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domingo, 12 de janeiro de 2025

Análise da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo

 I. Biografia de Aluísio de Azevedo


II. Obras de Aluísio de Azevedo


III. Período literário


IV. Ação

        . Resumo

        . Capítulos

            . Capítulo I

            . Capítulo II

            . Capítulo III

            . Capítulo IV

            . Capítulo V

            . Capítulo VI

            . Capítulo VII

            . Capítulo VIII

            . Capítulo IX

            . Capítulo X

            . Capítulo XI

            . Capítulo XII

            . Capítulo XIII

            . Capítulo XIV

            . Capítulo XV

            . Capítulo XVI

            . Capítulo XVII

            . Capítulo XVIII

            . Capítulo XIX

            . Capítulo XX

            . Capítulo XXI

            . Capítulo XXII

            . Capítulo XXIII


V. Personagens

    V.1. Caracterização

        1. João Romão

        2. Bertoleza

        3. Miranda

        4. Rita Baiana

        5. Estela

        6. Léonie

        7. Pombinha

    V.2. O percurso existencial das personagens femininas



VI. Conclusões

        a) Forma

        b) Conteúdo


O percurso existencial das personagens femininas do O cortiço

    No universo sócio-histórico do Brasil no final do século XIX, o que existia era uma sociedade em grande transformação, na qual a formação da identidade nacional ainda estava sendo alicerçada. Tratava-se de uma sociedade carregada de preconceitos. A literatura de então vem absorver e interpretar esse momento histórico, em obras como O cortiço, de Aluisio Azevedo. Como nos explica Antonio Cândido, “Talvez não haja equilíbrio social sem literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente (...). Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, políticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e a atuação deles.” (Apud CRUZ, 2008 p. 52 – 53).
    Como vimos no capítulo anterior Rita Baiana, Pombinha, Léonie, Estela e Bertoleza são mulheres que vivem nesse quadro sócio-histórico brasileiro, na criação ficcional de Aluísio Azevedo. Resta-nos, agora, ver como cada uma delas vivencia de modo particular essa realidade sócio-histórica.
    Explorando a identidade da “raça” brasileira, Aluísio Azevedo criou a personagem Rita Baiana com grande lirismo sensual, dentro da técnica naturalista de ressaltar os atributos físicos das personagens. Por isso, como representante da mulher brasileira, ela é mestiça, dengosa, maliciosa, generosa, usa da sua dança criativa, alegre e sensual para seduzir e aprisionar os seus amores. O seu percurso amoroso, no enredo do O cortiço, surpreende pelo traçado de grandes conquistas perigosas e traiçoeiras.
    Rita Baiana provoca aquele patriarcado social vigente no Brasil do século XIX, e faz isso por meio de seu comportamento fora dos padrões convencionais estabelecidos para o comportamento feminino. Rita baiana rompe com muitas regras sociais de tutela masculina sobre as mulheres. Ela não se casa oficialmente, não opta nunca pelo matrimônio, mas conquista e aprisiona os seus amores. É solteira por escolha e opção, e sabe como viver suas paixões avassaladoras. Assume explicitamente o papel de mulher livre, que se sustenta sozinha, e nunca fica à mercê de homem algum. Ela não mistura suas paixões com suas contas a pagar, pois se auto-sustenta com a lavagem de roupas, mora sozinha e paga o seu próprio aluguel. Não faz economia, tampouco algo como uma poupança financeira, pois trabalha, tão somente, na medida exata do seu consumo, nada mais além. No mais, vive apenas para desfrutar de suas paixões desenfreadas. Não por acaso, ficou satisfeita com o assassinato do seu amante mestiço, Firmo, planejado e concretizado pelo seu novo amor branco, o português Jerônimo, com quem passou a viver uma paixão tórrida e egocêntrica.
    Não menos avassaladora foi a paixão vivida entre a prostituta Léonie e sua doce afilhada Pombinha. Da somatória de menina doce, ingenuidade e atitudes prestativas à gente pobre e analfabeta do cortiço, com a adolescente letrada, Aluísio Azevedo criou Pombinha como uma personagem emancipada face ao sistema patriarcal e patronal da sociedade brasileira da época. Pombinha, depois de casada, optou por desfazer o seu casamento com seu marido Costa. Essa ruptura deu-se quando ela descobriu a superioridade da mulher frente à submissão egoísta de gestos pequenos do sexo masculino, e isso dentro de um casamento padronizado. Podemos dizer que Pombinha descobriu depois de casada aquilo que Rita Baiana sempre soube: o casamento costuma ser uma opressão para a mulher. Contudo, enquanto Rita Baiana sempre teve uma vida livre, a liberdade de Pombinha, obtida após a ruptura com um casamento marcado por uma vida medíocre, foi a prostituição. Rita Baiana nunca foi prostituta.
    Podemos também pensar que Pombinha se “diplomou” com Léonie, sua “madrinha protetora”, ou seja, ela se especializou como sócia majoritária de Léonie no empreendimento altamente profissional da prostituição. Nas horas vagas, ambas dividem a mesma cama entre si. Como vimos, Pombinha rompe com o domínio masculino, mas isso no que tange ao casamento convencional e padronizado, pois a sua escolha pela prostituição é uma forma de ascensão social que também dependem do mundo masculino. Ela explora, principalmente, os capitalistas e os barões do café, que pagam altas somas em dinheiro para ter as duas prostitutas, Pombinha e Léonie, as mais competentes do Rio de Janeiro.
    Diferente não só de Rita Baiana, mas também de Pombinha e Léonie, encontramos Estela. Ela ainda é aprisionada dentro de um casamento arranjando, uma união interesseira que vive de aparências. Estela não é feliz com Miranda, seu marido parasita, mas não abre mão de sair desse casamento. Ela precisa da figura masculina ao seu “lado”, especialmente do ponto de vista da valorização social, para se auto-afirmar. Ou seja: diferentemente de Rita Baiana e Pombinha, Estela é uma mulher que opta pelo casamento, e que vê nele a única forma de uma vida confortável do ponto de vista material e respeitável do ponto de vista social. Ela não consegue romper abertamente com os padrões sociais do sistema patriarcal, tal como Rita Baiana e Léonie. Porém, Estela também surpreende, pois impõe ao marido o pior castigo que um homem pode viver dentro de uma sociedade patriarcal: ele é traído constantemente pela fogosa e matreira esposa. Estela vive os seus amores bem “escondidos”, tão “escondidos” que não escapa de ser descoberta por um observador mais atento e, principalmente, pelo próprio marido. O que equivale a dizer que Estela consegue, a seu modo, desrespeitar o padrão convencional estabelecido para a mulher dentro do matrimônio. Vimos que Zulmira, a filha de Miranda e Estela, é fruto dessa inconstância amorosa. Estela não gosta da filha por supô-la filha do marido. Miranda não gosta da filha por não ter certeza que é seu pai.
    Miranda casou-se com Estela, por causa do seu dote, e não tem independência financeira para viver bem sem esse dote, por isso Estela tem o marido em suas mãos. Ela é a senhora e dona do seu relacionamento matrimonial com Miranda.
    Bertoleza, como Estela, também está aprisionada dentro de um falso casamento, porém em situação bem pior que Estela. O casamento de Bertoleza é uma amigação de vários anos com João Romão. Se Estela é dona e senhora do seu casamento, Bertoleza é uma verdadeira caixa registradora de armazenar dinheiro para João Romão, com o fruto do seu árduo trabalho.
    Por outro lado, tanto Bertoleza quanto Rita Baiana se deixam empolgar pelo homem branco europeu. Ambas avaliam que o homem branco é um ser superior ao negro, ao mestiço. Mas, ironicamente, é essa suposta “superioridade branca” que leva Bertoleza à ruína financeira, afetiva, moral e social, que a transforma em um burro de carga para o seu querido “Seu João”. Enquanto ele ascende social e financeiramente com o dinheiro do trabalho de Bertoleza, ela decai até a morte, provocada por João Romão, quando, num ato de extremo desespero e dor, por ter sido entregue a seu antigo dono, pelo seu homem branco, Bertoleza comete o suicídio.
    Entretanto, Bertoleza sempre foi fiel em tudo ao seu homem. Ela nunca o traiu, diferentemente de Estela. Tinha grande orgulho dele e sentia prazer em estar ao seu lado. Mas ele João Romão era casado não com ela, e sim com o dinheiro que vinha do trabalho dela. O envolvimento dele com ela representa bem a combinação determinista do homem branco que se aproxima da mulher negra com objetivo exploratório. Bertoleza, dentro da representação literária naturalista, torna-se uma figura grotesca e animalesca; é ferida em sua feminilidade em função de um embrutecimento que a torna um ser inferior. Na sua dignidade ela também é aviltada em função da mentalidade escravocrata. Ela adoece na alma, mas não consegue viver sem aquela figura masculina, representada pelo branco europeu. Segundo Alfredo Bosi, (2003) “o naturalista julga interessante o patológico, porque prova a dependência do homem em relação à fatalidade das leis naturais”. (p. 172).
    Como vimos, Rita Baiana também trocou Firmo, seu amor mestiço, por Jerônimo, um branco europeu. Mas, diferentemente de Bertoleza, Rita Baiana não só conquista Jerônimo, como o deixa de “queixo caído” por ela, graças a sua sensualidade venenosa de “mulher serpente”. Ou seja: Rita Baiana nunca é inferior a Jerônimo, da forma como Bertoleza é sempre inferior a João Romão. Isso estabelece uma grande diferença entre essas duas mulheres negras, bem como entre o tipo de relação que elas mantêm com os homens brancos, considerados racialmente superiores. Rita Baiana, por meio da sedução, é a dona do seu relacionamento amoroso com Jerônimo, tanto que ele cometeu loucuras por ela: matou Firmo, o amante mestiço indesejável de Rita, e largou sua mulher e filha a própria sorte. Enquanto Bertoleza é seduzida por João Romão por que ele vê nela apenas uma força de trabalho. Ela não tem nenhuma influência amorosa sobre ele. Por fim, é claramente visível que, ao final, Rita Baiana é quem destrói Jerônimo moralmente, mas Bertoleza é totalmente destruída por João Romão, que a leva ao suicídio.
    Mas a personagem Bertoleza também é figura com traços de caráter surpreendentes. Aliás, talvez mais até do que todas as outras quatro personagens objeto do nosso estudo: Rita Baiana, Pombinha, Léonie e Estela. Bertoleza surpreende pela sua condição humilde e de escrava humilhada. Apesar de ser analfabeta, ela mesmo assim consegue fazer contas e dirigir com eficiência sua quitanda, de forma a saldar todas as suas contas em dia, e ainda pagar mensalmente uma quantia em dinheiro ao seu dono. Ela consegue poupar para comprar sua carta de alforria, e isso tudo dentro da legalidade da lei. Trabalhava honestamente na sua quitanda, que era bem administrada, pois tinha uma grande freguesia. Bertoleza não sabia, mas era detentora de um alto e refinado talento: ela possuía espírito empreendedor. Portanto, apesar da figura grotesca e animalesca com que aparece no romance, o narrador também aponta em Bertoleza virtudes intelectuais e morais, que existem em seu caráter, ainda que em caráter embrionário. O problema é que tais virtudes, atuantes em Bertoleza quando ela ainda era solteira, quando não vivia sob a tutela do casamento com João Romão, foram totalmente anuladas pelo convívio com o marido. João Romão, e o casamento, foram a desgraça de Bertoleza. A pressão determinista, motivada por preconceito racial e pela mentalidade escravocrata do Brasil de então, encaminhou Bertoleza para João Romão, um homem inferior a ela, mas que era branco. Bertoleza não precisava de João Romão em sua vida. Ele, na verdade, desvirtuou Bertoleza, a qual, de honesta que era, passou até a roubar material de construção da vizinhança, para as obras do cortiço do marido.
    Rita Baiana também sofre a pressão determinista racial, tanto que ela desprezou Firmo, o amante mestiço, por preferir Jerônimo, o europeu branco. Estela, por exigência da sociedade burguesa, permanece junto de Miranda, seu odiado marido.
    Por outro lado, como vimos, o Naturalismo cru de O cortiço não deixa de lado uma escrita marcada pelo lirismo, presente, sobretudo, na caracterização das personagens Rita Baiana e Pombinha, e encontrado no discurso descritivo do narrador quando mostras as danças, vestimentas e conquistas sensuais de Rita Baiana, bem como na cena do mênstruo de Pombinha, que, deitada ao chão, recebe a visita do astro rei enamorado daquela menina-mulher. Acerca desse lirismo no naturalismo, Araripe Junior esclarece: “Assim, os naturalistas brasileiros seriam diferentes dos europeus, por força do clima aqui dominante; isso eliminaria do naturalismo ortodoxo as suas arestas, possibilitaria a sua adaptação ao nosso caso. E assim ocorreria, em realidade, porque os nossos naturalistas, e Aluísio Azevedo principalmente, desobedeciam de forma espontânea a fórmula ortodoxa e externa, oferecendo obras de mérito.” (Apud, CRUZ, 2008, p.39).
    Em suma, podemos dizer que a mais auto-suficiente das cinco personagens femininas aqui estudadas é Pombinha. Isso decorre do fato de ela ser escolarizada. Por saber ler e escrever, ganhou entendimento da vida ao escrever e ler cartas para a gente do cortiço. Somou o seu letramento com a vivência dos dramas humanos descritos nas cartas, e pôde compreender melhor a alma humana. Desta forma, ela rompe com o provincianismo do seu casamento, vai de encontro ao mundo masculino, toma o seu destino em suas mãos, e parte à procura de uma vida com perspectivas mais amplas, dentro que é possível na sociedade da época. No caso dela, essa tentativa de uma existência mais livre desemboca na prostituição. Ou seja: para ela se tornar cosmopolita, a força do determinismo do meio e do momento, prepara-lhe a cilada da prostituição. Pombinha, como prostituta, passa da condição de menina e adolescente pobre, oprimida pelo meio, para a condição de exploradora dos barões do café, juntamente com Léonie. Elas vendiam caro seus copos àqueles honrados e “bem casados” cidadãos.
    Por fim, podemos afirmar que as cinco personagens deste estudo, Rita Baiana, Pombinha, Léonie, Estela e Bertoleza, revelam traços de personalidade surpreendentes, que vão se tornando visíveis ao longo da narrativa de O cortiço. O percurso amoroso de cada uma é singular, dentro de um enredo, caracterizado de grande realismo, que aproxima, em um mesmo universo, mulheres diferentes. Em António Candido (1970), encontramos uma explicação para a composição amorosa dessas personagens: “… a verdade da personagem não depende apenas, nem sobretudo da relação de origem com a vida (...). Depende, antes do mais, da função que exerce na estrutura do romance, de modo a concluirmos que é mais um problema de organização interna que de equivalência à realidade exterior” (p.75).
    Aluísio Azevedo organizou as experiências amorosas de Rita Baiana, Pombinha, Léonie, Estela e Bertoleza, de forma tal, que não deixa dúvidas para o leitor que essas cinco personagens estão bem entrelaçadas com a composição fragmentária do romance. Elas têm ligação direta com o momento sócio-histórico, e, como personagens, estão unidas ao material estético-literário da composição realista-naturalista. Essas mulheres são personagens que ganham vida na união com a composição estrutural do romance, na qual conseguem surpreender de forma positiva no que tange, por exemplo, à autonomia financeira. Nenhuma delas dependem financeiramente de seus pares amorosos, o que é algo raro dentro de uma sociedade patriarcal. Por isso, segundo Antonio Candido (1970), “as personagens planas, na sua forma mais pura, são construídas em torno de uma única idéia ou qualidade quando há mais de um fator neles, temos o começo de uma curva em direção à esfera” (p.62).
    Portanto essas cinco mulheres iniciam, cada uma delas, um percurso amoroso, e fazem uma curva na escala: de personagens planas para esféricas. Elas continuam subindo na curva esférica, através do comportamento social não padronizado, com exceção de Bertoleza. Mas, Bertoleza, por seu lado, é a única a surpreender pela fidelidade amorosa dedicada a seu par amoroso. Rita Baiana, Estela e Pombinha continuam subindo na curva esférica das personagens, pois a três tem o mando dos seus relacionamentos amorosos. Já Bertoleza também alcança o maior grau na curva esférica, por seu espírito empreendedor, na gestão honesta e competente da sua micro empresa, sua quitanda, fato extraordinário dentro da sociedade patriarcal. Já Léonie trouxe consigo, da França para o Brasil, o glamour e a experiência da prostituta francesa. Ela consegue surpreender pela audácia traiçoeira, no desvirtuamento moral e sexual de sua afilhada Pombinha.
    Todas essas cinco mulheres conseguem surpreender; umas mais, outras menos, mas nenhuma fecha a curva das personagens esféricas, pela cilada do determinismo da raça, do meio e do momento, e sendo assim não conseguem mais avançar nas suas ações.

Fonte: Rita Chapsky, in «O Pecurso Existencial das Personagens de O Cortiço». São Paulo. 2010.

Caracterização de Léonie

    Léonie era francesa, "cocote" luxuosa de mais de trinta mil réis. Não morava no cortiço, e sim num sobrado na cidade. Prostituta de casa aberta, vivia cercada de grande luxo. Os lábios eram pintados de carmim, as pálpebras de violeta e o cabelo de loiro. Considerada de bom coração, tinha o rosto redondo, malicioso e petulante, combinando com os dentes alvos. Bonita, possuía um bom carro, frequentava teatros, bailes e "pagodes". Tinha muito dinheiro para gastar. As roupas que vestia eram extravagantes: vestidos de seda sempre enfeitados, sapatos da moda, luvas cano longo, sombrinha vermelha com muita renda com o cabo enfeitado, chapéu chamativo, jóias de pedrarias circundadas com muito brilhante, meias, muito luxo nas rendas e bordados. Ela tinha outra afilhada, Juju, que morava com ela, filha de Augusta Carne-Mole com Alexandre, que moravam no cortiço de João Romão. Léonie tinha o hábito de visitar a comadre lavadeira no cortiço, em cuja casa se sentia muito à vontade. Descalçava-se dos seus sapatos luxuosos para calçar os chinelos velhos dos donos da casa. Ali, cercada de gente simples, transforma-se numa mulher de elevada moral.
    Léonie era uma prostituta proveniente do cortiço que frequentava a alta roda da sociedade carioca com seus amantes, e voltava sempre ao cortiço para ver a afilhada. Atualmente, se Léonie fosse classificada, seria descrita como uma mulher forte corajosa e à frente do seu tempo, como se pode notar na citação abaixo: “Léonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à francesa, levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras. O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos à moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas lavas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas abas forradas de velado escarlate, com um pássaro inteiro grudado à copa; as suas joias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus lábios pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro; tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras daquela pobre gente, quede todos os lados surgiam olhos curiosos a espreitá-la pela porta da casinha de Alexandre” (AZEVEDO, 1997, p. 50). Como podemos observar no trecho do texto acima, Léonie era uma mulher muito vaidosa, que sempre saia bem vestida, com roupas extravagantes, perfumada, e é de certo que gostava de chamar a atenção de todos. Acontece que o naturalismo tem por característica tratar a mulher como objeto sexual, portanto desta forma Léonie sempre é vista de uma maneira pejorativa, ou seja, sempre na busca de satisfazer seu apetite sexual, como podemos ver na citação: “- Vem cá, minha flor! disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair sobre um divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!... Estou louca por ti! E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a menina, enchendo-a de espanto e de um instintivo temor, cuja origem a pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era” (AZEVEDO, 1997 p. 71). Como podemos observar, Léonie era uma moça muito fogosa e que não dava descanso a ninguém, muito menos as pobres mocinhas do cortiço. Assim sendo, no cortiço havia uma jovem chamada pombinha, filha de uma viúva, antes com boas condições de vida, teve que se mudar para o cortiço após o suicídio do seu marido. Mesmo assim a mãe da garota, lhe dera boa educação, falava até francês, assim lia e escrevia cartas para todos no cortiço além de prestar outros favores que demandavam uma maior instrução, motivo pelo qual eram adorados por todos, chegando a ser muitas vezes presenteadas pelos moradores, como pode-se constatar, a seguir: Pombinha era muito querida por toda aquela gente. Era quem lhe escrevia as cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem lia o jornal para os que quisessem ouvir. Prezavam-na com muito respeito e davam-lhe presentes, o que lhe permitia certo luxo relativo(AZEVEDO, 1997, p.17). Na citação supracitada, mostra como era a vida da personagem Pombinha, de como ela era querida por todos, por ser a pessoa que escrevia as cartas e que lia o jornal de quem vivia no cortiço, Pombinha tinha lá seus privilégios.  A mãe apostava todas as suas fichas no casamento da filha, pois esta casando-se com um bom partido, conseguir sair do cortiço. Pombinha já estava noiva, entretanto como ainda não havia tido sua primeira menstruação, era aconselhada pelos médicos a não se casar, além do mais, a moça possuía uma saúde frágil.
    Numa das suas visitas ao cortiço, Léonie conhece Pombinha e logo se encanta pela moça, de uma maneira “diferente”, passa a presenteá-la e a visitá-la, constantemente; por fim, convida a moça e a mãe para jantarem em sua casa, convite que estas aceitam. Durante o jantar, Léonie investe contra a moça todo o tempo; por fim, quando a mãe desta, já embriagada de vinho, se vai deitar, a prostituta entra no quarto da moça e passa a assediá-la, até que termina por praticar um estupro, como podemos observar: “E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha. A menina, vendo-se descomposta, cruzou os braços sobre o seio, vermelha de pudor. - Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila trêmula. E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta, e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo bico do peito. - Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se em cócegas, e deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta. - Que mal faz?... Estamos brincando... - Não! Não! balbuciou a vítima, repelindo-a. - Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo em contacto com o dela todo o seu corpo nu (AZEVEDO, 1997, p.71).

Caracterização de Pombinha

    Pombinha é filha da lavadeira Dona Isabel, portuguesa, viúva, cujo marido se suicidou por causa da falência da sua loja de chapéus. Mãe e filha passam a morar no cortiço de João Romão, no cómodo número 15. Pombinha é uma jovem brasileira bonita, loira, pálida, meiga, frágil, nervosa, de 18 anos, uma adolescente virginal com a saúde debilitada. O seu calçado preferido são as botinas e os sapatinhos, sempre acompanhados de meias de cor. O vestido de chita estava sempre engomado com grande esmero, e, como complemento da sua vestimenta, usava joiazinhas graciosas. Aos domingos ia à missa acompanhada da mãe. Sempre bem arrumada, trajando vestido de cetineta, nas mãos trazia um livro de rezas, acompanhado de um lenço e uma sombrinha.
    Diferente das outras jovens colegas suas do cortiço, Pombinha não tinha o perfil de quem morava num cortiço. Era considerada a Flor do Cortiço pelos moradores. A sua postura de menina flor de boa família conquista toda a gente. Dona Isabel não poupou sacrifícios para dar à filha a melhor educação que pôde e até lhe custeou um mestre para lhe ensinar francês. Era proibida pela mãe de lavar e engomar roupas, como acontecia com as outras mulheres e jovens do cortiço, devido à fragilidade da sua saúde. Porém, Pombinha não deixava de colaborar na renda familiar da casa. Assim, três vezes por semana, servia de dama, numa sociedade, pela quantia de dois mil-réis, por cada noite, para uma clientela de caixeiros do comércio, cuja proposta era a aprendizagem da dança. Foi nesse ofício que Pombinha conheceu o noivo, João da Costa. Dona Isabel, no entanto, só permitiria o casamento entre ambos quando Pombinha alcançasse as regras menstruais. Desse casamento dependia a volta de mãe e filha para a classe social de origem de ambas, pois Costa tinha um bom emprego.
    Pombinha tinha no cortiço funções espontâneas de escrever cartas para os que lhe pedissem, de fazer listas das lavagens de roupas para as lavadeiras, de fazer contas e de ler as notícias de jornais, trazendo as notícias de fora para dentro do cortiço. É pelo conhecimento da leitura e da escrita que a jovem é detentora e cúmplice dos segredos da gente do cortiço, que lhe são revelados por meio da escrita das cartas. Isso faz de Pombinha o grande diferencial necessário para a vida do cortiço. Os moradores, agradecidos, enchiam-na de presentes, facto esse que contribuía para Pombinha usufruir de certo luxo, o qual era considerado insignificante pela sua madrinha Léonie, que queria que a afilhada tivesse bem mais para si, e faria tudo que estivesse a seu alcance para isso acontecer. Na realidade, Léonie desejava a doce virginal Pombinha, e este desejo era um segredo muito bem guardado. Certo dia, Pombinha e a mãe são convidadas para um jantar na casa de Léonie. Depois do repasto, Pombinha não amanheceu bem e lamentou aquele jantar. Não esperava um certo comportamento da madrinha. Foi apanhada de surpresa com certas atitudes inconvenientes maliciosas. Na verdade, esse jantar de domingo foi uma preparação de Léonie para atrair Pombinha para si. Ela conduz sua afilhada para aqueles divãs confortáveis da sua sala, apropriados para ocasiões especialíssimas, e assedia Pombinha sexualmente: "e assentou-se ao lado da menina, bem juntinho uma da outra, tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade de perguntas, e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados". (AZEVEDO, 2007, p.147). A violência sexual da cena é explícita: “Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre o seu mesquinho peito de donzela impúbere e o roçar vertiginoso daqueles cabelos ásperos e crespos nas estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do sangue (...). Agora, espoliava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxúria, irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de égua, bufando e relinchando.” (AZEVEDO, 2007, p. 148-149). Leónie, mulher experiente, não teve dificuldades em mascarar os seus propósitos lúbricos traiçoeiros com a finalidade de possuir a ingénua Pombinha: “E metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como se quisesse arrancá-lo aos punhados. Até que, com um assomo mais forte, devorou-a num abraço de todo o corpo, ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos, e afinal desabou para o lado (...).” (AZEVEDO, 2007, p.149).
    Como se pode observar a iniciação sexual da Pombinha deu-se de forma violenta, através de um estupro, o que mostra um profundo preconceito existente contra a homossexualidade na época, além de ser tratado como algo patológico. Na obar de Aluísio Azevedo, acabou por ser ainda relacionado com a violência sugerida por um estupro:
    "E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha. A menina, vendo-se descomposta, cruzou os braços sobre o seio, vermelha de pudor.
    - Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila trêmula. E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta, eprecipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgarlhe com os lábios o róseo bico dopeito.
    - Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se em cócegas, e deixando verpreciosidades de nudez fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta.
    - Que mal faz?... Estamos brincando... - Não! Não! balbuciou a vítima, repelindo-a. - Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo emcontato com o dela todo o seu corpo nu." (AZEVEDO, 1997, p.71). 
    Depois do jantar, às oito horas da noite, Dona Isabel e Pombinha voltam para a estalagem. Pombinha, muito contrariada, não consegue dormir bem à noite. Pela manhã sente dores uterinas e por volta do meio dia sai para um passeio no capinzal, atrás do cortiço. Deita-se, adormece e sonha que está dentro de um jogo voluptuoso de luzes, sol, borboleta, fogo, rosa, forma de menina. É o sonho repleto de poesia e a emoção dos sentidos da puberdade de Pombinha: “Na doce tranquilidade daquela sombra morna, (...) o calor tirava do capim um cheiro sensual. A moça fechou as pálpebras, vencida pelo seu delicioso entorpecimento, e estendeu-se de todo no chão, de barriga para o ar, braços e pernas abertas. Adormeceu. Começou logo a sonhar (...). E viu-se nua, toda nua, exposta ao céu, sob a tépida luz de um sol embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios. (...), no regaço de uma rosa interminável, (...) espreguiçou-se toda (...), o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas mimosas formas de menina. (...), o fogoso astro tremeu e agitou-se, e, desdobrando-se, abriu-se de par em par em duas asas e (...) precipitou-se lá de cima agitando as asas, e veio, enorme borboleta de fogo, adejar luxuriosamente em torno da imensa rosa, em cujo regaço a virgem permanecia (...).” (AZEVEDO, 2007, p.152 – 153). Ou seja, após a ocorrência do fato acima transcrito, Pombinha volta para a sua casa, arrepende-se e sente-se culpada diante do ocorrido, vai ao um bambuzal para refletir e acaba por adormecer. Tem um sonho e ocorre a sua primeira menstruação. Sente-se aliviada, e começa a refletir sobre o futuro casamento.  O sonho púbere da Pombinha revela a força da natureza no comando e na transformação da vida, num entrelaçamento de vida animal e vegetal. O calor e o brilho do astro rei, metamorfoseado em borboleta, confidencia a Pombinha o percurso bem traçado da natureza na transformação de menina para mulher: “Uma sofreguidão lúbrica, desensofrida, apoderou-se da moça; queria a todo custo que a borboleta pousasse nela, (...). De cada vez que a borboleta se avizinhava com as suas negaças, a flor arregaçava-se toda, dilatando as pétalas, abrindo o seu pistilo vermelho e ávido daquele contato com a luz (...). A borboleta não pousou; mas, num delírio, convulsa de amor, sacudiu as asas com mais ímpeto e uma nuvem de poeira dourada desprendeu-se sobre a rosa, fazendo a donzela soltar gemidos e suspiros, tonta de gosto sob aquele eflúvio luminoso e fecundante. Nisto, Pombinha soltou um ai formidável e despertou (...). E feliz, (...) sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das estranhas, em uma onda vermelha e quente (...). O sol, vitorioso, estava a pino (...), abençoando a nova mulher que se formava para o mundo.” (AZEVEDO, 2007, p.154 – 155). Dona Isabel agradece a Nosso Senhor Jesus Cristo a bênção recebida. Esse sangue abençoado significava para as duas a ascensão para uma vida melhor. João da Costa, o noivo de Pombinha, foi avisado e solicitado que marcasse o casamento. Pombinha deixou o curso de dança e agora recebia o noivo todas as noites. O casamento foi marcado. Mãe, filha e noivo iriam morar juntos. Mas Pombinha mudou. A menina pura, ingénua, dócil, agora era mulher. Mulher letrada do mundo. Quando o seu ventre fora visitado pelo fogo sensual do sol, este agraciou-a com o conhecimento da vida. Da sua vivência de escrevente de cartas, decifrou os segredos alheios e conheceu a fraqueza humana. Das fotos que Léonie lhe mostrara dos velhos cidadãos "honrados" pela sociedade, compreendeu a impotência do ser masculino diante das garras impiedosas e manipuladoras da prostituta, sugando-o no seu orgulho, na sua honra, nos seus bens, até com o extermínio da sua própria vida. E Pombinha descobriu a sua superioridade de mulher-fêmea, frente à submissão do sexo masculino. Compreendeu que não poderia amar o seu futuro marido, pois Costa era igual aos outros na sua passividade, sem desejos próprios, sem ambição, sem capacidade de superação; não passava de um pobre diabo. Casar-se-ia só para satisfazer Dona Isabel, sua mãe.
    Durante os dois primeiros anos de casada, Pombinha já dava sinais que não suportava mais o marido, mas esforçou-se para ser boa esposa e mulher honesta. Aguentou o quotidiano de um casamento já desafinado, com um marido sem ideais, com gestos pequenos. Atendeu-o na sua mesquinharia de marido ciumento chorão, cuidou da sua pneumonite aguda. Além disso, reprimiu os seus desejos de ver o belo, a arte, a originalidade, em prol da vida estreita do marido negociante sem o grande futuro. De um casamento desafinado a dois, passou a ser a três, por conta e obra de Pombinha, que caiu nos braços de outro mais talentoso, poeta e libertino. O marido começou a desconfiar dela e decidiu espiá-la pela rua, e viu Pombinha não mais com o poeta libertino e, sim, com um artista dramático. Não só rompeu com a esposa como entregou a sua mulher à mãe, Dona Isabel, e fugiu para São Paulo. Para desgosto de Dona Isabel, depois de algum tempo, Pombinha saiu de casa e passou a morar num hotel com Léonie. A mãe chorava a filha perdida, mas, por necessidade, aceitou o dinheiro que Pombinha lhe passou a enviar regularmente. Mudou-se depois para a casa da filha, onde se escondia dos fregueses dela. Pombinha entregou-se à orgia, vivia ébria. A mãe desconhecia a filha e adoeceu; foi para uma casa de saúde, onde morreu.
    Léonie e Pombinha tornaram-se amigas íntimas. Dominavam como ninguém o ramo da prostituição. Viviam cercadas de luxo e prazeres, carro descoberto, teatro, jantares. Entre os seus clientes contavam-se os ricos fazendeiros do café. Pombinha sabia como tirar dinheiro do mais avarento deles. Conhecia todos os segredos da profissão: “Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis, terríveis naquela inquebrantável solidariedade que fazia delas uma só cobra de duas cabeças, dominavam o alto e o baixo Rio de Janeiro. Eram vistas por toda a parte onde houvesse prazer; (...), no teatro, em um camarote de boca, chamavam sobre si os velhos conselheiros desfibrados pela política (...), ou arrastavam para os gabinetes particulares dos hotéis os sensuais e gordos fazendeiros de café, (...). Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tão perita no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência, nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego (...).” (AZEVEDO, 2007, p. 258). Para os habitantes do cortiço, Pombinha continuava a ser a mesma Flor, principalmente quando ela e Léonie abriam as suas bolsas e soltavam dinheiro, especialmente para Piedade, mulher de Jerónimo, cuja filha, Senhorinha, Pombinha "protegia" com as mesmas intenções com que outrora foi "protegida" por Léonie. Pombinha tinha o hábito de passear com os seus clientes pelo centro da cidade. Certa vez, foi vista, coberta de jóias, com Henrique, aquele que estivera com Estela, mulher de Miranda.

Fonte: Rita Chapsky, in «O Pecurso Existencial das Personagens de O Cortiço». São Paulo. 2010.

Caracterização de Estela, personagem de O Cortiço

    A família Miranda mora num belo sobrado, localizado à direita da venda do proprietário João Romão. O sobrado é grande, espaçoso, possui nove janelas com peitoril que se abrem para o terreno do cortiço, do mesmo proprietário da venda. Estela é brasileira, esposa do português Miranda, tem uma filha de nome Zulmira; é rica, pertencendo à aristocracia decadente. Estela é uma mulher branca e pálida; o seu pescoço é muito branco é liso, sem rugas e grosso. Os cabelos e a pele são perfumados, enquanto os lábios possuem uma malícia sensual. Ela costuma usar grandes leques para se abanar por causa do calor, acompanhado de um penteador de cambraia com enfeites de laços cor-de-rosa, com pretensão de nobreza.
    O casamento de Estela com Miranda é um matrimónio de aparências, de fachada, servindo apenas para o marido enriquecer e ascender social e economicamente. Por sua vez, Estela é uma mulher de muitos homens, "levada da breca"; tem atitudes escandalosas que beiram a leviandade. É casada há treze anos, mas adúltera desde o segundo ano do enlace. Foi apanhada em flagrante a cometer adultério pelo próprio marido. Miranda desejou despachá-la, porém, a sua casa de comércio era alicerçada sobre o dote da mulher: oitenta contos distribuídos em prédios e ações da dívida pública. Sendo assim, Miranda preferiu aguentar a esposa adúltera a ter que voltar à pobreza. O real motivo da mudança de residência da Rua do Hospício, que ficava no centro da cidade, onde o casal morava e tinha o seu estabelecimento comercial (uma loja de fazendas por atacado, para o sobrado recém-comprado), foi o de afastar Dona Estela dos seus caixeiros.
    Na sequência, o casal passou a dormir em quartos separados. Miranda e estela odiavam-se mutuamente. O nascimento da filha Zulmira foi um desastre na vida do casal. Caricatamente, Estela tinha dificuldades em amar a filha, por supô-la filha do marido, ao passo que o marido detestava a criança por não ter certeza de ser efetivamente seu pai biológico.
    Certa noite, Miranda sentiu o desejo de estar com alguma mulher. Não encontrando em casa nenhuma criada, foi ter com Estela no seu quarto. Ela dormia. Com a aproximação do marido, acordou e, fingindo dormir, permitiu o “delito”. Miranda continuava a odiá-la, configurando o «encontro» um momento de satisfação de uma necessidade física. Curiosamente, o facto de o homem se ter colocado numa posição de «não se servir» da esposa, a responsabilidade de a desprezar, tiveram como consequência assanhar nele o desejo da carne, fazendo da esposa infiel um fruto proibido. A mulher dormia a sono solto, Miranda entrou pé ante pé e aproximou-se da cama. Estela torceu-se sobre o quadril da esquerda, repuxando com as coxas o lençol para frente e patenteando uma nesga de nudez. O Miranda atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta, se desviou, tornando logo e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que continuava a dormir.
    Estela sabia que teria o marido, novamente, na sua cama. Ela tinha isso como certo, pois conhecia-o bem. Era só esperar e depois saber recebê-lo dentro daquele “script” tão bem preparado por si. Miranda, arrependido amargamente pelo ato cometido, compreendeu o erro que acabara de cometer e retirou-se, lamentando-se, para o seu quarto de “solteiro”. No dia seguinte, ambos se viram, evitaram-se e continuaram a odiar-se. Porém, no mês seguinte, Miranda retornou ao quarto de Estela, que, fingindo dormir, esperou que o marido se aproximasse e, quando este lhe tocou, foi surpreendido por uma gargalhada lançada ao seu rosto. Desejou retirar-se, mas Estela aprisionou-o, apegando-se ao seu corpo, cegando-o de beijos. Possuíram-se um ao outro como nunca tivera acontecido antes em todos os anos de casamento: “A mulher (...); passou-lhe rápido as pernas por cima e, grudando-se lhe ao corpo, cegou-o com uma metralhada de beijos. Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer (...). E gozou-a, gozou-a loucamente, com delírio, com verdadeira satisfação de animal no cio. E ela também, ela também gozou, estimulada por aquela circunstância picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade daquele ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda, rangendo os dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o também agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o nos seus braços nus, metendo-lhe pela boca a língua húmida e em brasa. Depois, num arranco de corpo inteiro, (...) estatelou-se num abandono de pernas e braços abertos, (...) como se a tivessem crucificado na cama.” (AZEVEDO, 2007, p. 15).
    Desta vez, Miranda só saiu do quarto de Estela pela manhã, e a partir daí ficou estabelecido entre ambos o hábito conjugal. Mas esse hábito não modificou a repugnância moral que um sentia pelo outro e que se transformou no combustível que movia a tara luxuriante entre os dois. Este estado de coisas durou dez anos, ate que Miranda esfriou as suas "crises" conjugais e deixou de comparecer no quarto de Estela com regularidade. A partir daí, Estela reincidiu no adultério, estimulando os caixeiros do marido quando estes subiam, ou para o almoço, ou para o jantar. Essa situação provocou em Miranda o desejo de se mudar, por isso decidiu comprar o sobrado vizinho a João Romão. Por essa época, passou a morar no sobrado da família Miranda, por motivo de estudos, o jovem Henrique de 15 anos, vindo de Minas Gerais, filho de um fazendeiro, cliente importante da loja comercial de Miranda. Dona Estela apegou-se muito ao jovem Henrique, passou até a administrar a sua gorda mesada. Sentia prazer em passear com ele, sua filha e Valentim pela praia ao anoitecer. Valentim era filho da escrava alforriada por Estela. Esta gostava mais de Valentim do que da própria filha.
    Outro morador da casa da família Miranda era Botelho, um parasita manipulador dos moradores da casa. Era confidente infiel, tanto de Estela como de Miranda. Ela expunha a Botelho todo o desprezo que nutria pelo marido. Lamentava precisar ter ao seu lado, por exigência da sociedade, um esposo, mesmo que este fosse um traste; e, se permitia que ele se chegasse a si, era só para evitar aborrecimentos. Entretanto, Estela foi novamente flagrada a cometer adultério, desta vez por Botelho. Ao chegar antes da hora a casa, o  rapaz deparou com Estela agarrando-se no quintal do sobrado com Henrique, mas justificou a falha da mulher com o marido omisso e a jovialidade dela.
    A fama de mulher fogosa de Estela ia longe. Leocádia, a lavadeira do cortiço, garantiu que, certa vez, olhando por cima do muro do pátio do cortiço, a vira agarrada ao estudante Henrique numa atitude bem amorosa, e, quando perceberam que estavam a ser observados, fugiram velozmente. Alexandre, nada surpreso com a revelação de Leocádia, confirmou que também já vira, através da sombra de Estela refletida na parede, um agarramento dela com um sujeito barbudo, careca, que aparecia por lá uma vez por outra.
    Entretanto, Miranda foi agraciado pelo governo português com o título de Barão do Freixal. Haveria faxina e festa no sobrado. Dona Estela, de penteador de cambraia com enfeites de laços cor-de-rosa, dava ordens aos criados, abanando-se com o seu leque enorme, levantando a saia para não a sujar na água suja da limpeza da casa. A festa foi muito concorrida e farta em comida e bebida. Ao romper da alvorada, a pedido de Dona Estela, houve queima de fogos com banda de música. E Miranda, muito bem vestido, aparecia vez por outra a uma das janelas do lado da mulher ou da filha, agradecendo para a rua. Estela, já com uma filha de dezassete anos, às vésperas de um casamento arranjado com João Romão, ressentia-se da chegada da velhice. E com a velhice perdeu dois dentes, pintou os cabelos, apareceram rugas e perdeu a malícia dos lábios; porém, o pescoço estava firme e belo como antes, assim como os seus braços e os seus passos firmes. Permaneceu sempre ciente do dever cumprido e da importância de saber ser ela mesma.

Fonte: Rita Chapsky, in «O Pecurso Existencial das Personagens de O Cortiço». São Paulo. 2010.
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