivo principal, construída sobre a metáfora do naufrágio amoroso. A primeira quadra versa precisamente sobre a representação do motivo do ex-voto,isto é, o sofrimento amoroso é comparado a uma tempestade da qual o marinheiro foi salvo e, por isso, leva as suas oferendas ao templo como agradecimento à divindade que o salvou. A fonte de inspiração de Camões foi a ode 5 do livro I de Horácio. Por outro lado, além deste soneto, ele aborda o mesmo tópico noutros poemas, como, por exemplo, “Como quando do mar tempestuoso”. Camões, neste soneto, apresenta a oferta do ex-voto não no formato de roupas, mas sim a própria vida. Por outro lado, se Horácio e Garcilaso, nos seus poemas, agradecem por ainda estarem vivos e livres desse amor, o poeta português doa a sua “alma, vida e esperança”, lamentando o facto de ainda estar vivo, e queixando-se da privação desse amor.

    Apesar do texto fixado por Costa Pimpão apresentar o termo «soberano» no segundo verso, as fontes manuscritas trazem «sagrado», divergência que é entendida por alguns estudiosos como uma correção imposta pela censura, desde logo porque não é o único caso em que aquela modificou o texto de um poema camoniano. De facto, a censura foi uma prática tradicional da Igreja, que, na luta contra a heresia, proibia a publicação de termos pouco ortodoxos, como, por exemplo, tratar como «sagrado» o templo do Amor. Sendo exclusivamente reservado ao uso religioso, esta palavra pertence à lista de vocábulos que foram objeto de censura.

    O «eu» poético – aquele que ama – deposita a alma, a vida e a esperança mo templo do Amor, em vez das oferendas comumente dadas aos deuses pelos náufragos como forma de agradecimento. Regra geral, os náufragos seguiam até ao templo dos deuses para agradecer o facto de ainda estarem vivos, porém Camões atua de forma inversa, isto é, coloca o sujeito poético a deslocar-se ao templo para protestar o facto de ainda estar vivo e questiona o desejo de vingança do próprio Amor, que é percebido como entidade hostil, chegando mesmo a afirmar que a maior vingança seria deixá-lo vivo a chorar do que tirar-lhe a vida: “nelas podes tomar de mim vingança; / e se inda não estás de mim vingado, / contenta-te com as lágrimas que choro.” (vv. 12-14).

    O sujeito lírico põe a sua vida em vez das oferendas habitualmente feitas, porque já se considerava morto para as pretensões do mundo, em particular as amorosas, ou porque desejava morrer. O nome «vestidos» (v. 4) alude ao facto de o náufrago, depois de escapar ao perigo, pendurar as vestes e outros despojos do naufrágio, como ex-voto, na parede do tempo do deus invocado durante a tempestade em alto mar. Os «vestidos» eram os principais testemunhos de um naufrágio, que eram colocados no templo. Esta passagem do soneto forma uma imagética associada ao tópico do naufrágio amoroso.

    A imagem do templo do Amor, presente na primeira quadra, pode assumir três formas diferentes. A mais simples é o templo como igreja, que encontramos, por exemplo, em Malatesta Malatesi. Noutra, templo é usado como metáfora do corpo, nomeadamente da pessoa amada, como sucede com Pietro Bembo ou Bernardo Capello, que assinala as semelhanças entre o templo do Amor e o rosto da mulher amada: as portas são os lábios; o teto é o cabelo louro, que cobre paredes de mármore brancas e vermelhas, isto é, a face; o grande tesouro são as próprias tranças de ouro. Por vezes, o templo refere-se ao coração do amante, dado que guarda o culto e a memória da imagem amada.

    Nos dois versos iniciais da segunda quadra, o «eu» poético questiona Amor, perguntando-lhe que mais poderá querer dele, depois de ter destruído toda a glória que alcançara, isto é, o privilégio de ter vivido um amor sublime. O facto de poder desfrutar, ou não, deste amor está no poder da divindade. No momento em que decide retirá-lo, é considerado pelo que ama como um tirano. Os dois versos seguintes, por meio da metáfora e do oximoro, apresentam a recusa do sujeito lírico em “tornar a entrar onde não há saída”, ou seja, num caminho sem saída.

    O verso 9 apresenta uma enumeração de três nomes: «alma», «vida» e «esperança», dois dos quais se encontram no primeiro («esperança») e no quarto («vida») da primeira quadra. Esses três nomes designam os «despojos», os restos ou fragmentos do passado. Na prática, os versos 9 e 10 patenteiam o jogo dialético, bem característico de Camões, entre o bem passado (“de meu bem passado”) e o mal presente. Esse bem durou “enquanto quis aquela que eu adoro.” (v. 11), ou seja, enquanto lhe correspondeu amorosamente?

    O segundo terceto constitui o clímax do soneto. O sujeito poético, depois de ter oferecido a sua alma, vida e esperança, acaba oferecendo as suas próprias lágrimas – o seu sofrimento, a sua mágoa, a sua dor –, que são para ele mais dolorosas do que a própria morte. Atente-se no recurso ao poliptoto (figura de estilo que faz a alteração flexional de uma parte do corpo da palavra) de “mim vingança” / “de mim vingado”. Note-se que o Amor é representado, nesta composição poética, como uma entidade mítica caracterizada como omnipresente e possuidora de uma natureza vingativa (“destruída / me tens a glória toda que alcancei.” – vv. 5-6; “podes tomar de mim vingança” – v. 12; “não estás de mim vingado” – v. 13). Por outro lado, o texto desenvolve-se num crescendo: nas duas quadras, os verbos encontram-se maioritariamente no passado (pretérito perfeito: «visitei», «passei», «pus»), enquanto os tercetos começam e terminam com os verbos no presente («Vês» e «choro»), o que significa que o futuro está excluído, pois o sujeito poético não consegue libertar-se dessa prisão do Amor, prefere a morte e, portanto, não é capaz de se projetar num futuro.

    Ainda relativamente ao segundo terceto, nomeadamente o verso 12, focado no tema da vingança não é caso único na obra camoniana, onde aquele que ama, tendo perdido a esperança, afirma preferir morrer a viver no seu tormento de amor. É o que sucede, por exemplo, no soneto “Se algu’hora em vós a piedade”, no qual Camões declara o seguinte: “tomarão tristes lágrimas vingança / nos olhos de quem fostes mantimento. // E assim darei vida a meu tormento; / que, enfim, cá me achará minha lembrança / sepultado no vosso esquecimento.” Note-se que Camões, além de usar nomes como «vingança», culmina o soneto com o termo «sepultado», indiciando novamente que a morte é a única fonte de liberdade.

 
Bibliografia:
. VITALI, Marimilda, “As cadeias da esperança”

terça-feira, 29 de abril de 2025

"O vencedor vencido": análise do poema, de Isabel Gouveia

 
Não é fácil amar o que venceu,
o que leva alguns passos de avançada,
que o amor só se oferece ao que perdeu,
muito embora com culpa declarada.
Todavia, o que vence multiplica
sobre si as angústias de perder:
interroga, analisa e só complica
aquilo que não pode perceber;
e quando, em esgotamento prematuro,
ele aceita uma calma provisória,
vêm os homens que o lançam contra o muro
e lhe atiram ao rosto essa vitória.
 
    O sujeito poético inicia o poema com uma constatação amarga: o vencedor não é facilmente amado (“Não é fácil amar o que venceu”). De certa forma, esta ideia de que o amor não se dirige ao vencedor contraria o senso comum. Pelo contrário, o amor é destinado ao derrotado (“ao que perdeu”), à figura fragilizada, mesmo que seja culpado de algo (da própria derrota?). Ou seja, ao invés do que é comum, afirma-se a preferência por amar o que falha e é derrotado, em vez daquele que triunfa. Deste modo, o vencedor, em lugar de ser celebrado, é marginalizado no que toca ao amor, pelo que a vitória, o triunfo, em vez de atrair o sentimento amoroso, repele-o.

    O quinto verso introduz uma ideia contrária, traduzida pelo recurso à conjunção coordenativa adversativa «todavia»: aquele que vence, mesmo tendo triunfado, não encontra paz, pelo contrário, “multiplica / sobre si as angústias de perder. Ele carrega uma angústia: sente o peso da derrota, não por ter perdido, mas por recear perder o que ganhou. A sequência de formas verbais presentes no verso 7 – “interroga, analisa e só complica” – denuncia o seu estado de inquietação natural. Assim sendo, pode concluir-se que a vitória não traz segurança e tranquilidade, mas fragilidade, dúvida, e ele carrega um conflito interno, dado que procura encontrar um sentido, mas não o consegue: “aquilo que não perceber”.
    Toda esta situação conduz o vencedor a um “esgotamento prematuro”, proveniente da dúvida, da incerteza e da solidão que acompanha o triunfo, cuja consequência é a aceitação não de uma paz real, mas meramente provisória. No entanto, esse momento não dura, não é respeitado, em virtude “os homens” agirem violentamente contra ele, lançando-o contra o muro “e lhe atiram ao rosto essa vitória”, isto é, aquilo que foi uma conquista sua é usada como arma contra ele. A vitória é-lhe atirada ao rosto como uma acusação, não como glória. Aquilo que permitiria que se destacasse acaba por se tornar motivo de punição. Os homens, que representarão a sociedade, não toleram ou não perdoam o êxito.

    O poema desconstrói a ideia da vitória como glória e clarifica os seus efeitos colaterais ou consequências: solidão, incerteza, dúvida, desgaste, angústia e até rejeição social. Deste modo, o vencedor constitui uma figura que, ao invés de herói, se revela mártir da própria vitória. O título do texto ilustra esta noção: a vitória externa esconde uma derrota interior (e social).
    
    O triunfador alcançou o triunfo, porém, em simultâneo, passou a carregar o fardo das expectativas: dos outros, de si mesmo, dos “homens”. A vitória, assim, não é um momento de glória e de libertação, mas de angústia e aprisionamento. Ao longo do poema, ele revela angústia existencial (“multiplica sobre si as angústias de perder”), autoquestionamento constante (“interroga, analisa e só complica”) e culpa por ter superado os outros. Tudo isto leva-o a viver num estado de vigilância e de desgaste mental e, quando procura a paz, mesmo que provisória, é castigado.

    Do ponto de vista simbólico, o vencedor é visto como alguém que faz uma afronta ao coletivo – os “homens” –, uma figura mítica que quebra a harmonia do grupo por se destacar, o que o transforma num alvo. Deste modo, podemos concluir que a sociedade não tolera o que escapa à norma, a uma certa mediania, nem mesmo o sucesso individual.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

"Paz": análise do poema de Tomaz Kim

 
PAZ
 

Aqui foi a casa:

Alva a toalha e o pão,

O berço além.

 

Breve a canção:

Bater de asa

O sorriso de mãe.

 

Veloz a hora:

Agora,

Só o coaxar noturno e certo

Das rãs,

Enche o campo deserto.

 
    Tomaz Kim foi um poeta, tradutor e ensaísta literário angolano, de nome completo Joaquim Fernandes Tomaz Monteiro-Grillo. Nasceu no Lobito, Angola, em 2 de fevereiro de 1915, e faleceu em Lisboa, a 24 de janeiro de 1967.

    Neste poema, constituído por dois tercetos e uma quintilha, de versos livres, curtos e sem pontuação, aborda a temática da passagem do tempo e da efemeridade da vida. O verso inicial remete para o passado, como se pode comprovar pela presença da forma verbal «foi», no pretérito perfeito do indicativo, situado num espaço, indiciado pelo advérbio de lugar «aqui» e pelo grupo nominal «a casa». Ou seja, o «eu» poético exprime a lembrança de um lar que existiu, mas já não existe, ou, pelo menos, já não existe como antes. Agora, resta apenas uma lembrança. A toalha, o pão e o berço remetem para o universo doméstico: é uma imagem de simplicidade, segurança e acolhimento – trata-se de elementos do quotidiano que representam a vida familiar, acentuado pela referência ao “berço além”, sinónimo da existência de crianças, de filhos, naquela casa, o que constitui uma referência à infância, um tempo de inocência e ternura.

    A segunda estrofe é constituída por imagens que sugerem o domínio do passageiro, como o exemplifica a alusão à canção breve, símbolo da transitoriedade. Essa ideia é reforçada pela imagem do “Bater de asa”, que indicia o efémero, o fugaz, como o tempo e a infância que passam. Também o sorriso da mãe constitui uma imagem forte que transmite s noções de calor humano, carinho, afeto, proteção, bem como um sentimento quase sagrado, ligado ao cuidado e à memória afetiva. Esse sorriso e tudo o que ele simbolizava foi um bater de asa, não foi duradouro; pelo contrário, foi passageiro – pelo menos, é essa a sensação do sujeito lírico – e já não existe mais, pois pertence a um passado que já passou e não voltará. Tudo passou muito rápido, como o bater de asas de uma ave.

    A terceira e última estrofe abre com um verso que retoma o tema central do texto: a passagem do tempo e a brevidade da vida – “Veloz a hora”. O passado a que se referiu anteriormente passou depressa. De seguida, através do advérbio de tempo «agora», salta para o presente, que é um tempo que contrasta com o passado. De facto, atualmente, não há mais risos, alegria, carinho, proteção, nem vida doméstica e familiar, que foram substituídos pelo “coaxar noturno e certo das rãs”. A noite é uma parte do dia propícia à solidão e à reflexão. Essa solidão, agora, é preenchida apenas pelo som do coaxar das rãs. O ambiente, que outrora era pautado pela presença humana, hoje é ocupado unicamente pelo elemento animal. Por outro lado, a alusão ao coaxar dos batráquios remete para um som constante, repetitivo, monótono, que preenche o silêncio, mas não traz alegria ou felicidade ao sujeito poético. Em suma, do passado restam apenas as lembranças, pois agora tudo é solidão, tristeza, monotonia e melancolia.

    O poema fecha com a imagem do “campo deserto”, o que remete para uma imagem de solidão. Agora, o tempo passou e só resta o som das rãs, num lugar vazio, apenas preenchido pelas lembranças. Deste modo, o “campo deserto” constituirá uma metáfora da ausência, do presente esvaziado da presença humana e do afeto, carinho e amor que antes caracterizava aquele espaço, o que contrasta intensamente com a imagem da casa evocada nos versos anteriores. Note-se que um campo pode ser associado a um lugar fértil, aberto à vida, à natureza, porém, quando é adjetivado como «deserto», passa a significar abandono, silêncio e solidão. O campo, que antes era habitado, sinónimo de família, amor e intimidade, preenchido por sons humanos, agora é dominado pelo silêncio humano. O tempo passou, a vida desapareceu daquela casa, e, presentemente, sobra unicamente o eco da memória. O adjetivo «noturno», além do já referido, remete para a noite, para o fim do dia, o que, simbolicamente, simboliza o fim de um ciclo, a morte e o esquecimento. O adjetivo «certo» significa que o som das rãs é constante, inaceitável, repetido – ele substitui os sons humanos do passado, como a voz da música, o som da canção, o riso.

    Nesse contexto, as imagens da “toalha alva”, do “pão”, do “berço” e do “sorriso de mãe” contrastam com o “coaxar noturno e certo / Das rãs” e o “campo deserto”, desde logo porque as imagens dos dois tercetos carregam valores simbólicos de acolhimento, alegria, calor humano, afeto, memória afetiva e pureza. A “toalha alva” simboliza as ideias de limpeza, ordem, cuidado, enquanto o “pão” remete para a nutrição, a vida e a comunhão familiares. O “berço” associa-se claramente ao tempo da infância, da origem da vida e do amor protetor. Por seu turno, o “sorriso de mãe” representa ternura, proteção, ideias sugeridas pela figura materna. Tudo isto trabalha para construir uma imagem de aconchego, proteção e vida familiar e íntima, onde há afeto e relações humanas. Pelo contrário, o “coaxar noturno e certo das rãs” e o “campo deserto” associam-se a outro universo simbólico. De facto, esses elementos representam a natureza impessoal, que continua o seu percurso após a partida dos seres humanos, levados pela morte. O som das rãs é repetitivo, monótono, quase mecânico, opondo-se ao da canção, alegre, e à espontaneidade do sorriso materno. Por sua vez, o campo deserto é um espaço aberto, sem limites e sem proteção, silencioso e solitário, contrastando com o lar fechado, íntimo, familiar e seguro que constituía a casa da infância. Este contraste traduz a passagem do tempo – desde logo sugerida pela estrutura fragmentada do poema (os versos curtos e a ausência de pontuação) – que tem como consequência a perda de uma presença afetiva e a transformação do espaço vivido em espaço de memória.

    O título do poema, tendo em conta que o texto evoca tanto a memória de um passado alegre e afetuoso quanto o vazio e a desolação do presente, pode parecer curioso. Por um lado, pode representar a paz que surge como a solidão e o silêncio após as mudanças ocorridas por efeito da passagem do tempo, ou seja, o presente é desolador, mas, ao mesmo tempo, é silencioso, calmo. Tratar-se-á da paz de um espaço desabitado, hoje de contemplação após a passagem do tempo, ou a paz num sentido fúnebre ou espiritual, quer dizer, a que surge com a morte, com o fim de um tempo, de um ciclo. Por outro lado, o título pode ser entendido com a memória de um passado bom. Neste sentido, a casa do passado simboliza uma forma de paz vivida: havia comida, amor, segurança e proteção. Esta paz vem associada à simplicidade da vida familiar e quotidiana, ao pequeno e singelo gesto que perdura na memória. Em suma, o título constitui uma espécie de síntese do poema: um trajeto do afeto ao silêncio, da vida à lembrança, da presença à ausência.

Análise do poema "De Amor", de Francisco José Viegas

 
DE AMOR

 

despede-te de mim, bate devagar à porta:

tenho vontade de recomeçar, reerguer escombros,

ruínas, tarefas de pão e linho, não dar

nome às coisas senão o de um vago esquecimento

 

abandono. despede-te de mim como se a vida

recomeçasse agora, não me procures onde

a memória arde e o destino se ausenta.

 

tudo são banalidades, afinal, quando assim

se recomeça e a vida falha como um material

solar e ilhéu. levamos poucas coisas, basta

um pouco de ar, os objetos fixos, em repouso,

 

os muros brancos de uma casa, o espaço

de uma mão. arrumo as malas e os sinais,

aquilo que nos adormece em plena tempestade.

 
    O poema abre com um tom de despedida íntima (atente-se no uso da segunda pessoa do singular quer de formas verbais, quer do pronome pessoal). Por outro lado, o recurso ao advérbio de modo «devagar», a caracterizar a forma como o «tu» bate à porta sugere delicadeza, quase como se a separação fosse feita com cautela e cuidado. A suavidade contrasta com a dor implícita no adeus.

    Os versos seguintes sugerem a ideia de recomeço e de reconstrução de algo que foi destruído, num desejo de recomeço a partir de escombros e ruínas. O nome «escombros» remete para um passado destruído – talvez uma relação amorosa, como indicia o título – que agora necessita de uma reconstrução.
    As “tarefas de pão e linho” parecem apontar para o quotidiano, gestos da vida doméstica, simples. Estamos perante atos que remetem para a nutrição e o vestuário, os quais fazem parte da vida, sendo que, no primeiro caso, sustenta até a existência.
    A primeira estrofe termina com a intenção de não nomear as coisas, antes as esquecer. Parece haver um desejo de apagar, de esquecer, de deixar para trás o peso / as coisas do passado, porém não se trata de um esquecimento violento, traumatizante, mas suave, como o dá a entender o adjetivo «vago», a qualificar o esquecimento.

    A segunda estrofe retoma a ideia do abandono e da partida, introduzindo a noção da despedida entre o sujeito poético e o «tu», através de uma comparação que a associa a um recomeço: “despede-te de mim como se a vida / recomeçasse agora”. Segue-se novamente a recusa do passado, traduzida pelo pedido do «eu» ao interlocutor no sentido de não o procurar onde a memória ainda vive, onde arde (metáfora hiperbólica). A memória arde, queima, causa, portanto, dor. Por sua vez, o destino ausenta-se, ou seja, não se faz sentir, perdeu a direção.

    A terceira estrofe – novamente uma quadra, à semelhança da primeira – retoma a dor, o sofrimento e os acontecimentos das anteriores: “tudo são banalidades”. Diante do recomeço, tudo se torna banal. Por outro lado, a vida é falha, frágil, visto que “falha como um material / solar e ilhéu”. A comparação quase torna a vida algo físico, tangível, e os adjetivos «solar» e «ilhéu» traduzem as ideias de luz e isolamento, solidão, sugerindo que a vida, embora sendo bela, comporta esses sentimentos. Afinal, quando uma relação termina, se desfaz, e os intervenientes se afastam, entram num mundo de solidão, de isolamento, mesmo que temporário. Perante este cenário, o importante é levar poucas coisas desse passado, dessa relação que terminou: “levamos poucas coisas”. São suficientes “um pouco de ar, os objetos fixos, em repouso”, metáforas que indiciam que, no processo de recomeço, o essencial é o respirar, encontrar a estabilidade e o equilíbrio.

    A última estrofe – um terceto, tal como a segunda – abre com uma série de metáforas que prosseguem a enumeração daquilo que o sujeito poético leva do passado: a do muro branco evoca paz, pureza, ao passo que os muros e a casa traduzem uma imagem de produção e refúgio; a da mão pode simbolizar o afeto; o ato de arrumar as malas associa-se à partida, mas também à preparação para algo novo, enquanto os sinais remetem para memórias, vestígios de algo que existiu, todavia entretanto terminou, no fundo, “aquilo que nos adormece em plena tempestade”, isto é, que nos acalma durante momentos conturbados. Pode tratar-se do amor na sua forma mais serena ou da aceitação da perda.

    Em síntese, estamos na presença de um poema que reflete sobre o fim de uma relação amorosa e a resiliência necessária para enfrentar, bem como o processo de recomeço.

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