Português: Análise da cantiga "Abadessa, oí dizer", de Afonso Anes de Cotom

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Abadessa, oí dizer", de Afonso Anes de Cotom

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Afonso Anes de Cotom, é constituída por quatro sétimas, num total de 28 versos de rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema rimático ABBACCA, e octossílabos. Nela, encontramos outra sátira dirigida a uma abadessa não identificada.
    Assim, o sujeito poético apresenta-se como recém-casado e órfão [“ogano [há pouco tempo] casei” – v. 5; “nem padre nem madre nom hei.” – v. 13) e dirige-se à abadessa, solicitando-lhe que lhe ensine as técnicas do amor / sexo, pois tinha ouvido dizer que ela era muito conhecedora dessa arte: “Abadessa, oí dizer / que érades mui sabedor / de tod’o bem; e, por amor / de Deus, querede-vos doer / de mim, que ogano casei, / que bem vos juro que nom sei / mais que um asno de foder.” Na última, tanta é a experiência e o conhecimento da abadessa na matéria que o trovador alvitra que as mulheres inexperientes poderiam também recorrer às aulas da religiosa: “e per ensinar a molher / coitada, que a vós veer, / senhor, que nom souber ambrar” (vv. 26 a 28). A expressão “de tod’o bem” indicia o vasto conhecimento da abadessa acerca das práticas sexuais.
    A segunda estrofe repete o conteúdo da primeira: o sujeito lírico ouvir falar acerca das habilidades e da experiência da mulher (“Ca me fazem en sabedor / de vós que havedes bom sem / de foder e de tod’o bem”), por isso faz-lhe um pedido intrigante: “ensinade-me mais, senhor, / como foda, ca o nom sei” (vv. 11-12). Estas palavras parecem insinuar que o trovador já teria tido algum tipo de experiência sexual com a abadessa. Além disso, coloca-se numa posição de inferioridade, pois argumenta que não teve pai nem mãe que o ensinassem, daí a sua falta de conhecimento. Note-se o recurso à expressão “fic’i pastor”, conferindo um tom dramático e, simultaneamente, irónico ao verso, ao afirmar que “fica por aí como um garoto inexperiente”.
    Na terceira cobla, o sujeito poético faz uma proposta à mulher: se aprender com ela o “mester [a arte] de foder” (o calão cru é um traço da linguagem da cantiga), toda a vez que fizer sexo, lembrar-se-á da abadessa e rezará um Pai Nosso por ela: “cada que per foder direi / Pater Noster e enmentarei / a alma [e rezarei pela alma] de quem m’ensinou.” Atente-se na presença da oração subordinada adverbial condicional, que introduz a condição fundamental: as lições da abadessa. Dito de outra forma, o «eu» pede-lhe que lhe ensine o que há de fazer à recente esposa, pois é muito experiente nas artes do sexo, por oposição à sua inexperiência na matéria (antítese experiência / inexperiência). De cada vez que o fizer, ele rezará um Pai Nosso pela abadessa e, desse modo, poderá ganhar “o reino de Deus”, como afirma, sarcasticamente, na derradeira cobla: “E per si podedes gaar, / mia senhor, o reino de Deus, / per ensinar os pobres seus” – vv. 22 a 24).
    O tom de escárnio acentua-se quando afirma que não são os jejuns que a farão ganhar o reino dos céus, mas, sim, a boa ação de “ensinar os pobres seus” (v. 24). Observe-se o uso irónico do determinante indefinido «outro» na expressão “outro jajuar”, que se refere indiretamente ao jejum sexual, isto é, ela ganhará o reino dos céus mais por ensinar-lhe a arte do sexo do que pelo jejum (ou abstinência) sexual. O trovador vai mais longe quando sugere que as próprias mulheres inexperientes deveriam procurar a abadessa e beneficiar dos seus ensinamentos, conhecimento e experiência.
    Em suma, o trovador satiriza a abadessa, que deveria obedecer ao voto de celibato, por, pelo contrário, ser experiente na arte do sexo (certamente por o praticar insistentemente), de tal como que seria capaz não só de ensinar, mas de ganhar a recompensa espiritual máxima (o reino de Deus) pela qualidade dos seus ensinamentos. A religiosa, em tese, não deveria ser versada na arte do sexo, todavia, a realidade da época era bem diferente. É verdade que a vida no interior dos mosteiros, conventos e beatérios nem sempre respeitava os princípios cristãos, as regras da Ordem ou os votos formulados quando os religiosos professavam. Quer a literatura, que as fontes históricas veiculam diversos exemplos de monjas que não levaram uma vida indecorosa, que mantiveram relações sexuais com homens, incluindo clérigos, ou chegaram a ser mães. Foi o caso, por exemplo, da abadessa do monastério burgalês de Las Huelgas nos finais do século XIII, cujo filho, Dom Juan Nunez, foi mestre da Ordem de Calatrava.
    Religiosos, fossem homens ou mulheres, faziam sexo, embora não se saibam as proporções que o comportamento sexual assumiu entre os membros do clero. Seja como for, foi em número suficiente para levar à existência de sátiras como a presente, o que não significa que a cantiga visasse uma abadessa específica.
    Relativamente ao sujeito poético, ao longo da cantiga encontramos expressões que caracterizam, ironicamente, a sua inabilidade no ofício do amor / sexo: “ogano casei” (v. 5); “asno de foder” (v. 7); “fiqu’i pastor” (v. 14).
    Por outro lado, a cantiga evidencia a mistura entre o sagrado e o profano. O primeiro é marcado pela referência a orações (“Pater Noster” – v. 20), ao culto (“reino de Deus” -v. 23; “amor de Deus” – vv. 4-5),ao rito (“jajuar” – v. 25), enquanto o segundo é traduzido pelo ato sexual (“foder” – vv. 7, 10, 17 e 19; “ambrar” – v. 28).
    Além disso, a cantiga representa a ação sexual como acesso ao domínio de um conteúdo, de uma prática, de um método, sendo esse conhecimento atingido através de outrem, no caso, de uma abadessa. Logo, mapeiam-se, no domínio-alvo (ação sexual), saberes relativos ao domínio-fonte (conhecimento), de tal modo que são mapeados, especificamente, saberes sobre o que se aprende empiricamente, descartando os conhecimentos, por exemplo, que se adquirem através dos livros, daí que ocorra, igualmente, nesta cantiga, uma metonímia do tipo parte pelo todo, bem como outra todo pela parte (“mui sabedor de tod’o bem”).

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