● Assunto: diálogo entre Madalena e Manuel de Sousa, durante o
qual aquela o tenta demover da decisão de se mudarem para o palácio de D. João
e este se mostra inabalável.
● Caracterização
das personagens
▪ Manuel
de Sousa:
- sempre respeitou D. João de Portugal;
- não teme o passado;
- sereno e decidido (observe-se a sua linguagem);
- forte;
- patriota: “Há de
saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal.” (pleonasmo);
- amor à pátria e à
liberdade;
- desrespeito pelos
argumentos da esposa, que considera “caprichos”, “agouros”, “vãs quimeras de
crianças”, preferindo magoá-la a esquecer os seus princípios;
- inabalável e
firme nas suas decisões;
- crente em Deus: “Não
há senão o temor a Deus”;
- ironia das
repetições dos pronomes num discurso duplo para o espectador: “E o presente, esse
é meu, meu só, todo meu…”;
- é o modelo do
herói clássico:
. age segundo a razão;
. orienta-se por valores aceites como universais:
- a honra cavalheiresca;
- o culto do dever;
- a lealdade;
- o patriotismo;
- a liberdade.
▪ D.
Madalena:
- obediente ao
marido: “eu nunca me opus ao teu querer, nunca soube que coisa era ter outra
vontade diferente da tua; estou pronta a obedecer-te sempre, cegamente, em tudo”;
- amargurada e
angustiada;
- aterrorizada por
constantes agouros e pelo passado: “… que vou achar ali a sombra despeitosa de
D. João, que me está ameaçando com uma espada de dous gumes… que a atravessa no
meio de nós, entre mim e ti e a nossa filha, que nos vai separar para sempre…”;
- gradação
crescente e hipérbole dos seus temores – menciona todas as preocupações e
profetiza mesmo a morte: “(…) a violência, o constrangimento de alma, o terror
(…) viu ser infeliz, que vou morrer (…) sem que todas as calamidades do mundo
venham sobre nós.”;
- convicta, até ao
final, de que consegue demover o marido;
- é o modelo da
heroína romântica:
. vive obcecada pelos fantasmas do passado;
. age pelo coração, pelo sentimento.
Concretiza-se nestas cenas a ideia de que, em Madalena,
a contradição entre a felicidade aparente e a desgraça íntima revela uma
consciência moral atormentada pela imagem sempre obsessivamente presente de D.
João, mordida pelo remorso proveniente da consciência de pecado. Motivações de
ordem psicológica e moral profundamente enraizadas na psicologia desta
personagem, movimentada dentro do quadro de uma sociedade cristã, onde o
matrimónio é um vínculo indissociável que só a morte poderá quebrar, conduzem a
reações e ao comportamento desta figura, cheia de ambiguidades, tão rica, tão
modelada, “mulher e muito mulher”, forte no amor, na paixão por Manuel de
Sousa, fraca perante os agouros, os presságios, os indícios de “uma grande
desgraça” iminente, terna, lutando até ao fim pela felicidade, procurada mas
nunca alcançada plenamente, rendida contra vontade perante o irremediável
Destino que a destrói, liquidando todos os sonhos de felicidade neste Mundo,
junto do homem que amou. As reticências são uma abertura pela qual os
espectadores observam o seu íntimo conflito de consciência.
NOTAS:
|
1.ª) Existe um contraste nesta cena entre a linguagem
serena, decidida, de Manuel de Sousa e a de D. Madalena, hesitante, titubeante,
emotiva e excitada. Estão frente a frente dois mundos: o universal e o
individual; estão frente a frente dois tempos: o presente e o passado; um terá
de vencer. Ela tem um discurso sentimental, marcado por emoções violentas. De
acordo com a época em que vive, é submissa ao marido, apelando ao seu coração
para o dissuadir, mas ele tem um discurso racional, mostrando-se forte e
seguro, impondo a sua decisão, baseado em argumentos sólidos.
2.ª) As duas personagens vivem, pois, um conflito
dominado pelo tempo. Neste campo, a palavra caprichos tem um significado
diferente para ambos. Para Manuel de Sousa, trata-se de uma teimosia
incompreensível; para D. Madalena, trata-se de uma questão de vida ou de morte,
um dilema fatal. Um minimiza a situação, o outro empola-a.
3.ª) Manuel de Sousa desvaloriza os argumentos da
esposa. De facto, D. Madalena argumenta com base na emoção, condicionada pelo
medo e pelo terror de que a figura de D. João interfira na felicidade da
família. Os seus argumentos são óbvios: pressente que não vai ser feliz e
pressente que irá encontrar, na outra casa, a sombra despeitosa de D. João. O
marido considera que esta argumentação não é razoável, tratando-se de um mero
capricho, causado pela “fraqueza de acreditar em agouros”. Pelo contrário, ele
mostra ser racional e pragmático. No final, chama D. Madalena à razão e
lembra-lhe a sua condição e as responsabilidades que tem, o que implica que
tenha um comportamento digno e firme, visto que a situação assim o exige.
4.ª) Os argumentos de Manuel de Sousa para contraditar a
esposa e afastar os seus receios são os seguintes:
- não há outro
lugar para onde ir, de repente;
- não lhe custa
viver onde viveu D. João com D. Madalena;
- ela não deve
acreditar em agouros; a única crença que deve ter é em Deus;
- nada tem a temer
porque nunca pecou;
- não deve recear a
perseguição por parte da alma de D. João.
5.ª) A afirmação de Manuel de Sousa de que “não há
espectros que nos possam aparecer senão os das más ações que fazemos” significa
que apenas se devem temer os erros que se cometem conscientemente e mostra que
desconhece a motivação profunda de D. Madalena para recusar mudar para o
palácio de D. João.
6.ª) A alternância de tratamento de D. Madalena (senhora
/ tu) explica-se assim: no primeiro caso, realça-se a sua condição social –
Manuel de Sousa pretende mostrar severidade para chamar a sua mulher à razão e
aos seus deveres de membro da aristocracia; no segundo, a sua situação de
esposa – ele manifesta ternura e compaixão pelo sofrimento da mulher (“Minha
querida”).
7.ª) Na sua fala final, Manuel de Sousa reitera a sua
intenção de dar uma lição aos tiranos e um exemplo ao povo, afirmando que se
tratará de algo que os há de «alumiar». Este verbo pode ser interpretado
de duas formas: por um lado, com o sentido de “dar luz”, revelando a decisão de
incendiar o próprio palácio (cena XI); por outro, com o sentido conotativo de “esclarecer”,
como um incentivo à oposição e à recusa da submissão e tirania.
8.ª) A frase “Há de saber-se no mundo que ainda há um
português em Portugal” significa que nem todos os portugueses aceitaram o
domínio filipino e explica a insurreição de Manuel de Sousa, bem como o seu
gesto de rebeldia e desobediência.
9.ª As figuras dos esposos apresentam traços
psicológicos que se opõem claramente:
Manuel
|
Madalena
|
|
- Razão
- Honra
- Fidelidade ás suas ideias
- Firmeza
- Patriotismo
- Luta pela liberdade
e pela independência
|
- Coração
- Temores e
agouros permanentes
- Pressentimentos
fatais
- Fragilidade
- Descontrolo emocional
|
● Elementos
trágicos (cenas 7 e 8)
▪ Agón
de D. Madalena:
- com Manuel de Sousa:
Manuel de Sousa, no regresso de Lisboa, resolve
incendiar o seu palácio, para não hospedar os governadores Luís de Moura, o conde
do Sabugal, o conde de Santa Cruz, “que tomaram este incargo odioso… e vil, de
oprimir os seus naturais em nome dum rei estrangeiro”. O arcebispo já estava
alojado no convento dos domínicos de Almada.
Tomando esta atitude dos governadores como opressão,
prepara-se para dar “uma lição aos nossos tiranos que lhes há de lembrar,… um
exemplo a este povo que os há de alumiar”, numa frase ambígua e profética. Para
não “sofrer esta afronta”, diz, “é preciso sair desta casa”.
D. Madalena interroga-se, aterrada, diante do
inevitável (voltar de novo para o palácio onde vivera com D. João), acerca do
novo local de habitação. É a partir desta premente necessidade de mudar de
residência que se manifesta o conflito de D. Madalena com Manuel de Sousa. As
razões de D. Madalena são óbvias:
1.ª) “a violência,
o constrangimento de alma, o terror com que eu penso em ter de entrar naquela
casa”;
2.ª) “parece-me que
é voltar ao poder dele, que é tirar-me dos teus braços, que o vou encontrar ali”;
3.ª) “vou achar ali
a sombra despeitosa de D. João, que me está ameaçando com uma espada de dous
gumes… que a atravessa no meio de nós, entre mim e ti e a nossa filha, que nos
vai separar para sempre”;
4.ª) “sei decerto
que vou morrer naquela casa funesta, que não estou ali três dias, três horas,
sem que todas as calamidades do mundo venham sobre nós”.
Por fim, um pedido ansioso:
5.ª) “Meu esposo,
Manuel, marido da minha alma, pelo nosso amor to peço, pela nossa filha… vamos
seja para onde for, para a cabana de algum pobre pescador desses contornos, mas
para ali não, oh, não!...”.
Ouvem-se as lágrimas, sente-se o sofrimento íntimo e
atroz nestas palavras proféticas, dolorosas e ambíguas, carregadas de duplo
sentido, cheias de motivações profundas, claras apenas para D. Madalena, só
obscuras para Manuel de Sousa, desconhecedor do mistério e do segredo nelas
contido.
Por isso, Manuel de Sousa, a princípio, interpreta
esta repugnância como «capricho» bem feminino, e leva-a à conta de «fraqueza de
acreditar em agouros». Se o coração e as mãos de D. Madalena «estão puras»,
colo ele crê, em sua boa fé, então «não há espectros que nos possam aparecer».
Espectros só os das «más ações». Tudo isso são «quimeras de criança». Por fim,
chama-a à razão e lembra-lhe as responsabilidades que ela tem, por si e pelos
antepassados: «Vamos, D. Madalena de Vilhena, lembrai-vos de quem sois e de
quem vindes, senhora…».
Vencida, mas não convencida, nada mais adiantará
para D. Madalena perante o irremediável: incendiado o palácio de Manuel de
Sousa, vê-se forçada, muito a contragosto, a mudar de residência, a regressar a
casa de D. João de Portugal.
- com D. João de
Portugal: manifesta-se na relutância de voltar a viver sob o mesmo teto em que
fora (não o era ainda?) esposa de D. João, e nas razões que apresenta (I, 7 e
8).
▪ A presença do Destino, que estabelece um clima de fatalidade que paira sobre as personagens.
▪ Os agouros e pressentimentos de destruição e morte, como o da espada, que
sufocam D. Madalena.
▪ O pathos de D. Madalena
● Características
românticas
. crença em Deus;
. nacionalismo e patriotismo;
. interioridade / sensibilidade;
. adequação da linguagem às personagens:
coloquialidade e emotividade – reticências, pausas, exclamações, interjeições,
repetições;
. Manuel de Sousa representa o herói romântico que
luta pela liberdade e pela pátria, contra a tirania;
. D. Madalena é a figura romântica da mulher dominada
pelo sentimento (medo, culpa, agouros, terror…).