segunda-feira, 25 de setembro de 2017
domingo, 24 de setembro de 2017
"Um homem que toda a vida"
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Um homem que toda a vida
Passou fomes por querer,
Co’a muita debilidade
Pôs-se em termos de morrer.
Doutor, que de graça o via,
E co’a doença atinava,
Of’receu-lhe uns certos doces,
Para ver se o melhorava.
Obrigado (eis lhe responde
O enfermo estendendo a mão),
Dê cá... Bom será guardá-los
Para maior precisão.”
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Outro
dos alvos predilectos da sátira epigramática de Bocage é o pecado da avareza;
neste caso concreto temos o tipo do avarento que esconde a sua riqueza, não
tirando partido dela, nem mostrando algum tipo de generosidade para com os
demais.
Este
é o caso de um homem que, durante toda a vida, passou fome voluntariamente,
para não gastar o seu dinheiro e por isso ficou doente a ponto de estar em risco
de morrer. É então consultado gratuitamente por um médico que se apercebe de
que a causa da doença é a falta de alimentação, por isso oferece-lhe alguns
doces para o curar. O doente aceita mas – espanto dos espantos – decide
guardá-los “Para
maior precisão”.
Em
suma, neste epigrama a sátira de Bocage incide sobre o comportamento do homem
avarento que, posto na maior necessidade e até na iminência da morte, aferrolha
tudo a que pode deitar a mão. Este homem que poupa, avaramente, o próprio alimento
que o salvaria de morte certa, só pode ser alvo do ridículo.
sábado, 23 de setembro de 2017
"Dizem que o Caldas glutão"
Dizem que o Caldas glutão
Em Bocage aferra o dente:
Em Bocage aferra o dente:
Ora é forte admiração
Ver um cão morder na gente!”
Os epigramas
são composições poéticas breves, muitas vezes estruturadas em quadras, mas
sempre animadas pela sátira mais ou menos maliciosa, incisiva e sarcástica.
Este
epigrama tem como alvo um confrade da Arcádia, Domingos Caldas Barbosa, que se
teria excedido nas críticas a Bocage. De facto, este texto aparece como
resposta a um outro do padre Caldas, censurando a maledicência de Elmano
Sadino:
De todos sempre diz mal
O ímpio Manuel Maria;
E se de Deus o não disse,
Foi porque o não conhecia.
A
violenta resposta do poeta não se fez esperar, comparando a maledicência do
adversário a nada menos que uma investida canina.
Acrescente-se
que para a compreensão da sátira é importante ler a rubrica que muitas vezes
antecede o próprio texto poético. Neste caso, pode ler-se que o epigrama era
dedicado «A um mulato comilão que murmurava de mim».
"Já sobre o coche de ébano estrelado"
Introdução:
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O soneto é da autoria de Bocage, poeta pré-romântico do
final do século XVIII, um dos grandes sonetistas portugueses. Tendo recebido
uma formação inicial neoclássica, tendo sido sócio por pouco tempo da Nova
Arcádia, de temperamento rebelde, aderindo aos ideais da Revolução Francesa,
abandonou essa Academia e seguiu um caminho poético próprio, dando forma às
vicissitudes da sua vida e ao forte individualismo que sempre o orientou.
Desta forma, tornou-se um dos vultos do chamado Pré-Romantismo.
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Desenvolvimento:
. Tema
. Assunto
. Estrutura externa
. Estrutura interna
– 1.ª parte
– 2.ª parte
–
Articulação dos
dois momentos
. Sentimentos
. Formação arcádica
. Elementos neoclássicos e pré-român-ticos
. Recursos poético-es-tilísticos
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Neste
soneto, como noutros, é abordado o tema do desejo da morte, fruto da angústia
existencial de um sujeito poético que se revê num cenário que se costuma
denominar “locus horrendus”: um ambiente
nocturno, triste e solitário. De facto, a Noite já vai alta e o silêncio é
total, não se ouvindo qualquer ruído nem de pessoas nem de aves nem de
coisas: tudo adormeceu. Apenas ele está acordado e, consolado com o ambiente
fúnebre que o rodeia, pede ao Destino que lhe dê a morte.
O texto é constituído por duas quadras e dois tercetos
(um soneto), sendo doze versos decassílabos heróicos (acentos
dominantes nas 6.ª e 10.ª sílabas) e dois decassílabos sáficos (versos
7 e 12, com acentos dominantes nas 4.ª, 8.ª e 10.ª sílabas) e apresentando o
seguinte esquema rimático: ABBA / ABBA / CDC / DCD. A rima é toda grave
ou feminina, toante nos versos 2 e 3, 6 e 7 (“feia”/”rodeia”),
consoante nos restantes (“estrelado”/”vedado”), rica nos versos 2
e 3, 6 e 7, 9 e 11, 10 e 12, 11 e 13 (“feia”/”rodeia”), pobre nos
outros (“estrelado”/”vedado”).
Trata-se portanto de uma forma clássica que, pela sua rigidez, condiciona o
tratamento do tema em poucos momentos, articulados com lógica rigorosa. Ainda
neste parâmetro da análise, destaque para o encavalgamento ou transporte
nos versos 1 e 2, 3 e 4, 9, 10 e 11, 13 e 14, e para o ritmo, mais
lento nas quadras e mais movimentado nos tercetos.
O soneto pode dividir-se em duas partes. A primeira, correspondente
às duas quadras, é descritiva: apresenta o cenário que rodeia o sujeito. A
Natureza está imersa em profundo silêncio; por outro lado, temos a Noite,
caracterizada como “escura
e feia”, entidade mitológica que conduz uma carruagem negra, um “coche de ébano
estrelado”, elemento dominante porque condicionante de todos os
outros. Com efeito, o silêncio profundo que reina na Natureza acontece porque
a Noite vai alta e tudo dorme. Não é, pois, difícil justificar a presença dos
outros elementos do cenário como o Zéfiro, vento brando e agradável, que não
exerce a sua função, o Tejo, cujas águas adormecem, o rouxinol, ave do canto
perfeito, que não tem espaço para cantar, o mocho, ave nocturna, cortesão da
Noite, como é denominada noutros textos, até essa não faz ouvir seus pios
agourentos. Nem era preciso, pois tudo é tão solitário e silencioso que faz
lembrar a própria morte. Compreende-se por que razão a Natureza se encontra personificada:
é que o sujeito poético revê nela o seu estado de espírito, numa atitude
romântica, construindo-a à sua imagem e semelhança. A nível estilístico, é
notável o paralelismo de construção na 1.ª quadra: o verso 1 transporta-se
sobre o verso 2 e o verso 3 sobre o verso 4, criando dois segmentos
melodiosos, reforçando o paralelismo a anáfora “Nem (...) Nem (...)”. As
duas quadras formam o momento descritivo estático, salientando-se nele a
presença de grande quantidade de adjectivos, ora antepostos, ora
pospostos. De todos, deve salientar-se aquele que tem uma carga semântica
maior: profundo (silêncio). Na verdade, o silêncio é o elemento que melhor
caracteriza o ambiente físico e o ambiente psicológico. Não é sem razão que
este nome aparece repetido e domina todo o texto. A tonalidade nasal
(frequência de consoante nasais /m/ e /n/), as repetições de fonemas
consonânticos sugestivos de ausência de ruído (/s/ e /ch/), tudo se conjuga
para evidenciar de forma exemplar o estado em que se encontra o sujeito.
A 2.ª parte, correspondente aos tercetos, é
“narrativa”: acordado, o sujeito poético pede a morte, que vê prefigurada no
silêncio da Natureza. Silêncio e solidão são palavras-chave deste soneto. Esta 2.ª parte inicia-se pelo advérbio
de exclusão Só, repetido com o pronome pessoal de primeira
pessoa: “Só
eu velo, só eu”. Está justificada a localização do sujeito poético: “Neste deserto
bosque”. Deserto exterior e deserto interior, porque só assim se
compreende o seu comportamento: “... pedindo à Sorte / Que o fio, com que está
minh’alma presa / À vil matéria lânguida, me corte”. Deserto interior
reforçado com a aliteração do fonema /s/: “Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte”.
Está, pois, evidenciada a solidariedade entre os dois momentos
do soneto, que pode caracterizar-se por afinidade e por contraste. Afinidade,
porque cenário e estado psicológico se casam perfeitamente; contraste, porque
enquanto tudo dorme, o sujeito poético vigia. O cenário favorece a reflexão,
a interiorização, a expressão espontânea de sentimentos.
Enquanto a morte não chega, o sujeito poético tem ao menos
o cenário fúnebre que o consola, pois é o retrato da Morte, que é prefigurada
pela Noite. À maneira clássica, esta é uma entidade que cobre com um manto os
seres que atinge. Destacam-se dois sentimentos: horror e tristeza. O uso do determinante
demonstrativo este, esta e da aliteração do fonema
/t/ apontam o sofrimento, a mágoa e o desespero do sujeito lírico. Bem se
quer iludir afirmando que lhe dá consolação “o silêncio total da Natureza”, mas
o que ressalta no final é a expressão de um forte masoquismo, o que mascara
uma profunda angústia existencial.
Este soneto volta a manifestar a formação arcádica de Bocage,
pois o recurso a mitologia é revelador desse facto. A “Sorte” é
sinónimo de Destino, Fado, entidade que superintende, quer aos deuses, quer
aos humanos. É ele que concede às irmãs Parcas o poder de dar ou tirar a
vida. Átropos tinha nas mãos uma tesoura e entretinha-se a cortar os fios da
existência humana. Além disso, a construção perifrástica e o uso do eufemismo
são elementos exemplificadores do Neoclassicismo. A imagem do fio que
prende a existência do corpo à alma é recorrente na poesia clássica e na
sabedoria popular. O sujeito não tem nenhum gosto pela vida, caracterizando o
corpo como “vil
matéria lânguida”. À sua volta, tudo é silêncio; dentro de si, tudo é
escuridão, solidão; não pode, pois, estar sossegado como as coisas: sofre. O verbo
velar sugere sofrimento, lembrando as vigílias nocturnas e fúnebres.
Só lhe resta a morte, que resolveria todos os seus conflitos.
O texto apresenta elementos neoclássicos e
pré-român-ticos. Por um lado, a forma poética (soneto), o verso decassílabo,
a presença da mitologia (Noite, Zéfiro, Sorte), as várias perífrases
(vv. 1 e 2, 5, 10 e 11) e as personificações são os elementos
clássicos. Por outro, o tema do desejo da morte como solução para os
conflitos, o “locus horrendus”, a subjectividade, a afirmação
do indivíduo (egotismo), os sentimentos de terror e solidão
são as características românticas dominantes. Integra-se, pois, na estética
de transição denominada Pré-Romantismo. Confirma-se também a ideia de Bocage
se constituir um poeta de transição.
No que diz respeito aos recursos linguísticos, são de
considerar os seguintes, além dos que já foram tratados. A nível fónico, a rima entre Sorte e corte,
tristeza e Natureza é bastante expressiva. No primeiro caso,
aproxima palavras que traduzem o desejo do sujeito poético: a Sorte
(Destino/Fado) é quem tem nas mãos o poder de tirar a vida, através de uma
Parca; no segundo, a Natureza apresentada é necessariamente triste. Por isso,
a rima não é um mero artifício sonoro, mas aproxima palavras, fazendo a comunhão
do sentido. As aliterações existentes nos verso 5 (/ch/), 9 (/s/) e 12
(/t/) sugerem, respectivamente, a ausência do vento, a solidão do sujeito e a
acentuação da mensagem, o que comprova que houve um investimento sonoro
bastante expressivo. Além disso, ainda é nítida a tonalidade nasal que percorre
o texto e traduz a temática da tristeza. O ritmo, predominantemente
binário, casa perfeitamente com os dois pólos do discurso: o cenário e o EU;
lento nas quadras, devido ao estatismo da descrição, mais rápido nos
tercetos, devido ao comportamento do sujeito poético.
Relativamente aos aspectos morfossintácticos, como é natural, na descrição predominam os adjectivos,
que, antepostos aos nomes, adquirem cariz subjectivo; pospostos, mantêm a
objectividade. O vocabulário de índole clássica e as perífrases
(“coche de
ébano estrelado”, “Zéfiro
abafado”, “me
corte o fio”) indicam a formação arcádica de Bocage. Por outro lado,
com esse vocabulário podemos formar dois conjuntos lexicais: um ligado à
ausência de luz, outro ligado ao silêncio, realizando o “locus horrendus”. Os
verbos encontram-se no pretérito perfeito e no presente
nas quadras e no presente nos tercetos. No primeiro caso, indicam
estados passados que permanecem inalteráveis, observados pelo sujeito; no
segundo, traduzem a expressão da vontade e dos sentimentos no momento da
interiorização. De referir ainda que, na 1.ª parte, descritiva, domina a
coordenação e, na 2.ª, subjectiva, domina a subordinação, de acordo com os
dois tipos de enunciado. A anáfora nos versos 7 e 8 intensifica o silêncio
da Natureza.
A nível semântico,
comecemos por destacar as perífrases longas, de sabor clássico, em que
assentam as duas quadras e o primeiro terceto. A personificação da
Noite, do Tejo, do Zéfiro e da Sorte permitem a construção do cenário de
acordo com o estado de alma do sujeito poético, à maneira romântica. A personificação
da Morte faz lembrar a entidade que cobre com um manto os seres vivos,
roubando-lhes a luz (vestígio clássico). O eufemismo no primeiro
terceto (“...
o fio... me corte...”), recurso clássico, traduz de maneira mais suave
o desejo de morte do sujeito poético e mostra uma vez mais a formação árcade
de Bocage.
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Conclusão:
. Visão global da poesia de Bocage
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Se alguma vez, em literatura, “o estilo é o homem”,
pode afirmar-se que a vida de Bocage está registada na sua produção poética.
O seu temperamento irascível, registado no soneto “Apenas vi do dia a luz
brilhante”, a sua infelicidade amorosa expressa em tantos poemas, a sua
entrega a exageros de toda a espécie, como se pode constatar no soneto “Meu
ser evaporei na lida insana”, a saudade e o exílio, o fatalismo que o
perseguia, o ciúme atroz expresso em sonetos como “Guiou-me ao templo do
letal Ciúme”, “A loira Fílis na estação das flores”, “Há um medonho abismo,
onde baqueia”, o desejo da morte, a angústia existencial de quem não
encontrou sentidos para a vida, tudo isto faz deste poeta um bom representante
dessa estética que se irá afirmar anos mais tarde.
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