Português: Foco do narrador de O Cortiço

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Foco do narrador de O Cortiço

    Para dar apoio a teoria cientificista, os autores naturalistas criaram narradores oniscientes impassíveis, do tipo que pode ver tudo e por todos os ângulos. Nas suas obras as descrições são precisas e minuciosas, frias e fiéis aos aspetos exteriores. As personagens são vistas de fora para dentro, como casos a estudar. Não há aprofundamento psicológico, e o que interessa são as ações exteriores e não os meandros da consciência. O narrador de O cortiço esta em terceira pessoa, e onisciente, mas não deixa de fazer intromissões constantes na narrativa: E [Miranda] pôs-se a passear no quarto sem vontade de dormir, sentindo que a febre daquela inveja lhe estorricava os miolos. Feliz e esperto era o João Romão! Esse, sim, senhor! Para esse e que havia de ser a vida!... Filho da mãe, que estava hoje tao livre e desembaraçado como no dia em que chegou da terra sem um vintém de seu! Esse, sim, que era moco e podia ainda gozar muito[...] (AZEVEDO, 2004, p. 29, grifo nosso). Aqui, o narrador utiliza o discurso indireto livre sem as marcas dos travessões e a presença de verbos dicendi para julgar o comportamento de Miranda, o dono do sobrado ao lado do cortiço de João Romão, isto é, o narrador tem total acesso ao pensamento dos personagens sem se envolver com eles, o que lhe possibilita analisar, observar, distanciar-se do objeto em estudo e revelar dos fatos uma impressão de realidade. A linguagem de O cortiço e afinada com o estilo naturalista, ou seja, simples, e apresenta o ambiente físico e social detalhadamente, como se o narrador estivesse munido de uma 16 máquina fotográfica, que lhe permitisse compor e decompor os detalhes de cada cena, pretendendo retratar de maneira fiel a realidade focalizada. O cortiço é tornado pelo narrador como o protagonista do romance, tratando de caracteriza-lo e descreve-lo minuciosamente, como um verdadeiro personagem naturalista deveria ser descrito. Constata-se isso em uma amostra de uma passagem do livro que revela o amanhecer no cortiço: Eram cinco horas da manha e o cortiço acordava, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de  (op. cit., 2004, p. 37) chumbo. [...]. Como exemplo de detalhamento de personagens como tipos sociais, temos: Jerónimo era alto, espadaúdo, construção de touro, pescoço de Hercules, punho de quebrar um coco com um murro: era a forca tranquila, o pulso de chumbo. O outro - franzino, um palmo mais baixo que o português, pernas e braços secos, agilidade de maracajá: era a forca nervosa; [...]. Um solido e resistente; o outro, ligeiro e destemido; mas ambos corajosos.(op. cit., 2004, p.119). Esse trecho narra características de Jerónimo, o português que se apaixona por Rita Baiana, e descreve também o brasileiro Firmo, namorado da mulata. O português com seu porte de atleta enamora-se da garota e deixa o mulato brasileiro enciumado. Começa aqui uma competição entre Firmo, um ágil e franzino capoeirista com o robusto Jerónimo. Numa frequente narração impessoal e de descrições minuciosas, com muitas sugestões visuais, olfativas, táteis e auditivas, a linguagem de O cortiço esta caracterizada pela adoção de uma postura analítica e cientifica diante da realidade, o que torna a narrativa lenta, como acontece na cena seguinte: Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas das ondas: pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xicaras a tilintar; [...] No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. [...]. (op. cit., 2004, p.37) Constata-se, ainda, a maneira descritiva de uma denuncia da sociedade que "mostra o homem como um ser escravizado pelo meio, raça e época" (MARQUES Jr., 2000, p. 28), pois se observa a exploração do homem pelo homem, o problema da moradia popular, os conflitos humanos, termos que são vistos à luz dos princípios do Naturalismo.

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