● Assunto
O Romeiro, na função de simples mensageiro portador de um recado, é
admitido à presença de Frei Jorge e de D. Madalena, logo por ele identificada (II,
13) como «a mesma» a quem desejava falar. Esta fala do Romeiro pode ter
dois sentidos: aquela que dizeis ser ou aquela que eu conheço muito bem.
Obviamente, é o primeiro sentido que D. Madalena e Frei Jorge terão entendido.
● Comentário
global da cena
Seria esta
personagem uma presença pacífica, se não fossem certas particularidades únicas e
excecionais, reveladas pelas palavras e pelas atitudes do Romeiro, que o dão a
conhecer como autêntica personagem e não apenas como um mensageiro qualquer.
Começa por se afirmar como um português que vem dos Santos Lugares, após 20 anos
aí passados. Mas logo as suas palavras e atitudes patenteiam uma inquietante
luta verbal, uma presença perturbadora:
"Queria rezar e meditar nos mistérios da Sagrada Paixão que ali se
obrou... e as paixões mundanas e as lembranças dos que se chamavam meus segundo
a carne travavam-me do coração e do espírito, que os não deixavam estar com
Deus, nem aquela terra que é toda sua".
Os
sofrimentos do Romeiro, recalcados durante 20 anos, eram provocados pelas
lembranças da esposa. Pois quem seriam os que se "chamavam meus segundo a
carne" senão a própria esposa? Não declara ele a Frei Jorge que "não
tem filhos"? E logo acrescenta: "A minha família... Já
não tenho família". A amargura perante a triste realidade que veio
encontrar está toda contida naqueles dois advérbios.
D. Madalena,
compassiva, lembra-lhe que "sempre há parentes, amigos...", ao que o
Romeiro rapidamente retorque: "Parentes!... Os mais chegados, os que eu me
importava achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com
ela: hão de jurar que me não conhecem". E a verdade é que D. Madalena,
frente ao primeiro marido, dialogando com ele, não o reconhece, nem sequer pela
voz. Se o que lhe importava achar eram os parentes mais chegados e estes
estavam reduzidos à esposa, então a censura, na maneira de ver e sentir do
Romeiro, ajustava-se perfeitamente à realidade: D. Madalena contara com a morte
de D. João, fizera a sua felicidade com ela, isto é, casara-se segunda vez por
se julgar viúva. E desta vez com o homem que sempre amou, desde que o viu pela
primeira vez. Conclusão lógica: havia de jurar que não o conhecia.
D. Madalena,
porém, parece anestesiada: nada vê, nada sente, nada compreende. E a cegueira é
tão profunda que nem dá conta de se condenar pelas suas próprias palavras: "Haverá
tão má gente... e tão vil, que tal faça?" A resposta do Romeiro é rápida e
cortante: "Necessidade pode muito. Deus lho perdoará, se puder!". É
mais um golpe certeiro no mais profundo da alma de D. Madalena, que, no
entanto, o julga apenas resultado de "juízos temerários".
Oferece-lhe,
então, D. Madalena "amparo e agasalho", promete-lhe proteção, sua e
do marido. O Romeiro, a estas palavras, ofende-se, diante de tantos oferecimentos,
sublinhados com a palavra marido.
Marido, ali, em sua própria casa, para a sua própria esposa, era ele; não
Manuel de Sousa, o intruso. D. Madalena pede-lhe perdão, se o ofendeu. A
resposta do Romeiro fere novamente como punhal afiado: "Não há ofensa
verdadeira senão as que se fazem a Deus. Pedi-lhe vós perdão a Ele, que não vos
faltará de quê". Torna D. Madalena: "Não, irmão, não decerto. E Ele
terá compaixão de mim", ao que o Romeiro responde: "Terá...".
Ora, este futuro dubitativo
significa que, no entender do Romeiro, Deus não perdoará à esposa que o abandonou
e traiu. E isto dito frontalmente, cara a cara. Assim o terão compreendido Frei
Jorge, que, diz a didascália, «corta a conversação».
De facto, a
conversação, o diálogo, já tinha ido muito longe entre as duas personagens. Mas
nem deste modo D. Madalena compreende, não obstante ficar malferida, neste
começo nada prometedor. Frei Jorge corta a conversação e ordena ao Romeiro que
dê já
o recado àquela dama. D. Madalena, procurando ganhar tempo, intervém: "Deixai,
deixai, não importa, eu folgo de vos ouvir: dir-me-eis o vosso recado quando quiserdes...
logo, amanhã...". Assim seria, com grande alívio para D. Madalena, se o Romeiro
não estivesse preso por um juramento
solene: "Hoje há de ser. Há três dias que não durmo nem descanso, nem
pousei esta cabeça, nem pararam estes pés dia nem noite, para chegar aqui hoje,
para vos dar meu recado... e morrer depois... ainda que morresse depois; porque
jurei... faz hoje um ano... quando me libertaram, dei juramento sobre a pedra
do Santo Sepulcro de Cristo...".
Das palavras
do Romeiro se conclui que o dia da entrega do recado era importante para o
suposto companheiro de cativeiro: "Hoje há de ser"; que dar o recado
nesse dia era uma questão de vida e de morte: "... para vos dar meu
recado... e morrer depois... ainda que morresse depois... ". Para D. Madalena,
este era o dia fatal, indesejado e temido, pela sobrecarga, pela
acumulação de coincidências desastrosas (II, 10). Para quem mandou o Romeiro (e
singularmente também para o próprio Romeiro) este dia também o dia fatal, em que se cumpriam 21 anos sobre
o desastre de Alcácer Quibir: 20 anos de cativeiro, mais um ano de viagem, com
a agravante de os 3 últimos dias serem de marchas forçadas, para o mensageiro
chegar à presença de D. Madalena no dia exato, aquela sexta-feira, o dia fatal:
"Hoje há de ser".
D. Madalena,
«aterrada», finalmente pressente, sabe quase de certeza, que o autor do recado
não pode ser senão D. João de Portugal, ainda não libertado, mas vivo. E
indaga:
"– E quem vos mandou, homem?
– Como se
chama?".
O Romeiro,
apesar de vir da parte de um "honrado homem... a quem unicamente devi a
liberdade...", companheiro de todas as horas durante 20 anos, responde
estranha e enigmaticamente que nada mais sabe: "O seu nome, nem o da sua
gente nunca o disse a ninguém no cativeiro". Só restava ao Romeiro
desempenhar-se da missão de que o tinham incumbido tão solenemente, por meio de
um juramento: transmitir a D. Madalena, pelas próprias palavras de quem o tinha
enviado, a terrível mensagem: ""Aqui
estão as suas palavras: Ide a D. Madalena de Vilhena, e dizei-lhe que um homem
que muito bem lhe quis... aqui está vivo... por seu mal... e daqui não pôde
sair nem mandar-lhe novas suas, de há vinte anos que o trouxeram cativo".
Ora neste
recado simples e curto, de palavras medidas, mas densas de significado, diretas,
claras e irrefutáveis, há vários aspetos dignos de nota:
1.º) O recado era, sem dúvida, para D. Madalena. Era ela a
destinatária. Por isso é indicada pelo nome completo: "Ide a D. Madalena
de Vilhena...";
2.º) O destinador da mensagem era "um homem que muito bem lhe
quis...", isto é, que a amou. Não poderia ser outro senão D. João de
Portugal, o primeiro marido;
3.º) Ao contrário do que D. Madalena supôs, não estava morto: "...
aqui está vivo...";
4.º) Ali sofria as dores físicas e morais do cativeiro, da forçada
ausência e separação da esposa: "... por seu mal...";
5.º) "Dali nunca pôde sair nem mandar-lhe novas suas",
porque, se lhe fosse possível, já teria regressado a casa, ou, pelo menos,
teria enviado notícias;
6.º) por fim, D. Madalena empregara, de facto, todos os meios e
fizera todos os esforços para o encontrar no Norte de África, onde ele já não
estava: "... de há vinte anos que o trouxeram cativo".
Não admira,
portanto, a reação de D. Madalena às palavras do Romeiro: «espavorida», grita,
com atroz sofrimento, vindo do fundo da alma («Meu Deus, meu Deus! Que se não
abre a terra debaixo de meus pés?... Que não caem estas paredes, que me não
sepultam já aqui?..."). O pavor de D. Madalena vai crescendo à medida que
o Romeiro vai confirmando a identidade de quem o enviou, respondendo aos
sucessivos pedidos dela de confirmação, crescendo esse que é visível nas
didascálias (“na maior ansiedade”, “espavorida”), bem como na sua linguagem:
frases curtas (“Cativo?”, “Português?”); frases inacabadas (“esse homem era…”);
exclamações e reticências, interjeições e locuções interjetivas (“Jesus!”, “Meu
Deus, meu Deus!”)
Entretanto,
nas palavras do Romeiro, existem outros elementos igualmente inquietantes e que
formam, numa autêntica e progressiva identificação, a imagem no espelho: "As suas palavras trago-as escritas no
coração com as lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram
nestas mãos, que me correram por estas faces. Ninguém o consolava senão eu... e
Deus".
É verosímil
que o Romeiro tenha visto muitas vezes o companheiro de infortúnio chorar "lágrimas
de sangue"; mas já é mais estranho que as lágrimas do outro cativo lhe
tenham caído nas mãos, e muito mais estranho ainda que as lágrimas vertidas por
um tenham corrido pelas faces do outro. Não estará o Romeiro, com estas ambíguas
palavras e numa espécie de ilusionismo, a querer significar outra coisa, isto
é, que ele e o outro eram, afinal, uma só personagem?
No diálogo
que se segue com Frei Jorge, as duas primeiras respostas do Romeiro são
constituídas por frases da linguagem corrente e familiar e costumam empregar-se
como uma espécie de superlativo expressivo. E, no entanto, surgem aqui carregadas
de preocupante segundo sentido, sublinhado não só pela prontidão e pela brevidade,
mas ainda mais pelo que, em face das circunstâncias, dizem sem dizer, e pelo
que sugerem ou deixam adivinhar. De facto, ao olhar para o retrato de D. João
de Portugal, o Romeiro não estava só a examinar ou a comparar parecenças; com
efeito, o Romeiro estava, na realidade, a ver-se ao espelho.
Que mais
seria necessário para a identificação do Romeiro com D. João de Portugal?
No entanto,
as reações de Frei Jorge (cena 15) e de D. Madalena não são semelhantes.
D. Madalena
não conclui pela identificação da personagem
aparente (o romeiro-mensageiro) com a personagem
oculta ou real (o próprio marido,
ali presente diante dela, embora escondido debaixo daqueles trajes, e mudado na
enganosa aparência de um velho de barbas e de cabelos brancos, na anódina
incumbência de trazer um recado de outro), pois sai precipitadamente da sala,
aterrada, ao tomar consciência da sua situação de pecadora e da ilegitimidade
da sua filha. Demasiado perturbado para com lucidez chegar a essa conclusão,
apenas sente, nas palavras da terrível mensagem do Romeiro, a crueldade da reviravolta
do Destino: D. João de Portugal está vivo. Se assim é, e não há possibilidade
de dúvidas a este respeito, todos os sonhos de felicidade neste mundo desabam
para D. Madalena, todos os laços afetivos, que a prendem a Manuel de Sousa e à
filha, se destroem irremediavelmente. É a ruína da «sua» família, a desolação e
a infelicidade para cada um dos seus membros. Por isso D. Madalena "foge
espavorida", numa última tentativa de se afastar de tão implacáveis
desgraças trazidas pelo Destino.
NOTA:
|
D. Madalena,
geralmente tão sensível à previsão da desgraça, não é agora capaz de
estabelecer qualquer relação entre o Romeiro e a situação dramática que sempre
receou. De facto, o seu conflito com D. João, embora invisível, está sempre
presente (I, 1, 2, 3, 7 e 8; II, 1 e 10) e, nesta cena, é intrigante a quase
anestesia moral, em presença do Romeiro, de D. Madalena que, não obstante todos
os elementos de identificação por ele fornecidos, de forma direta, embora
velada, não reconhece o próprio marido, nem sequer pela voz.
● Estrutura
interna da cena
▪ 1.ª parte (do início até “… logo, amanhã…”): o Romeiro revela
o local onde viveu durante os últimos vinte anos, os padecimentos que sofreu, a
perda da família e a certeza de ter um só amigo.
▪ 2.ª parte (de “Hoje há de ser…” até ao fim): a noção de que
D. João está vivo e o estado emocional de D. Madalena vão crescendo até
● Caracterização
de D. João de Portugal
- é português;
- vem do Santo
Sepulcro;
- viveu nos Lugares
Santos durante 20 anos;
- modelo de
virtudes do cavaleiro cristão:
. no amor pelo Rei
e pela Pátria, de que tem o nome;
. no combate contra
os inimigos da Fé, pela qual expõe a vida;
. nos sofrimentos
do cativeiro, onde está 20 anos:
* muita fome;
* os maus tratos;
* as privações;
* o distanciamento;
* a falta de notícias;
* o amor e a
saudade da esposa (este amor e esta saudade de D. Madalena – as “paixões
mundanas” e as lembranças dos que se chamavam seus “segundo a carne” –
sobrepuseram-se sempre à sua fé, isto é, impediram-no de “rezar e meditar nos
mistérios da Sagrada Paixão”);
- não tem filhos,
nem família, nem parentes;
- os mais chegados
consideram-no morto;
- apenas tem um
amigo (Telmo);
- irritado e
ofendido quando D. Madalena lhe oferece o seu "amparo e agasalho" e
do marido;
- cansado, não se
poupou a esforços e muito padeceu para ali chegar naquele dia;
- veio para cumprir
um juramento feito a alguém: "... antes de um ano cumprido, estaria diante
de vós e vos diria da parte de quem me mandou...";
- sofreu imenso:
chorou lágrimas de sangue.
● Caracterização
de D. Madalena
O estado de espírito de D. Madalena vai evoluindo ao
longo da cena e é marcado por diferentes sentimentos e emoções:
▪ boa vontade,
simpatia e curiosidade iniciais quando recebe o Romeiro;
▪ admiração e
estranheza pelo facto de o Romeiro dizer que já não tem família;
▪ ansiedade (e
medo) de saber a identidade do homem que enviou o Romeiro;
▪ a ansiedade vai
crescendo à medida que o Romeiro vai desfiando revelações que a fazem ter quase
a certeza de que D. João está vivo e foi ele quem enviou aquele;
▪ o sofrimento e o
terror atingem o ponto culminante quando o Romeiro, sem hesitar, identifica o
retrato de D. João;
▪ terror e pavor,
que a fazem gritar e fugir, quando tem a certeza de que D. João está vivo.
Note-se, mais uma vez, como o seu discurso reflete o
aumento da perturbação de D. Madalena:
▪ frases
interrogativas curtas (“Cativo?”);
▪ frases suspensas,
inacabadas (“Sim, mas…”);
▪ repetições lexicais
(“Minha filha, minha filha, minha filha!...”);
▪ acelerações
rítmicas (“Estou… estás… perdidas, desonradas… infames!”).
NOTAS:
1. O Romeiro dá-se
a conhecer gradualmente, por fases que se podem delimitar segundo parâmetros: local
de onde vem, identidade, família, cativeiro e libertação, identidade do que o
enviou, gesto de reconhecimento (cena 15).
2. O diálogo
assenta num crescendo emocional gradual, que tem por finalidade contribuir para
um ambiente altamente dramático, para adiar o clímax e fazer sofrer D.
Madalena.
3. O Romeiro
desdobra-se num eu e num ele (desdobramento de personalidade); D. Madalena
recusa até ao máximo possível a verdade, pretendendo iludir-se.
4. Os espectadores/leitores
depressa compreendem que o Romeiro é D. João de Portugal; D. Madalena só no
final da cena tem a sua anagnórise (reconhecimento de que está vivo D. João).
5. A perturbação de
D. Madalena é acompanhada da alteração da sua linguagem: frases curtas,
inacabadas, repetições, ritmo acelerado.
6. D. Madalena
grita pela filha e parece esquecer Manuel de Sousa. É que a filha é ilegítima e
Manuel de Sousa já não existe como marido. De facto, D. Madalena grita que ela
e a filha estão perdidas, pois o facto de D. João, o primeiro marido, estar
vivo a reduz à condição de mulher adúltera e bígama e torna a filha ilegítima.
7. O facto de o
Romeiro não revelar de imediato a sua identidade permite-lhe ter um discurso
ambíguo, através do qual critica D. Madalena por ter construído uma nova vida e
constituído uma nova família a partir da sua suposta morte. Ironicamente, é D.
Madalena quem, mesmo sem o saber, se critica a si mesma: “Haverá tão má gente…
e tão vil, que tal faça?”.
● Tom
dramático da cena
Esta cena é profundamente dramática. Este dramatismo é cuidadosamente
construído, sobretudo a partir das falas do Romeiro:
* vai semeando pistas sobre a sua
identidade, mas com um discurso ambíguo;
* a atitude orgulhosa e ofendida do
Romeiro quando D. Madalena lhe oferece proteção, juntamente com o seu marido;
* a acusação velada do Romeiro a D.
Madalena, quando lhe diz que ela terá de pedir perdão a Deus pelas suas
ofensas;
* a descrição dos sacrifícios feitos
pelo Romeiro para trazer o recado a D. Madalena;
* a informação de que foi cativo em Jerusalém
e que é daí que traz o recado;
* o adiar da transmissão do recado;
* as perguntas feitas por uma Madalena ansiosa
e cada vez mais apavorada na tentativa de descobrir a identidade do homem que
enviou o recado;
* o momento em que o Romeiro identifica
D. João no retrato.
● Valor
do deítico «hoje»
O advérbio de tempo «hoje» refere-se ao dia 4 de agosto de 1599. Ao estar
associado ao complexo verbal com valor de obrigatoriedade “há de ser”, indica a
determinação do Romeiro entregar o recado que traz naquele preciso dia, pois
corresponde a um juramento feito um ano antes.
Esta determinação é reforçada pelo uso do quantificador numeral 3 (“Há três dias que
não durmo, nem descanso.”). Ora, este número simboliza a perfeição e as três
fases da existência, logo significa que aquele é o dia em que o recado terá
forçosamente de ser entregue ao seu destinatário.