Português

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

"Rosa Tatuada", de Tennessee Williams


     A peça é antecedida por um vasto conjunto de notas de produção do autor sobre o local da ação (aldeia situada na Costa do Golfo, entre Nova Orleães e Mobile), os habitantes (maioritariamente sicilianos), a iluminação, o cenário, o céu, a religiosidade do ambiente, as personagens, os espaços interiores...

Ato I

Cena I

     Diálogo entre Serafina e Assunta (uma velha curandeira que pratica bruxaria): a primeira afirma que soube que tinha gerado novamente na própria noite da conceção, pois a meio dela acordou com uma dor ardente no seio esquerdo e viu nele a rosa tatuada do marido. Deu um grito e o esposo acordou. No entretanto a rosa desaparecera.
     Rosário tem um camião de transporte de bananas, mas por baixo destas transporta contrabando, com o qual obtém tanto dinheiro que em breve Serafina não necessitará mais de trabalhar como costureira. Por outro lado, aquela será a última noite em que fará contrabando. Depois comprará um camião de 10 toneladas e trabalhará por conta própria, na América, esperando-a uma nova vida com todas as comodidades e modernismos tradicionalmente associados ao estilo de vida norte-americano.
     Entra em cena Estelle, que lhe vem pedir que faça uma camisa para o "seu homem" para o dia seguinte, data em que fará anos que se conheceram. Aquela acaba por ficar sozinha na sala e pega na fotografia de Rosário, atirando-a para dentro da mala.
     Esta cena inicial (que não obedece ao esquema tradicional de divisão das peças teatrais) está prenhe de referências a crenças, maus olhados... e de presságios de tragédia.

Cena II

     De madrugada, várias personagens agrupam-se em frente à casa de Serafina para lhe comunicar a morte de Rosário.

Cena III

     Serafina perde o bebé e encontra-se muito débil. Rosário foi baleado e o seu camião sofreu um acidente e começou a arder, pelo que o seu corpo foi carbonizado. Ora, precisamente o destino do corpo gera um conflito religioso: Serafina quer cremá-lo, porém o padre De Leo opõe-se, argumentando que se trata de um ato pagão, pois a mulher deseja a cremação para conservar as cinzas em casa.
     Surge novamente em Estelle, afinal amante de Rosário, com um ramo de flores para se despedir do corpo, mas é agredida pelas carpideiras.

Cena IV

     Uma manhã de julho, três anos depois: um grupo de mães protesta em frente à casa de Serafina, indignadas com a sua demora na entrega dos vestidos de formatura das filhas.
     Rosa, sua filha de 12 anos, tem um namorado, um marinheiro que conheceu no baile do liceu, por causa do qual a mãe lhe fecha os vestidos, para que a filha não possa sair de casa, daí que ande sempre nua e grite pela janela às mulheres que deem um recado a Jack.
     Ouvem-se gritos dentro de casa e Serafina aparece à porta, desmazelada, suja, desarranjada: Rosa cortou o pulso. No entanto, tratou-se apenas de um corte superficial. A pedido de Miss York, uma velha professora, Serafina (que, após a morte do marido, não mais vestiu um vestido e saiu à rua e conversa com as cinzas dele como se fosse vivo) entrega-lhe a chave do local onde estão guardados os vestidos da filha, que faltou inclusive aos exames por causa da loucura da mãe, motivada pelo pedido de Rosa para que permitisse que Jack viesse a sua casa, para  a mãe o conhecer.
     Serafina, no estado deplorável em que surgiu à porta, "faz uma cena" em frente ao liceu que envergonha Rosa, afinal uma jovem de 15 anos, meiga, doce e excelente aluna.

Cena V

     Bessie e Flora, dois "espantalhos de meia idade" devassos, vão buscar uma blusa à modista, que não a acabou, todavia, por ter estado ocupada com os vestidos para o baile e diz não ter tempo no momento para a fazer, pois tem de ir assistir ao baile da filha. No entanto, acaba por terminar a peça de vestuário porque não tem licença e as duas mulheres ameaçam denunciá-la por essa ilegalidade. É evidente a crítica do dramaturgo, centrada na denúncia da exploração e das deficientes condições de vida dos imigrantes italianos nos EUA).
     Serafina viveu os doze anos de casamento e os três de viúva convencida da fidelidade do marido e mostra nesta cena a crença num amor único e absoluto, um amor idealizado mas verdadeiro. Flora, para a humilhar, declara que Rosário foi amante de Estelle durante mais de um ano. Serafina reage, expulsando-a à vassourada.

Cena VI

     Esta cena dá conta do estado de espírito de Serafina após a facada recebida: indiferença, alheamento, estupefacção, desilusão com o mundo.
     Várias outros acontecimentos têm lugar nesta cena: o primeiro encontro entre Serafina e Jack; a descrição do baile, um grande triunfo de Rosa (recebeu o diploma, um prémio e recitou versos); um diálogo a sós entre Jack e Serafina (no qual é visível a preocupação com questões de honra feminina, com questões religiosas, a moral tradicional e conservadora siciliana, em contraste com um certo liberalismo da sociedade americana); o contraponto entre a oferta do presente de formatura e o desinteresse e alheamento de Rosa pela oferta, por causa do chamamento para o piquenique.
     A cena termina com Serafina a obrigar Jack a ajoelhar frente a Nossa Senhora e a jurar respeitar a honra da filha.


Ato II

Cena única

     Serafina surge novamente desmazelada, suja, despenteada, apenas em roupa interior, e o padre De Leo adverte-a de que ergueu um altar idólatra em casa e adora uma caixa de cinzas, daí ter-se confinado a uma situação de (auto)reclusão e abatimento. Faz-lhe notar que ainda é uma mulher jovem, capaz de refazer a sua vida. Ela contrapõe o seu amor dedicação, exclusivo, diariamente expresso através de gestos apaixonados, ao das outras mulheres, que não sabem cativar os seus homens, não conservam a chama permanentemente acesa e por isso os perdem para as amantes. É esta a razão por que não consegue crer na traição de Rosário. De seguida, questiona o padre sobre se o marido, durante a confissão, lhe terá revelado o nome da amante, ao que ele contrapõe precisamente o segredo do ato confessional.
     Posteriormente, entra em cena Álvaro, um rapaz de 25 anos, simpático e um pouco apalhaçado e desajeitado. Vem discutir com um caixeiro-viajante que tenta impingir um artigo a Serafina por o ter atirado para a valeta e o insultado. O desprezo pelos estrangeiros fica bem patente no tratamento de Macarroni e Spaghetti com que o caixeiro presenteia Álvaro. Será aquele o responsável pelo despedimento posterior deste, ao fazer queixa dele ao patrão.
     Álvaro entra em casa de Serafina por causa da joelhada que o caixeiro lhe deu, acabando ambos a chorar. Ela, notando-lhe o casaco roto, oferece-se para lho coser. O rapaz mostra-se preocupado com as ameaças do caixeiro, já que tem três pessoas cujo sustento depende de si. Além disso, não estão naturalizadas nem têm cartão de cidadão, e o patrão já o tinha advertido de que o despediria se voltasse a envolver-se em zaragatas.
     Serafina repara então em duas características de Álvaro que o assemelham ao ex-marido - o corpo e o facto de conduzir um camião de transporte de bananas - e a partir daí desenvolve-se um diálogo pleno de subentendidos em que fica bem patente um desejo latente que os vai aproximando.
     Por fim, a mulher confidencia-lhe o episódio da rosa tatuada na noite em que concebeu o filho abortado e Álvaro telefona ao patrão, para lhe justificar o atraso, mas acaba despedido em razão da queixa do caixeiro-viajante. Por falta de luz natural, Serafina não tem possibilidade de coser o casaco, por isso empresta-lhe uma camisa cor-de-rosa que lhe tinha sido encomendada por Estelle para Rosário. Os dois acabam por aprazar um encontro para essa noite.


Ato III

Cena I

     Serafina surge em cena envergando um vestido e uma rosa enfeitando o cabelo. Também Álvaro se apresenta bem arranjado, com uma caixa de chocolates e uma rosa tatuada no peito, facto que causa grande perturbação nela. O clima amoroso esfria quando, sem se aperceber, ele deixa cair do bolso um preservativo.
     O diálogo prossegue tumultuoso e é chamado à colação o nome de Estelle. Ato contínuo, a mulher segura uma faca e chama um táxi para ir matar a ex-amante de Rosário, contudo Álvaro Mangiacavallo acalma-a, retira-lhe a faca e telefona a Estelle, solicitando-lhe a confirmação da relação adúltera com o falecido.
     Serafina fica possessa de início. Depois toma uma resolução: diz-lhe que finja ir-se embora, leve o camião para longe do olhar da vizinhança e, seguidamente, regresse e entre pela porta das traseiras, que ela deixará aberta.
     A cena termina com o início de uma noite de amor entre ambas as personagens.

Cena II

     Rosa e Jack dialogam enquanto escutam os gemidos de Serafina no leito amoroso com Álvaro, pensando que a mãe está unicamente a sonhar a prática do ato sexual com o pai. Rosa deseja que o marinheiro faça amor consigo, mas ele recusa, em virtude da idade dela, da promessa feita a Serafina perante a imagem de N. Senhora e também da longa viagem que está prestes a empreender. A jovem marca um encontro entre os dois para a tarde seguinte na estação de autocarros.

Cena III

     Rosa dorme no sofá apenas em combinação. Álvaro depara aí com ela e fica fascinado com a beleza da jovem. Fala alto sem se aperceber, acordando-a, e a rapariga grita. Serafina acorre de imediato e bate furiosamente nele.
     Álvaro acaba escorraçado pela mulher, que inventa uma série de mentiras para se desculpar perante a filha. Rosa, porém, não se deixa iludir e chega a tratar a mãe de forma cruel.
     A jovem sai ao encontro de Jack. Entra em cena Assunta, que encontra a urna das cinzas no chão, partida, mas delas nada - o vento levou-as.
     A voz de Álvaro faz-se ouvir, o que provoca os risos trocistas das vizinhas de Serafina por causa de estar sem camisa. Ela vem à janela e atira-lhes a camisa cor-de-rosa, que as mulheres, rindo, vão passando de mão em mão.
     Em cena ficam apenas as duas mulheres. Serafina diz a Assunta que acabou de sentir o ardor da rosa no peito, o que significa que gerou novamente. De seguida, caminha na direção da voz de Álvaro, gritando-lhe: "- Vengo, vengo, amore!".
     Esquecido (definitivamente) o amor obsessivo e doentio por Rosário, Serafina renasce para o amor e para a vida.

Anexo

     A palavra anexo é usada de forma errada com alguma frequência.

     Quando ela surge numa frase como adjetivo com função adverbial, não se constrói com a preposição em: "Segue anexo o documento solicitado.".

'Ciclo vicioso' ou 'círculo vicioso'?

     A expressão correta é círculo vicioso.

     De facto, ela designa uma sucessão de acontecimentos que se repetem e voltam sempre ao ponto inicial.

     Por sua vez, "ciclo" designa uma série de fenómenos que se sucedem e repetem de forma ordenada, mas não necessariamente circular.

"Joe le Taxi", Vanessa Paradis



1987

Roubo de "e-mail"?


     Aparentemente, nada está fora do alcance de um bom hacker.
     Se é verdade que ninguém gosta de ser confrontado com uma devassa, muito menos de algo tão importante como o e-mail.
     Troy Hunt, um especialista em segurança na Internet, criou um sítio através do qual é possível verificar se o nosso e-mail foi hackeado.
     Para saber se tal aconteceu, basta aceder ao sítio (clicar no link acima) e colocar nele o e-mail e ficar-se-á a saber de imediato. Caso se pretenda ser avisado em caso de roubo, basta subscrever as notificações e receberemos um e-mail a avisar de que fomos hackeados.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Regência do nome "rastreio"

1. O nome «rastreio» rege a preposição «de», dado que deriva do verbo «rastrear», que é transitivo. Sucede que os nomes derivados de verbos (nomes deverbais) têm geralmente a sua regência construída com aquela preposição:
          - O rastreio do cancro é muito importante.

2. «Rastreio» pode também reger a preposição «a»:
          - A importância do rastreio ao cancro do pulmão é ignorada pelos fumadores.

     O uso desta preposição neste caso deve-se ao facto de subentender «o rastreio (que é feito) a alguma coisa».

Postal de Natal (XXVI)


Discurso e gramática no 'Livro do Desassossego'

1. O Livro do Desassossego é uma sucessão de fragmentos desconectados, em que a sequência da paginação não é indicativa da ordem de leitura. No entanto, Pessoa atribui-lhe a designação de «livro».
Mas um «livro», no sentido comum, é um macrotexto. Como tal, seria de esperar encontrar aí uma malha complexa de tópicos entrosados, em progressão rumo a uma conclusão.
Ora, o Livro do Desassossego tem reconhecidamente um carácter diarístico – mais marcado numa fase de redação tardia (a partir de 1930) e, portanto, o que temos é representação fragmentária, desordenada, heterogénea de um mundo interior.
Este é um «livro» como um diário é um livro, um livro de anotações. Mas o que é importante notar é a conformidade desta fragmentação do discurso com a própria representação do eu (ou dos vários eus).

Há algumas passagens de carácter metatextual em que isso mesmo é explicitado:
. «(…) eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também» (p. 105).
. «Imperfeito» significa «não acabado»/«não terminado»/«incompleto»: discurso e sujeito representado são uma e a mesma coisa.
. «Este livro é um gemido» (p. 333).
. «E pergunto (...) de que me serviu encher tantas páginas de frases em que acreditei como minhas, de emoções que senti como pensadas, de bandeiras e pendões de exércitos que são, afinal, papéis colados com cuspo pela filha do mendigo debaixo dos beirais» (p. 353).

Paralelamente, não é difícil fazer o levantamento de trechos que apresentam uma forte coesão interna: a uma frase genérica (em jeito de mote), que encabeça um fragmento, segue-se uma elaboração (paráfrase), onde tomam assento diferentes atos de composição textual:

. explicação/exemplificação:

– ativação de conector: «O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela» (p. 174).

– retoma por repetição lexical ou recuso a expressões correferenciais: «O entusiasmo é uma grosseria./A expressão do entusiasmo é, mais do que tudo, uma violação dos direitos da nossa insinceridade. (...) Exteriorizar emoções é mais persuadirmo-nos de que as temos do que termo-las» (p. 200).

– retoma através de quantificadores universais: «Agir é exilar-se. Toda a ação é incompleta e imperfeita» (p. 274).

. exemplificação/particularização: «Conviver é morrer. Para mim, só a minha autoconsciência é real; os outros são fenómenos incertos nessa consciência» (p. 198).

. reorientação: «A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. (...) Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio» (p. 239).

. questionação: «A renúncia é a libertação. Não querer é poder./Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado?» (p. 132).

É exatamente por aqui que se pode entrever alguma unidade macroestrutural: não tanto pela recorrência da estrutura interna de cada trecho, como referi, mas pelas intercorrespondências de crenças e estados (contradições) de alma, como sejam a abdicação da vida e a vivência pelo sonho, a gratuitidade e o poder gerador da escrita, a consciência de si até à autoanulação: «Sou uma prateleira de frascos vazios» (p. 179).


2. Vale a pena, então, debruçarmo-nos sobre o papel destas máximas, que será o de marcação ou separação de cada uma desses fragmentos.

O enunciado genérico redime sob um conceito único características e factos comuns observados em múltiplos objetos singulares e, ao ser proferido, estende esse conceito a uma classe de objetos possíveis.
Atendendo à realização linguística do enunciado genérico, há a assinalar as seguintes características:

• do ponto de vista do léxico:
- seleção de nomes comuns abstratos;
- nomes massivos;
- nomes de carácter hiperonímico;
- expressões de referência a espécie;

• do ponto de vista da sintaxe e da semântica:
- processos de aspetualização (P é sempre verdadeiro);
- dominância do presente simples que faculta a transição de um evento para um estado iterativo, habitual ou estativo (a importância dos enunciados estativos está no facto de estes, ao serem construídos na base de um certo número de ocorrências de um evento, permitem atribuir qualidades);
- advérbios frequenciais;
- ausência de artigo definido; este, quando ativado, implica necessariamente referência a espécie;
- processos de modalização (P é necessariamente verdadeiro);
- modalidade deôntica: produção de um enunciado que se apresenta como incontestável.
- processos de quantificação (X vale por X);
- quantificadores universais;
- pronomes indefinidos;
- frases não finitas;
- 1.ª pessoa plural.

• do ponto de vista da pragmática:
- o carácter normativo: a frase genérica não apela a uma justificação da ordem da estatística; o enunciado genérico tem força de norma.

Alguns exemplos:

. "Tudo o que dorme é criança de novo." (p. 92);
. "Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre." (p. 408);
. "Todos os problemas são insolúveis." (p. 123);
. "Nunca amamos alguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém." (p. 125);
. "A alma humana é um abismo obscuro e viscoso (...)" (p. 226);
. "A força sem a destreza é uma simples massa." (p. 229);
. "A arte é um esquivar-se a agir (…) " (p. 210);
 " A fé é o instinto da acção." (p. 260);

. "Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã." (p. 403);

. "Conviver é morrer." (p 198);
. "Explicar é descrer." (p.199);
. "Escrever é esquecer." (p.128).

. "(…) a gramática é um instrumento, e não uma lei." (p. 104);
. "Sem sintaxe não há emoção duradoura. A imortalidade é uma função dos gramáticos." (p. 210).


3. Algumas destas passagens acusam uma reflexão profunda sobre a língua - a que Pessoa/Soares chama de "psicologia verbal" (p. 94). Esta reflexão percorre vários domínios.

. Fonética:
- " Tenho escrito frases cujo som, lidas alto ou baixo - é impossível ocultar-lhes o som - é absolutamente o de uma coisa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente." (p. 158);
- "As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas." (p. 229);
"A palavra é completa vista e ouvida." (p. 231).

. Sintaxe:
. "Há uma relação entre a competência sintática, pela qual se distingue a valia do senão, do mas, e do porém, e a capacidade de compreender quando o azul do céu é realmente verde, e que parte de amarelo existe no verde azul do céu." (p. 210);
. " (…) o que há de mais antipático nas gramáticas é o verbo, os verbos... São as palavras que dão sentido às frases... Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos... Os verbos!... Um amigo meu que se suicidou - cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo - tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir o verbos..." (p. 304).
É importante notar que o verbo é a categoria gramatical que apreende linguisticamente um dado estado de coisas como um processo: este dinamismo é essencial à constituição de um enunciado. Para além disso, o verbo, sendo a palavra que mais varia, é fulcral no estabelecimento de nexos coesivos com outros elementos da frase e com outras frases.

. Norma e criação linguística:
- "Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma norma. É certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso, porém, não sou diferente dos outros. (...).
      A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. (...)
      Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões. Conta-se de Sigismundo, Rei de Roma, que tendo, num discurso público, cometido um erro de gramática, respondeu a quem dele lhe falou, "Sou Rei de Roma, e acima da gramática." E a história narra que ficou sendo conhecido nela como Sigismundo "super-grammaticam". Maravilhoso símbolo! Cada homem que sabe dizer o que diz é, em seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e a alma é ser-se." (pp. 103-105).

. Semântica/referencialidade:
- "Ser uma coisa é ser objecto de uma atribuição." (p. 83);
- "Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver." (p. 94).

. Textualidade:
- "A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar." (p. 126);
- "Narrar é criar, pois viver é apenas ter vivido." (p. 163).

Uma narrativa é um texto de orientação presente - passado, regido por nexos temporais-causais. A narrativa não vive só representação da ação, mas sobretudo da criação de referência. Qualquer contador de histórias tenta fazer vingar a ordem sobre a sucessão aleatória de fenómenos. Isso deve-se à alquimia fundamental de transformação do casual em história, ou seja, num esquema de significação inteligível totalizante. A ocorrência singular transforma-se em episódio; constitui-se uma urdidura complexa onde agentes, objetivos, meios, circunstâncias e resultados se harmonizam num todo de significação.


3.1. Há também a relevar outras passagens, que cruzam língua, ideologia, cultura, cognição e arte.

• A produção discursiva enquanto ato interpretativo e criativo que desvela a identidade do indivíduo:
- " Não sinto, e a morte de quem amasse far-me-ia a impressão de ter sido realizada numa língua estrangeira." (p. 134);
- "Estremeço se dizem bem. (...) Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. (...) "Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse." (p. 230-231);
- "não sei escrever porque não sei ser." (p. 310).

• Expressão linguística e ideologia:
- "Nada me pesa tanto no desgosto como as palavras sociais de moral. Já a palavra "dever" é para mim desagradável como um intruso. Mas os termos "dever cívico", "solidariedade", "humanitarismo", e outros da mesma estirpe, repugnam-me como porcarias que despejassem sobre mim de janelas." (p. 161).

• A língua como fonte de cultura:
- "As civilizações parece não existirem senão para produzir arte e literatura: é, palavras, o que delas fala e fica." (p. 186).

• O homem caracterizado pela faculdade de linguagem:
- "O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer." (p. 185);
- "o que não se pode suportar é sonhar uma coisa bela que não seja possível conseguir em ato ou palavras." (p. 251).


3.2. Esta reflexão sobre a língua é exercitada na própria execução textual do Livro do Desassossego. Há vários momentos que são puros exercícios de estilo ou demonstrações da arte de dizer:

• no plano do léxico:
- "gemedoramente" (p. 265);
- "interiorice" (p. 286);
- "escriturantemente" (p. 310);
- "incompreendedores" (p. 326);
- " delírio intersticiado";
- "Outragem" (p. 413);
- "dramatistas" (p. 450).

• no plano da morfossintaxe:
- "Não durmo. Entre-sou." (p. 245);
- "ubiquito-me" (p. 261);
- "imperfeiçoa-se" (p. 279);
- "retrovei-me" (p. 282);
- "escacharão revoltas, turbilhonarão festas" (p. 289);
- "absurdemos a vida" (305);
- "ergo-me de pensar" (p. 320);
- " Nem sei hoje que porto era, porque ainda nunca lá estive." (p. 444).

• no plano do texto/discurso:
(ensaio de elaboração de um texto informativo /explicativo – uma definição)
- "A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstrata das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembramos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a definição ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma." (p.128).


Afinal, as máximas só têm para nos dar aquilo que nós lá pusermos. A máxima "A minha pátria é a língua portuguesa" só diz alguma coisa a quem souber o que está à volta dela e souber (re)conhecer aí o Livro do Desassossego.


* Texto-base sobre o tema de emissão do programa Páginas de Português

Autora: Ana Martins


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...