Português: Análise do poema "Ode a uma estrela", de Pablo Neruda

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Análise do poema "Ode a uma estrela", de Pablo Neruda


 
Ao subir à noite
no terraço
de um arranha-céus altíssimo e
aflitivo
pude tocar a abóbada noturna
e um ato de amor extraordinário
apoderei-me de uma estrela celeste.

 
Era uma noite negra
e eu deslizava
pelas ruas
com a estrela roubada em meu bolso.

 
De trémulo cristal
parecia
e era
num átomo
como se levasse
um pacote de gelo
ou uma espada de arcanjo na
cintura.

 
Guardei-a,
temeroso,
debaixo da cama
para que ninguém a descobrisse,
sua luz poré
atravessou
primeiro
a lã do colchão,
depois
as telhas,
e o telhado da minha casa.

 
Incómodos
tornaram-se
para mim
os afazeres mais comuns.

 
Sempre com essa luz
de astral acetileno
que palpitava como se quisesse
retornar para noite,
eu não podia
dar conta de todos
os meus deveres
cheguei a esquecer de pagar
as minhas contas
e fiquei sem pão nem mantimentos.

 
Enquanto isso, na rua,
se amotinavam
transeuntes, boémios
vendedores
atraídos sem dúvida
pelo insólito clarão
que viam sair de minha janela.

 
Então
recolhi
outra vez minha estrela,
com cuidado
a envolvi num lenço
e mascarado entre a multidão
passei sem ser reconhecido.

 
Tomei a direção oeste,
rumo ao rio Verde,
que ali sob o arvoredo
flui sereno.

 
Peguei a estrela da noite fria
e suavemente
lancei-a sobre as águas.

 
E não me surpreendeu
notar que se afastava
como um peixe insolúvel
movendo
na noite do rio
seu corpo de diamante.

 
    Ode a uma estrela” é um poema que integra a obra Terceiro livro das odes, publicado em 1957, e que foi traduzido para português do original “Oda a uma estrella”, que possui nove estrelas, enquanto na versão em língua portuguesa contém onze. Por outro lado, a composição vem acompanhada por belíssimas ilustrações, em folhas duplas, de modo que ela aparece numa das folhas e, na outra, predomina a ilustração. É por esta razão que existe um número diferente de estrofes nas duas versões.
    O que é uma ode? O vocábulo «ode» é de origem grega e significava «canto» (de exaltação de herói ou de um feito). No caso vertente do poema de Neruda, formalmente é composto por versos brancos e sem métrica regular, enquanto, no que diz respeito ao conteúdo, se centra na introspeção sobre o sofrimento de amor, o que está de acordo com a visão épica da existência que a ode atual busca, dado que a temática referida é universal porque aplicável a todos os homens.
    A primeira estrofe do poema coloca-nos perante um sujeito poético que se encontra aflito, à noite, num terraço de arranha-céu. Estes três versos iniciais permitem deduzir que se trata de alguém que mora numa grande cidade, habitada por muitas pessoas (a referência ao arranha-céu), mas que se sente aprisionado por essa selva de pedra. Num ímpeto de liberdade, toca a “abóbada noturna”, uma imagem poética da noite, arqueada como uma abóbada. Depois rouba, num extraordinário ato de amor, rouba uma estrela do céu.
    Na segunda estrofe, na noite negra, o sujeito poético desliza pelas ruas com a estrela roubada, que guarda no seu bolso. Chegado a casa, acondiciona-a, receoso, debaixo da cama, para que ninguém a descobrisse, no entanto o seu brilho é tão intenso que a sua luz / o seu brilho atravessa a lã do colchão, as telhas e o telhado da sua casa. A frustração surge quando o «eu» constata que o brilho da estrela torna incómodos os seus afazeres mais simples. A estrela roubada continua a brilhar intensamente, à semelhança das fagulhas que se soltam de uma soldagem, e quer retornar à noite de onde foi retirada. Este facto impede o «eu» de executar todos os seus deveres, chegando mesmo a esquecer-se de pagar as suas contas, ficando sem pão e mantimentos, isto é, a preocupação com a estrela afeta não só as questões menores da sua vida, mas também o essencial, como a alimentação. Fazendo uma leitura metafórica do poema, o sujeito poético não é feliz, dado que o que ama (a estrela como metáfora da mulher) tem vida própria e não o quer.
    Enquanto isso, na rua, aglomeram-se diferentes pessoas, todas atraídas pelo brilho incomum que sai da casa do sujeito lírico, o que torna a sua vida ainda mais complicada. Todo este tumulto à frente da sua residência leva-o a recolher a estrela, envolvê-la num lenço e sair, mascarado, com ela, para não ser reconhecido.
    O «eu» caminha em direção ao rio Verde e lança a estrela suavemente sobre as águas. E constata que não fica surpreendido com o comportamento do astro ao ser lançado ao rio: ela move o seu corpo de diamante, como um peixe insolúvel, adjetivo que tanto pode significar aquilo que não se dissolve como aquilo para o que não há solução.
    Assim sendo, podemos concluir que a estrela tem vida própria, tanto que não se adequa aos padrões atuais da vida de um homem comum; por outro lado, ela representa, para o ser que a rouba, um problema e uma fonte de inquietação e perturbação.
    Quer isto dizer que a composição poética nos fala de um homem comum (vive numa grande cidade, precisa de trabalhar ara comprar pão e mantimentos e pagar as suas contas, ou seja, é uma pessoa como outra qualquer) que, por gostar de estrelas, rouba uma e, ingenuamente, a esconde em sua casa. Porém, a estrela parece adquirir vida própria, não se adapta à vida deste homem.
    Lido metaforicamente, o poema coloca-nos na presença de um homem que, num desatino causado pela paixão, rouba do céu uma estrela, com a intenção de a ter só para si. Deste modo, Neruda suscita o tema da paixão e da possessão do amor, isto é, suscita em nós o questionamento sobre os limites do verdadeiro amor ou como são as relações entre o amante e o ser amado. No final, essa relação de posso do objeto desejado torna-se uma relação de privação com esse objeto de desejo, dado que entrega a estrela ao rio.
    Prosseguindo a leitura metafórica do poema, Neruda constrói nele uma metáfora do ser humano e das relações amorosas: o que é o ser amado em relação àquele que o ama; até que ponto se pode amar, sem que esse amor sufoque, anule, a pessoa amada; como identificar a linha ténue que separa a paixão da posse.
    Além da metáfora, o poema gira em torno da metonímia. Do alto de um arranha-céu, o sujeito poético, enlouquecido de amor, toca a abóbada noturna e apossa-se da estrela, que se faz notar sobretudo através da emissão de um brilho intenso. Por isso, o objeto roubado é comparado a diversas coisas, como a um “trémulo cristal”, a “um pacote de gelo” ou a “uma espada de arcanjo na cintura”, tal é a sua delicadeza e incandescência.
    Ao entrar em casa e guardar a estrela para que ninguém saiba que a possui, a luz que ela emite vai do micro para o macroespaço, atravessando o colchão, as telhas e saindo da casa pelo telhado. Assim sendo, os seus raios alcançam o espaço externo, apesar dos esforços do sujeito poético em esconder o objeto amado.
    Dentro desta conceção metonímica da estrela, na sexta estrofe, a estrela, ou mais precisamente a sua luz, adquire traços de personagem. Mais do que isso, personifica-se: “palpitava como se quisesse / retornar para a noite”. Ou seja, estamos na presença de uma estrela com desejos e vontades. Nesse momento, o sujeito poético apercebe-se de que ele e o objeto amado possuem interesses conflituantes: “eu não podia / dar conta de todos / os meus deveres / cheguei a esquecer de pagar / as minhas contas / e fiquei sem pão nem mantimentos”. De modo semelhante, do lado de fora da casa, amontoa-se um conjunto de pessoas, cuja atenção é despertada não pela estrela em si, mas pelo brilho que emite e que a casa não pode conter por ser tão intenso: sai pela janela da casa e chega ao espaço externo.

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