● Comentário
da cena
Frei Jorge, atónito, ainda não completamente
esclarecido, interroga o Romeiro para desfazer as últimas dúvidas. No entanto,
é para ele que está reservada a última surpresa:
JORGE – «Romeiro, romeiro, quem és tu?»
ROMEIRO (apontando
com o bordão para o retrato de D. João de Portugal) – «Ninguém».
O vocábulo posto na boca do Romeiro – ninguém (pronome indefinido) – encerra uma grande carga
dramática e psicológica. Por um lado, é o desenlace trágico de uma situação
insustentável; por outro, resume todo o sofrimento e a desilusão do Romeiro,
que nada mais pode esperar da vida familiar. De facto, o sentido da palavra é
abrangente: D. João de Portugal é ninguém no sentido de não ser esperado por
nenhum dos seus familiares, que organizaram a sua vida na base da sua morte; a
sua própria casa já não lhe pertence, está ocupada por um intruso. Assim, o
Romeiro anula-se enquanto pessoa com identidade própria, por não ter existência
para os outros, por não ter a vida a que tinha direito, uma vez que a sua
própria família construiu, a partir da sua «morte», uma à sua. De facto, o
Romeiro fizera todos os esforços para se manter vivo na Palestina e regressar a
Portugal para a sua esposa, mas esta não só já não o esperava, como também
construíra a sua felicidade em cima da sua «morte». Assim, apagado da memória
da mulher que amava e era toda a sua família, D. João de Portugal perdeu tudo
durante os 20 anos de cativeiro: – a família; – a identidade (ninguém o
reconhece); – o lugar que era seu / a sua casa. D.
João de Portugal, aniquilado, é o símbolo de Portugal. Além deste sentido, pode também ser interpretada como outra
prolepse, uma antecipação do desenlace de D. João: o anonimato.
E ali está presente e vivo D. João, alçado no meio
da casa, com aspeto severo e tremendo. Ele vem reclamar tudo a que tem direito:
a casa, a esposa, o nome... Quem poderá negar-lhe esse direito? Que lei, divina
ou humana, poderá ser invocada para, com justiça, lho negar?
Frei Jorge compreende, por fim, toda a verdade. E só
então parece medir o alcance das implicações desastrosas que essa descoberta
vai trazer para D. Madalena, para Manuel de Sousa e para Maria. Daí que Frei
Jorge caia prostrado no chão, com os braços estendidos diante da tribuna, como
a implorar do Céu remédio, para o que, desde agora, já não tem nem pode ter
remédio.
NOTAS:
1.ª) A figura do Romeiro concretiza a figura de D.
João:
. sem o seu
aparecimento não haveria drama;
. é o agente
destruidor da tranquilidade da família, aparentemente feliz;
. é uma espécie de
fantasma ou entidade abstrata nos dois primeiros atos, que absorve os
pensamentos de Madalena, Telmo, Manuel e do próprio Frei Jorge;
. no ato III, vai
precipitar o desenlace trágico, apesar da sua atuação como personagem ser
reduzida.
Sobre a figura do Romeiro, informa António José
Saraiva: "O Romeiro é o portador da fatalidade: o aparecimento dele vem
anular toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de
Portugal; anular o segundo casamento da sua esposa viúva e riscar do rol dos
vivos a filha que desse casamento nascera. O passado, que se julgava morto como
um vulcão extinto, vem tragar os vivos que se tinham instalado na sua
cratera.".
2.ª) O tempo (hoje) e o espaço (a área da moldura do
retrato) atingem forte concentração, direcionando a ação dramática para a
catástrofe.
3.ª) Esta é uma cena dispensável para os
espectadores/leitores, que já sabem tudo; todavia, é importante para Frei Jorge
que, além de acumular o máximo de informações, terá um papel importante a
cumprir.
4.ª) Comparando esta cena com a última do primeiro ato,
constata-se que são ambas espetaculares e que o paralelismo de construção é uma
constante no Frei Luís de Sousa.
5.ª) Quem, além dos espectadores/leitores, fica a
saber, no final do segundo ato, que o Romeiro é o próprio D. João de Portugal?
D. Madalena, ausente desde o fim da cena anterior,
só ficou a saber pelas palavras do Romeiro-mensageiro que D. João de Portugal
esteve sempre vivo durante todos aqueles anos, que estava ainda vivo nessa
altura, que lhe enviou aquele estranho recado.
As restantes personagens encontram-se em Lisboa.
Só Frei Jorge, confidente qualificado, na dupla
posição de irmão de Manuel de Sousa e cunhado de D. Madalena, e de sacerdote,
recebe e percebe totalmente a informação de que conclui, sem dúvida, estar em
presença do próprio D. João de Portugal.
Por isso, haverá outros momentos de anagnórise, de
modo que todas as outras personagens, frente a frente, reconheçam no Romeiro o
próprio D. João de Portugal.
● Características
trágicas (cenas 14 e 15)
▪ O simbolismo do tempo: D. João regressa numa sexta-feira
(o4/08/1599), no vigésimo primeiro aniversário da batalha de Alcácer Quibir
(sexta-feira) 21 = 7 (tragédia) x 3 (perfeição) = tragédia perfeita.
▪ Semelhança do
assunto com as antigas tragédias gregas: a volta de D. João sob disfarce de um
mendigo (Ulisses).
▪ Hybris de D. João de Portugal
A hybris de D. João é anterior ao início da ação:
-» abandona a
esposa, embora por razões nobres: acompanha o rei à guerra, em defesa do reino
e da Fé, por motivos cavaleirescos; na sociedade feudal, aos nobres cabia
combater, pelo rei e pela grei, e em defesa da Fé. Era este um dos ideais da
cavalaria medieval. Por esse ideal se arriscava a vida, se sofria a morte, ou o
cativeiro, e se atingia a glória: como diz Manuel de Sousa: "... não
hajais medo que nos venha perseguir neste mundo aquela santa alma que está no
céu, e que em tão santa batalha, pelejando por seu Deus e por seu rei, acabou
mártir às mãos dos infiéis" (I, 8);
-» o abandono da
esposa é um crime contra as leis e os direitos da família, porque a destrói. É
um crime de impiedade;
-» embora vivo,
depois da batalha, fica prisioneiro, é levado cativo para Jerusalém e, durante
quase 21 anos, não dá notícias suas, embora contra vontade;
-» todos o
consideram morto.
▪ Agón de D. João de Portugal
Antes do regresso, na figura do romeiro-mensageiro,
os conflitos com as outras personagens manifestam-se:
1. em D. Madalena,
na consciência atormentada pelos remorsos;
2. em Telmo:
- nos ciúmes, nos
agouros e profecias, na crença no regresso de seu amo, baseado nos dizeres de a
célebre carta, escrita na madrugada da batalha;
- nas prevenções e
nas opiniões desfavoráveis a Manuel de Sousa, em confronto com as qualidades de
D. João;
- na animadversão
contra Maria;
3. em Maria, nos
sonhos premonitórios e na sagacidade com que perscruta as palavras e as
meias-palavras, os silêncios, os olhares, os gestos da mãe e do pai, o conflito
com Telmo, até lhe ser revelada a identidade da figura do retrato (II, 2).
Mas o conflito, face a face, com D. Madalena,
verifica-se com a entrada do romeiro-mensageiro (II, 14), em todo esse diálogo
de grande densidade.
Nessas frases do Romeiro, carregadas de duplos
sentidos, de alusões veladas ou claras, mas sempre diretas, de ironias, de
sarcasmos, de graves acusações, as palavras ferem como punhais; por isso este
diálogo é, antes de tudo, um autêntico duelo de palavras, em que D. Madalena
por fim sucumbe, naquele grito espantoso, em tom cavo e profundo, grito de
coração – como indicam as rubricas
Em primeiro lugar, o Romeiro não é apenas um
mensageiro, um qualquer que traz um recado. É um português "como os
melhores": os melhores são os nobres, os aristocratas. É esse mesmo o
significado da palavra. Em segundo lugar. Viveu nos Santos Lugares "vinte
anos cumpridos". Em terceiro, operou-se nele uma grande mudança
entretanto: "Estou tão velho e mudado do que fui". Em quarto, se
houve mudanças físicas, os sentimentos, as paixões permaneceram: "... as
paixões mundanas, e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a carne
travavam-me do coração e do espírito...". Em quinto, não tinha deixado
descendência: "Eu não tenho filhos, padre". Em sexto, já não tem
família: "Já não tenho família". A frase é ambígua; os advérbios
marcam, com amarga ironia, o presente estado de coisas no seu lar, em confronto
com o passado. E parentes? Amigos? "Os mais chegados, os que me importava
achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ela".
Esta resposta é uma alusão pungente e de amarga ironia à esposa infiel. E
segue-se-lhe outra grave acusação: "Necessidade pode muito. Deus lho
perdoará, se puder". Que sarcasmo e que crueldade do Romeiro contra D.
Madalena. E ele prossegue: "De parentes já sei mais do que queria. Amigos,
tenho um; com esse conto", numa referência óbvia a Telmo. Qual será a sua
desilusão, quando mais tarde verificar que também perdeu esse amigo? Por fim,
nova cruel ironia, novo sarcasmo: "Agora acabo; sofrei, que ele também
sofreu muito".
Há ainda outros elementos desse conflito, na
progressiva identificação do romeiro-mensageiro com a figura de D. João de
Portugal:
1. Quem o
encarregou de trazer o recado foi "... um honrado homem... a quem
unicamente devi a liberdade... a ninguém mais". Esta frase ambígua é,
todavia, muito clara para quem tivesse ouvidos para ouvir.
2. "...
lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas mãos,
que correram por estas faces. Ninguém o consolava, senão eu... e Deus!". A
identificação está bem clara. Só uma espécie de anestesia moral muito
inquietante, dadas as circunstâncias, é que poderá explicar a falta de
clarividência de D. Madalena.
3. Mais claro ainda,
se é possível: conhecê-lo-ia "Como se me visse a mim mesmo num
espelho".
Mas, afinal, não bastou tudo isto. Foi preciso que
Frei Jorge tomasse a iniciativa de obrigar o Romeiro a procurar, de entre os
retratos, aquele que representava D. João de Portugal, para D. Madalena abrir
por fim os olhos à evidência, e sucumbir, no fim deste duelo, desta luta de
golpes certeiros.
▪ O aparecimento do
Romeiro, pelo aspeto com que se apresenta, pela determinação de quem sabe o que
faz e o faz do modo que quer, pela terrível mensagem de que é portador, pelo
reconhecimento da sua verdadeira identidade:
. não é um
acontecimento gratuito;
. nem desprovido de
significado;
. antes verosímil e
necessário, porque o argumento da tragédia gira à volta de um regresso do
marido ausente, e porque assim o sentem as personagens envolvidas;
. constitui,
portanto, uma autêntica peripécia, que se caracteriza por ser imprevista e
imprevisível quanto ao mandatário, quanto ao teor da mensagem, quanto ao
reconhecimento da personagem oculta.
▪ A peripécia é dinâmica, porque faz progredir e intensificar a ação
(clímax) até ao ponto culminante (acmê).
▪ A intensificação
da ação provoca sofrimentos terríveis (pathos), sobretudo em D. Madalena, mas
também em Frei Jorge e, posteriormente, nas outras personagens.
▪ O ponto
culminante corresponde ao momento do reconhecimento (anagnórise) da última cena.
▪ Verdadeira
«reviravolta da fortuna», na designação aristotélica, a anagnórise precipita,
por fim, o desfecho (catástrofe), pela grave modificação das posições relativas de
cada personagem.
Duas notas finais:
1.ª) a extrema
economia de meios, a densidade da «trama dos factos» e a concentração de
efeitos (cenas 11 a 15);
2.ª) a forma como
Garrett segue o preceito aristotélico: "A mais bela forma de
reconhecimento é a que se dá com a peripécia".