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sábado, 25 de janeiro de 2020

Análise de "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade

Este poema foi publicado pela primeira vez em 1930, integrado na sua obra inicial: Alguma Poesia. É constituído por uma única estrofe de sete versos (sétima) livres e não rimados, que aborda o tema das dificuldades e os desencontros amorosos. Tal noutras poesias de Carlos Drummond de Andrade, o que está em equação nesta é a solidão do sujeito no mundo e a sua dificuldade em estabelecer laços com aqueles que o rodeiam, ou seja, os amores desencontrados.

Podemos dividir o poema em duas partes. Na primeira, constituída pelos três versos iniciais, são apresentadas várias paixões não correspondidas: todos os indivíduos, exceto Lili, amavam sem serem correspondidos. A confusão de sentimentos e os desencontros sucessivos caracterizam a história que o sujeito poético está a narrar, o que nos permite concluir que o amor não é fácil de encontrar e ainda menos de concretizar.
Na segunda parte, composta pelos quatro versos seguintes, o sujeito lírico dá-nos a conhecer o destino das personagens que conhecemos anteriormente: o exílio de João nos Estados Unidos, o recolhimento de Teresa no convento, o desastre que matou Raimundo, o título de tia (imposto?) a Maria, o suicídio de Joaquim e o casamento de Lili (que não amava ninguém) com J. Pinto Fernandes (que até aí nada tinha a ver com a história). Todos parecem ter ficado sozinhos ou deixado escapar o amor, seguindo os seus destinos direções diferentes. Atente-se na forma como o sujeito se refere ao marido: impessoal, sem nome próprio, sendo apresentadas apenas a inicial. Por outro lado, J. Pinto Fernandes parece mais uma designação comercial, que identifica, portanto, uma empresa ou um negócio, do que o nome de uma pessoa. Assim sendo, talvez seja uma forma de insinuar que o relacionamento entre o casal é distante, ou então é uma relação de interesse. Seja como for, Drummond de Andrade parece sugerir no poema a imprevisibilidade da vida e do próprio sentimento amoroso.

O título da composição constitui uma referência a uma contradança de origem holandesa que granjeou enorme sucesso na França, durante o século XVIII, onde recebeu o nome de “Neitherse”. No século XIX, tornou-se muito popular nos salões aristocráticos e burgueses em todo o mundo ocidental. De facto, no poema está presente a quadrilha francesa, que se tornou tradição nas festas juninas brasileiras e que consiste na evolução diversa dos pares, sendo aberta pelo noivo e pela noiva, pois a quadrilha representa o grande baile do casamento que, supostamente, se realizou, onde os casais formam pares que se entre dançam. Na composição, homens e mulheres desencadeiam desencontros amorosos e somente quem não amava ninguém (Lili) consegue encontrar o seu par. Metaforizado pela quadrilha, o amor surge como uma dança onde os pares estão trocados e os sentimentos não são correspondidos. Quase todos os indivíduos estão apaixonados e são alvo do amor de alguém, mas as linhas parecem estar cruzadas e nenhum relacionamento se concretiza. Aparentemente, o sujeito poético retrata o amor como algo absurdo, uma espécie de jogo de sorte que apenas alguns têm a oportunidade de vencer.
Assim sendo, de forma simples e recorrendo a exemplos concretos e do quotidiano, o texto ilustra o desespero daqueles para quem o amor verdadeiro parece ser impossível. A construção do poema assemelha-se a um ciclo vicioso: um ama outro, que ama outro, que ama outro e assim sucessivamente. No entanto, ao contrário do ciclo vicioso, em que seria expectável que o último indivíduo mencionado amasse o primeiro, este termina na última personagem apresentada: Lili.

O recurso a nomes de pessoas comuns significa que qualquer indivíduo pode ser vítima das frustrações do amor: João, frustrado com o desamor de Teresa, parte para os Estados Unidos; Teresa, desapontada com a não correspondência de Raimundo, procurou a clausura no convento para nunca ser de nenhum homem, entregando a sua vida somente a Deus; Raimundo, que amava Maria e que também não foi correspondido, morreu de desastre, talvez numa tentativa de fugir da vida ou de si mesmo; Maria, descontente com o seu destino, não se voltou a envolver com mais nenhum homem, além de Joaquim, que decidiu suicidar-se por causa de Lili, que não o amava nem a mais ninguém. De facto, esta última figura está ligada à tragicidade dos outros indivíduos, mas é a única que não estabelece qualquer vínculo afetivo com nenhum dos pares.

Note-se, por outro lado, que as personagens não possuem sobrenome, à exceção de J. Pinto Fernandes. Sem origem definida, parece simbolizar a perda da individualidade, o sentimento humano que luta para sair do isolamento, da solidão. Assim, a vida constitui uma experiência angustiante, na qual o convencionalismo e as aparências valem mais do que a essência. Tudo isto é agravado pelos desencontros amorosos.

O amor é apresentado como uma extensa cadeia de afetos, os quais se inscrevem num quotidiano centrado nas necessidades imediatas, porém num contexto de superficialidade sentimental. O amor é um sentimento mundano, temporal: João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili.
O poema é constituído por uma única estrofe, determinada pela musicalidade que embala a situação de cada personagem, cujo ritmo dos versos é um retrato cómico dos desencontros amorosos em que a dança, isto é, a quadrilha, é a mais célebre representação da condição trágica da carência, da desilusão do amor. No meio dos jogos de desencontros, a dança da quadrilha determina o destino das personagens.

Os nomes são repetidos, facilitando a identificação e memorização das personagens, visto que estão dispostos numa certa ordem nos três primeiros versos, que é repetida nos três últimos. A redundância é um traço modernista.

Na construção humorística e divertida da composição poética, a troca de pares e desencontros amorosos entre as personagens vai sendo apresentada em duplas ao leitor, como é característica das quadrilhas, onde os pares se situam frente a frente. No entanto, há uma alternância entre os pares, visível na presença do conectivo “que”, o qual separa e une os pares, ou seja, os casais mostram o “porquê” dos problemas que impede a união entre eles, isto é, da não conexão. Somente no último verso, que é marcado pela única união (entre Lili e J. Pinto Fernandes), esta é estabelecida através da conjunção coordenativa “e”, que evidencia a afinidade e a oposição estabelecida entre os dois pares, pois um, só com o apelido, Lili, e o outro, só com o sobrenome, J. Pinto Fernandes, atraíram-se, entrelaçando-se em matrimónio.

Um outro aspeto interessante reside no facto de apenas Lili, que não possui nome próprio, apenas apelido, e é a única personagem com essa característica, se ter casado. Ela representa o anonimato de qualquer um que poderia ter entrado na dança e ter-se dado bem, pois, além de se ter casado, foi a única a envolver-se com um homem possuidor de sobrenome, dando a ideia de ser um nobre, originário de uma classe alta, exatamente onde a quadrilha teve origem.

Todos os nomes das personagens, exceto o de Lili e do seu par, são nomes simples, comuns, do povo, ou seja, da plebe, que foi para onde a festa folclórica da nobreza se estendeu após ter descido as escadarias dos palácios franceses. O J. Pinto Gonçalves, que ainda não tinha entrado na história, e muito menos no baile, é uma representação da nobreza, da alta sociedade, expressas no seu sobrenome. O seu primeiro nome não é citado como o das demais personagens, está abreviado. Apenas o seu sobrenome importa, dado que o que é marcante no seio da alta sociedade não é o nome, mas o sobrenome. Ele representa a marca originária da família nobre à qual pertence. É curioso que não se sabe se Lili amava ou não J. Pinto Fernandes, ou se passou a amar ou pelo menos apaixonar pelo seu companheiro depois do enlace. Assim sendo, não se pode dizer que foi uma união perfeita, muito menos feliz.
Se ela não amava ninguém, nem mesmo J. Pinto Fernandes, podemos dizer que se pode ter casado simplesmente para não ter o mesmo destino das demais mulheres do poema, ou ainda, com ambições mais elevadas, pelo facto de querer sair do seu anonimato, por meio da aquisição de um sobrenome de nobreza. A composição poética, que seguia uma sequência de desencontros, foi alterada com a introdução de J. Pinto Fernandes, que «não tinha entrado na história», isto é, alguém que ignora tudo o que tinha havido anteriormente na vida dos outros pares e, principalmente, de Lili, a quem recebe como companheira independente dos seus sentimentos para com ele. Finalmente, quando o casal desconhecido se enlaça, ou se «enrola», não são somente a música ou a dança, mas a própria vida que para quando os caminhos de Lili e J. Pinto Fernandes se cruzaram. Podemos relacionar o poema com a dança da quadrilha, pois as modificações e evoluções acabaram por alterar os compassos da dança, da música e do amor.

Bibliografia:
. ANDRADE, Carlos Drummond. Alguma Poesia. 8.ª ed.- Rio de Janeiro: Record, 2007.
. CANDIDO, Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945: panorama para estrangeiros”. In: Literatura e sociedade. 8.ª ed., São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 2000. pp. 109-138
. Elenco de cronistas modernos por Carlos Drummond de Andrade [e outros] – 21.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
. VILLAÇA, Alcides. Drummond: primeira poesia. USP.São Paulo: Editora 34, 2002.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Fernando Pessoa: o fingimento poético / artístico

O fingimento artístico:

. Fingimento artístico ≠ sinceridade humana.

. Intelectualização das emoções e das sensações experienciadas.

. A imaginação sobrepõe-se ao coração.

. Recusa da espontaneidade e emotividade literárias: a poesia é um produto intelectual.

 . Fernando Pessoa nega a ideia romântica do poema como um confessor, filtrando tudo pela inteligência, sendo o texto fruto da imaginação.

. Nos poemas “Autopsicografia” e “Isto”, Fernando Pessoa apresenta a sua visão sobre o processo de criação poética/artística, ou seja, sobre como se escreve um texto lírico / poesia.

. Nesses poemas, o sujeito poético defende que o poeta não visa representar diretamente os seus sentimentos e as suas experiências interiores tal qual os viveu. Pessoa afirma que o poeta parte das emoções que experienciou (“a dor que deveras sente”) e representa-as poeticamente, através de palavras, transformando essas emoções em arte, ao compor o poema.

. Assim, a escrita poética resulta de um processo de racionalização dos sentimentos e da imaginação artística (trabalho poético) para escrever o poema: as emoções e os sentimentos, mesmo os verdadeiros, são fingidos, ou seja, são artisticamente trabalhados. Através do fingimento artístico, o poeta transforma as suas emoções e experiências em matéria poética.

. Fernando Pessoa chama a esse processo fingimento artístico: “O poeta é um fingidor”, escreve ele em “Autopsicografia”. Porém, o fingimento, aqui, não significa falta de autenticidade ou de sinceridade (isto é, o poeta não mente); ele distancia-se dos seus sentimentos para os poder representar esteticamente, através das palavras. Assim, o texto é produto da imaginação. Note-se que a noção de fingimento poético se relaciona com a de heterónimo.

. Pessoa chega a afirmar que a sensibilidade é inimiga do poeta. Em textos em prosa, estabelece a distinção entre dois tipos de poesia: a que é explicada em “Autopsicografia”, em que o poeta é crítico, reflexivo e trabalha cuidadosamente a palavra e a forma no processo de criação; e, por outro lado, a poesia em que o poeta se diz “sincero” e espontâneo ao escrever uma composição poética.

. Quanto ao leitor, cujo papel na interpretação da poesia é estabelecido na segunda estrofe de “Autopsicografia”, a dor que ele não tem são os sentimentos que experiencia na interpretação do poema e que não é a sua – não viveu essas emoções, elas desencadeiam-se na leitura do poema.

. De acordo com esse poema, podemos esquematizar da seguinte forma o conceito pessoano de criação e de interpretação poéticas:



. O poeta escreve uma emoção fingida, pensada, fruto da razão e da imaginação; não escreve a emoção sentida pelo coração, porque ela chega ao poema transfigurada, trabalhada poeticamente; não há espontaneidade no processo de criação artística. Com efeito, o poeta recusa a espontaneidade e emotividade literárias: a poesia é um produto intelectual.

. Por sua vez, o leitor não sente nem a emoção vivida pelo poeta, nem a emoção imaginada por este no poema; sente a que nele é suscitada pela leitura do texto.

. Em síntese:

▪ a arte nasce da realidade, mas consiste no fingimento dessa realidade, o que significa que não há arte/poesia sem imaginação;

▪ a intelectualização (o fingimento) das emoções é concretizada no texto;

▪ o leitor não tem acesso à emoção real nem à emoção fingida pelo poeta; ele apenas sente o que o poema / o objeto artístico lhe desperta e que corresponde à sua interpretação do texto.

 

domingo, 19 de janeiro de 2020

Análise da Cena 12 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto: o Romeiro entra em cena, Maria morre e os pais tomam o hábito.


Acontecimentos da cena

▪ O Romeiro, numa derradeira tentativa de reparar a situação que criou e por que se sente responsável, manda Telmo intervir e dizer aos presentes que é um impostor.

▪ Maria ouve a sua voz e reconhece-o imediatamente. Sendo tuberculosa, tem uma acuidade auditiva mais desenvolvida. Cumpre-se, assim, a última etapa da anagnórise: o reconhecimento da identidade do Romeiro por Maria e pelos circunstantes.

▪ Para Maria, o Romeiro/D. João é o “homem do outro mundo”, morto e ressuscitado para trazer a desgraça e confirmar a sua ilegitimidade. Ela não aguenta a “vergonha” de ser filha ilegítima e morre. De facto, é possível considerar que o trauma psicológico que sofreu tenha agravado o seu estado de saúde debilitado (pela tuberculose), contribuindo para a sua morte.

▪ A tomada de hábito configura um duplo suicídio: Manuel de Sousa e D. Madalena abandonam voluntariamente o mundo profano (morte para o mundo), para se entregarem à religião.

▪ D. Madalena e Manuel de Sousa tudo deixam para trás: bens materiais, lugar de relevo na sociedade, amigos, parentes e até o nome. Como diz o Prior, despiram “o homem velho”, para se sepultarem vivos, embrulhados naquelas “mortalhas”, um na solidão do convento de S. Domingos de Benfica e a outra no convento do Sacramento.

▪ Na cena 2 do ato II, Telmo deixa escapar o seguinte presságio: “… tenho cá uma coisa que me diz que, antes de muito, se há de ver quem é que quer mais à nossa menina nesta casa.”. O terceiro ato vem confirmar esse presságio, visto que acaba por ser a única personagem que se mostra disposta a abdicar de um princípio que o norteava – o de nunca mentir – em nome do seu amor por Maria. É por este motivo que tenta levar a cabo a missão de que foi encarregado pelo Romeiro, passando a mensagem de que é um impostor.

▪A derradeira fala da peça, saída da boca do Prior (“Meus irmãos, Deus aflige neste mundo aqueles que ama. A coroa de glória não se dá senão no céu.”), aponta para a possibilidade de uma felicidade futura (a “coroa de glória… no céu”), embora à custa de sofrimento redentor, neste mundo, pela contrição, pela penitência, pela ascese. Estas palavras de conforto apontam para a esperança, só possível na mundividência cristã.
Por outro lado, desta fala pode concluir-se que o desenlace da tragédia se projeta em dois planos. No plano humano, as personagens não têm saída, não podem voltar atrás, tal como na tragédia grega, que reflete o mundo clássico-pagão, mundo sem esperança, nem redenção, em que o Destino, entidade cega e cruel, parece ter ciúmes da grandeza das personagens e só se satisfaz com a sua destruição e o aniquilamento das vítimas, sejam elas culpadas ou não. No plano da mundividência cristã, as personagens, embora destruídas como tal, infelizes no plano humano, desgraçadas no relacionamento familiar ou social, podem mesmo assim suportar todas as dores, todos os sofrimentos, porque lhes será sempre possível, mesmo neste mundo, atingir a paz de consciência, e, com os esforços próprios de uma vida de penitência, aspirar, com a ajuda da graça de Deus, a uma suprema felicidade futura.
Por outro lado, no mundo antigo clássico, a morte era vista como o aniquilamento total, o fim de tudo: nada mais se poderia esperar para além dela. A lei da morte era o esquecimento, do qual só se salvavam, como escreveu Camões, “… aqueles que por obras valerosas / se vão da lei da morte libertando”. As obras valorosas eram os feitos guerreiros dos heróis, os feitos intelectuais dos poetas, os feitos atléticos dos jogos. Só esses eleitos tinham direito à imortalidade, sublinhada pela ereção de uma estátua (ou retrato), duplo da personagem. A imortalidade, ou glória, era, portanto, a memória do herói, do poeta, do atleta nas gerações vindouras.
Na mundividência cristã, a alma humana é imortal; o homem morre, mas a alma não é destruída, antes tem um destino feliz ou infeliz, para além da morte. Os santos são os heróis da Fé, só eles atingem a bem-aventurança, simbolizada na estátua, ou imagem, com honras e culto nos altares. É neste sentido que apontam as palavras do Prior.

▪ É, pelo exposto no ponto anterior, que para Sóror Madalena das Chagas, no Convento do Sacramento, se abre uma possibilidade de reabilitação e redenção, pela contrição, pela oração, pela penitência, que a poderá levar, com a ajuda da graça de Deus, à felicidade e à bem-aventurança no Céu.
É, por isso, que, para Frei Luís de Sousa, no Convento de Benfica, as perspetivas são mais largas ainda, se juntar à penitência e à oração, a ascese que o levará à glória do escritor (o mito romântico do escritor/poeta) e a uma quase santificação, promissora da suprema glória no Céu.
Por fim, Maria, a vítima inocente das paixões dos pais (sobretudo da mãe), a morte que a destrói leva-a imediatamente à glória do Céu (“este anjo que Deus levou para si” – III, 12), nimbada pelas virtudes que a exornam, pelos sofrimentos e provações a que foi sujeita, pela inocência e pela beleza. Do ponto de vista transcendente, é a personagem mais feliz de todas.


Funções das didascálias

As indicações cénicas salientam o estado de espírito de Maria, nomeadamente a sua dor, o seu desespero e a sua revolta. Elas indicam os movimentos e os gestos feitos por Maria para se juntar aos pais, procurando neles um refúgio: ela agarra-os, abraça-nos, procura proteção no hábito do pai e no rosto da mãe, dirige-se aos presentes, aponta para o Romeiro, em sinal de reconhecimento, acabando por cair no chão, morta.


Características românticas:
▪ a exacerbação dos sentimentos;
▪ o domínio da emoção e da sensibilidade;
▪ a morte como solução para os problemas;
▪ a intenção pedagógica: a problemática dos filhos ilegítimos.


Características trágicas

Catástrofe:
- O Romeiro sofre uma morte psicológica: o anonimato. Ele é atingido pela dor que causou nos outros, pela morte de Maria, uma inocente, e por não ter remediado o mal que involuntariamente causou. Consigo transporta as memórias da breve felicidade passada e dos infortúnios com que o Destino o sobrecarregou. Nunca quis desonrar a sua viúva, mas também não deseja a honra para si. Bastar-lhe-á um nome honrado e uma memória sem mancha.
- Telmo morre psicologicamente também. Conseguirá ele sobreviver a tantos desgostos e a tão grande sofrimento?
- Manuel de Sousa e D. Madalena morrem para o mundo com a tomada de hábito, para suportar a sua dor. No lugar de Manuel de Sousa, surge um novo ser: Frei Luís de Sousa. No de D. Madalena, igualmente outro ser: Sóror Madalena das Chagas.
- Maria é a vítima inocente de um destino trágico e morre fisicamente, revoltada, de vergonha. Como era usual na tragédia grega, a catástrofe faz-se sentir na vítima (mais) inocente.

Peripécias:
- a tomada de hábito;
- a morte de Maria.

Pathos (sofrimento) das personagens.

Éleos (piedade) e phobos (medo): Garrett pretendia levar os espectadores a sofrer os terrores (phóbos) perante os castigos do Destino (neste caso, da Justiça de Deus) e sentir a piedade (éleos) pelas vítimas.

Catarse: a purgação das paixões humanas. Os espectadores viveram (e vivem) as paixões, as angústias, os desesperos das personagens, com quem idealmente se identificaram. Sofreram os terrores de D. Madalena, choraram as lágrimas de Manuel de Sousa, morreram com Maria, antipatizaram com a dureza do Romeiro, sensibilizaram-se com a «traição» do Romeiro, de modo que, no final de contas, no momento do julgamento final, o prato da balança se inclina a favor das vítimas.
              Garrett quis combater os preconceitos e a condenação da chamada “moral social” contra os filhos ilegítimos (como era o caso de Maria Adelaide, sua filha), mas, mais ainda, atrair a simpatia, a desculpa, a absolvição para os amores românticos (os “direitos da paixão”), à margem das leis de Deus e das leis humanas (como era o seu próprio caso).

Bibliografia: MENDES, João. Introdução à Leitura do Frei Luís de Sousa. Livraria Almedina.

Análise da Cena 11 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

Maria entra em cena e interrompe a cerimónia da tomada de hábito dos pais, produzindo um discurso prenhe de revolta contra tudo e todos os que responsabiliza pela tragédia que se abateu sobre si e a sua família.


Didascália inicial:
- entrada precipitada de Maria na igreja;
- estado de Maria (“de completa alienação” física e psicológica);
- reação dos presentes na cerimónia (“Espanto geral”);
- interrupção da cerimónia.


Caracterização de Maria

▪ Maria surge em cena “em estado de completa alienação”, despenteada (“os cabelos soltos”), vestida de forma imprópria (“traz umas roupas brancas desalinhadas e caídas”), com o “rosto macerado mas inflamado com as rosetas hécticas, os olhos desvairados”, como se pode ler na didascália inicial. A sua entrada precipitada mostra o quão perturbada está.

▪ De seguida, doente (febril) e desesperada, profere um discurso violento, revoltado e desafiador das normas vigentes na época, acabando a desejar a morte.

▪ Esse discurso é extremamente emotivo, como se pode verificar pelo recurso aos modos imperativo e conjuntivo com valor exortativo (“Mate-me”, “deixe-me”), às apóstrofes, repetições e interrogações. Além disso, são várias as frases interrompidas por ela produzidas. Esta linguagem emotiva evidencia a sua lucidez e a violência crítica das suas palavras.

▪ Por outro lado, o seu discurso é transgressor e questionador das normais sociais e religiosas dominantes, motivado pela sua revolta, que tem vários alvos:
- aqueles que participam na cerimónia da tomada de hábito e que, portanto, comparticipam na dissolução do casamento dos pais e da sua família;
- a falta de humanidade de Deus que lhe reservou um destino tão cruel e lhe rouba os pais legítimos (“Que Deus é esse que […] quer roubar o pai e a mãe a sua filha?”);
- D. João de Portugal, que voltou para a condenar à morte (não é tolerável que alguém que desapareceu há 21 anos e do qual nada se soube durante esse período de tempo, tendo sido considerado morto, venha agora destruir o que de mais sagrado existe: uma família feliz e temente a Deus);
- um mundo hipócrita e desumano em que os inocentes são castigados;
- as convenções sociais e religiosas, que a obrigam a separar-se dos seus pais e condenam vítimas inocentes (estará aqui em causa a lei da indissolubilidade do casamento, que gera situações dramáticas).

▪ Em determinado momento, lança um apelo lancinante aos pais: “«Essa filha é a filha do crime e do pecado!...» Não sou; dize, meu pai, não sou… dize a essa gente toda, dize que não sou. […] Pobre mãe! Tu não podes… coitada!... Não tens ânimo… - nunca mentiste?... Pois mente agora para salvar a honra de tua filha, para que lhe não tirem o nome de seu pai. / […] Não queres? Tu também não, meu pai? – Não querem. […]”. Maria desafia as normas dominantes ao pedir aos pais que mintam e afirma não se importar com «o outro» (D. João de Portugal), que veio dizer que ela era “filha do crime e do pecado”, o que mostra que, para si, a família tem um valor superior aos valores sociais e religiosos.

▪ Maria não se considera “filha do crime e do pecado”, por isso não se conforma e não aceita a sua ilegitimidade, e acusa as pessoas de a julgarem e de a impedirem de ser feliz por causa da sua ilegitimidade.

▪ O objetivo final de Maria é demover os pais da resolução de tomar o hábito (“levantai-vos, vinde”).

▪ No seu discurso, Maria volta a referir-se aos sonhos e visões que a mantinham acordada e não deixavam dormir: o anjo que surgia com uma espada em chamas na mão e a atravessava entre ela e a mãe. Essa espada constituía um presságio que remetia para a separação da família (o atravessar a espada entre ambas) e a sua destruição (o facto de a espada estar em chamas).

▪ A sua fala final anuncia a sua morte (“E eu hei de morrer assim…”) e a entrada em cena do Romeiro (“e ele vem aí…”).

▪ Com este discurso, Almeida Garrett pretende suscitar a piedade (éleos) do leitor/espectador relativamente a Maria, uma vítima inocente das normas sociais e religiosas.

▪ Para Maria, o Romeiro-D. João de Portugal é o “homem do outro mundo”, isto é, alguém considerado morto e agora ressuscitado para atormentar e trazer a desgraça; por outro lado, é o homem do outro mundo, ou seja, de outra família, anterior à ilegal construção da sua, o qual tem direitos e os reivindica nesta hora fatal. Sucede que essas duas realidades nunca poderiam coocorrer: D. Madalena não poderia ser, face à lei de Deus e à dos homens, esposa legítima de dois lares em simultâneo.

Análise da Cena 10 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

D. Madalena e Manuel de Sousa preparam-se para tomar o hábito. Por causa disso, o espaço da ação muda, passando esta a decorrer na igreja de S. Paulo.


Didascália inicial

▪ Espaço:
- igreja de S. Paulo, um espaço solene;
- é neste espaço que vai ocorrer a cerimónia da tomada de hábito, a qual implica o abandono dos bens terrenos por parte de Manuel de Sousa e D. Madalena, incluindo a própria filha, o que lhe confere um caráter trágico.

▪ Elementos do cenário – predominantemente religiosos:
- o coro
- o altar-mor
-dois escapulários dominicanos
- o órgão

▪ Personagens:
- os frades que constituem o coro
- o Prior de Benfica
- Manuel de Sousa
- o Arcebispo
- os clérigos
- Jorge
- Madalena

▪ Ambiente: as personagens estão envolvidas numa cerimónia religiosa; Manuel de Sousa e D. Madalena estão ajoelhados e de hábito vestido para professarem.


Manuel de Sousa, ao adotar o hábito, muda o nome para Frei Luís de Sousa, o qual dá o título à obra. Esta mudança de nome constitui a morte simbólica da personagem: Manuel de Sousa morreu para o mundo e, em seu lugar, surge um novo ser: Frei Luís de Sousa.
A fala do Prior traduz, exatamente, estas ideias: “… pois em tudo quisestes despir o homem velho [0 deixar para trás tudo o que fostes], abandonando também ao mundo o nome que nele tínheis!”. Esta fala quer dizer que Manuel de Sousa Coutinho, ao professar, vai renunciar a mundo, como se morresse, e inicia um novo ciclo, uma nova vida, que passa também pela adoção de um novo nome. O mesmo se pode afirmar a propósito de D. Madalena: “– Sóror Madalena!”.


Função do coro

O coro dos frades testemunha a tomada de hábito de Manuel de Sousa e D. Madalena, uma ocasião de recolhimento e entrega a uma nova vida, transformando-o num momento de grandiosidade.
A recitação litúrgica confirma a decisão de “despir o homem velho” e “morrer” para o mundo.
Note-se que a função tradicional do coro da tragédia clássica de prever os acontecimentos é desempenhada por Telmo Pais.

Análise da Cena 9 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

O assunto desta cena é a tentativa frustrada de D. Madalena de mudar o seu destino e o da sua família, seguida da resignação e aceitação do futuro.


Evolução do estado de espírito de D. Madalena

▪ Inicialmente, D. Madalena mostra-se inconformada com a decisão do marido.

▪ Posteriormente, como não vê saída para a situação, apela a Deus que a ampare, apelo esse que é traduzido pelas palavras do coro: “Fiant aures tuae intendentes; in vocem deprecationis meae” (Que os vossos ouvidos estejam atentos à voz da minha súplica).

▪ No final da cena, parece tomar consciência de que nada há a fazer, resigna-se e conforma-se com o seu destino.

▪ É de notar que a tomada de hábito por parte de D. Madalena não resulta da sua vontade ou de qualquer crença de que aquela é a solução adequada à situação. De facto, ela luta até ao fim pelo seu amor e, só quando se apercebe que Manuel de Sousa já partiu para a cerimónia da tomada de hábito, abdica da sua felicidade e aceita a decisão do segundo marido (“Ele foi?”; “E eu vou.”), colocando o seu destino nas mãos de Deus.

▪ Para D. Madalena, a religião constitui o derradeiro refúgio (“refúgio de infelizes”) para as adversidades da sua vida.

sábado, 18 de janeiro de 2020

"Os peixes grandes comem os pequenos", Bruegel

Tópicos de análise:
a) Descrição do quadro;
b) Simbologia;
c) Crítica;
d) Relação com o Sermão de Santo António.

Pieter Bruegel, o Velho, de origem holandesa, foi o maior pintor flamengo do século XVI, nascido provavelmente em 1525, na cidade de Breda, e falecido a 5 de setembro de 1569, em Bruxelas. Uma das suas obras, “Os peixes grandes comem os pequenos”, é uma pintura a tinta de 22 X 29 cm, datada de 1556, encerra uma alegoria profundamente crítica: note-se que os homens e os peixes se misturam, pelo que a alegoria é dirigida a ambos.
O quadro é dominado por um enorme peixe morto numa margem de um curso de água. O animal está a ser esventrado por dois homens, um deles com uma faca enorme, maior do que ele mesmo, e o outro, suspenso numa escada segurando um tridente. De dentro do grande peixe, saem muitos outros mais pequenos, que aquele engoliu. Pela boca, aberta, saem-lhe vários desses peixes, o que poderá indiciar uma espécie de “indigestão”, resultado do facto de ter comido tantos que teve de os vomitar. Da boca desses peixes engolidos pelo maior saem outros mais pequenos.
Na imagem, observamos diversos homens à pesca, barcos, uma ilhota em segundo plano e o que parece ser uma localidade piscatória bem em fundo, entre outros elementos. Na água, são visíveis também peixes que comem outros mais pequenos. No barco, encontram-se três homens, estando um deles, de faca na boca, com a qual esventrou um peixe grande, a retirar outro mais pequeno do seu interior. Em terra, vislumbramos outros homens, ocupados com diversas tarefas (pendurar peixes numa árvore, pesca, etc.), bem como figuras com pernas humanas e corpo de peixe, simbolizando que estes peixes e os seus vícios são também, ou afinal, praticados pelos seres humanos. No céu, é visível um peixe voador que se precipita, de boca aberta, sobre o grande, o que pode representar a voracidade exagerada destes animais (alegoricamente, dos homens), pelos mais diversos motivos: poder, bens materiais, etc.
A leitura simbólica da imagem sugere que, embora possamos ser predadores, isto é, explorar, dominar, etc.) dos mais fracos, podemos acabar por ser presas de outros mais agressivos ou poderosos.
Se relacionarmos o quadro com o Sermão de Santo António, é possível verificar que existe uma sintonia entre as duas obras, desde logo porque o texto é alegórico e, enquanto tal, representa características do ser humano nos peixes. Tal como estes se comem uns aos outros e os grandes comem os pequenos, também os homens o fazem (ou seja, também os indivíduos se exploram e os mais fortes, os mais fracos), podendo ser predadores dos seus semelhantes, e servir de presas para outros, uma espécie de cadeia alimentar simbólica.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Análise das Cenas 7 e 8 do Ato III de Frei Luís de Sousa


● D. Madalena, acompanhada de Frei Jorge, deseja entrar no compartimento, pois ouviu vozes conversando dentro e, supondo que uma delas é a de Manuel de Sousa, deseja falar com ele. A sua entrada em cena mostra-nos uma mulher «desgrenhada e fora de si, procurando com os olhos todos os recantos da casa», sinal de que quer desesperadamente encontrar Manuel de Sousa e julga que a estão a impedir. D. Madalena “vive” estas duas cenas desesperada e completamente dominada pelos sentimentos, ao gosto romântico, sem controlo sobre as suas emoções, como se pode comprovar através da didascália “(Entrando desgrenhada e fora de si, procurando, com os olhos, todos os recantos da casa)”.


● D. Madalena deseja falar com ele por um motivo claro: tentar remediar a situação, impedir a tomada de hábito. Para tal, argumenta que talvez estejam a agir de forma precipitada, ao acreditarem nas palavras de “um romeiro, um vagabundo… um homem enfim que ninguém conhece”, mas Manuel de Sousa, tratando-a novamente pelo primeiro nome, contraria-a, jurando-lhe que o amor de ambos é impossível. Ele mostra-se decidido a aceitar o seu destino, chamando a atenção de D. Madalena, na cena 8, para a impossibilidade de o mudarem.


● Esta postura diferente de Manuel e Madalena é facilmente justificável: ele conhece toda a verdade, ou seja, que o Romeiro é D. João de Portugal, ao contrário dela, que ainda ignora este facto, e vê a entrada no convento como a única solução digna para a situação. E critica mesmo a esposa e, num tom ríspido e decidido, despede-se dela.


● O tom inicial com que Manuel de Sousa se dirige à esposa é ríspido e frio, tratando-a, de forma formal, por “senhora”, o que a deixa magoada: “Oh, que ar, que tom, que modo esse com que me falas.”. Comovido (“enternecendo-se”), Manuel trata-a então pelo nome próprio, mas logo cai em si e retoma a formalidade e rispidez iniciais.
De facto, ele dirige-se à esposa usando diferentes formas de tratamento:
. formal (“senhora”): atitude de distanciamento;

. familiar (“querida”): atitude de proximidade, de intimidade.


● Esta oscilação das formas de tratamento traduz o contraste entre o amor que Manuel de Sousa sente por D. Madalena (que lhe corresponde) e a dor de não o poder cultivar e marca a despedida emotiva entre ambos.


● Na parte final da cena 7, Telmo procura falar à parte com Frei Jorge (“Tenho que vos dizer, ouvi.”) e os dois “Conversam ambos à parte.”. Embora não saibamos as palavras que trocaram entre si, é fácil deduzir que o velho aio estará a dar seguimento à solicitação de D. João, tentando convencer o frade de que o Romeiro é um impostor. A finalidade é evitar a destruição da família, nomeadamente de Maria.


● Ao constatar que a sua tentativa fracassou, procura fazer o mesmo junto de D. Madalena, mas sem sucesso, visto que Frei Jorge o impede de falar com ela: “Telmo sai com repugnância, e rodeando para ver se chega ao pé de Madalena. Jorge, que o percebe, faz-lhe um sinal imperioso; ele recua, e finalmente se retira pelo fundo.”.


● Por que razão age Frei Jorge assim?
Contrariamente a D. Madalena, o frade sabe que o Romeiro é D. João de Portugal, por isso, enquanto membro do clero, assume a defesa da verdade dos factos, impedindo Telmo de mentir para salvar Maria. Ele não pode aceitar uma mensagem que iria contra as leis de Deus. Na sua perspetiva de religioso, a única solução para a situação será o ingresso na vida monástica. Pelo contrário, se tivesse aceitado a proposta de D. João via Telmo, estaria a ser conivente com uma relação adúltera e bígama. Estando D. João vivo, ali ou na Palestina, o segundo casamento de D. Madalena com Manuel de Sousa era nulo. Eles viviam em pecado e Maria era uma filha ilegítima. Esta situação, agora que a verdade é conhecida, não pode continuar.


● A cena 8, na sequência da anterior, confirma as atitudes contrastantes de Manuel e de D. Madalena:
- Madalena: crê que é possível recuperar a sua família e que a mensagem do Romeiro não passou de um embuste (cena 7);
- Manuel: não vê salvação e, decidido, enfrenta a vida religiosa.


● As didascálias ajudam a evidenciar o estado de espírito e a postura de Manuel de Sousa [“(Caindo em si e gravemente)”, “(Tomando os hábitos de cima do banco.)”, “(Vai para a abraçar e recua)”, “(Foge precipitadamente pela porta da esquerda)”]: racional e determinado, pega nos hábitos que vai usar juntamente com D. Madalena, recusa abraçá-la e sai rapidamente para evitar mais sofrimento.


● A fala final de Manuel de Sousa da cena 8 está prenhe de expressões que associam a decisão tomada a uma morte simbólica: “Para nós já não há senão estas mortalhas (tomando os hábitos de cima da banca), e a sepultura de um claustro.”. A referência aos condes de Vimioso é significativa neste contexto.

Análise da Cena 6 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

D. João de Portugal sai de cena, numa atitude de grande dignidade, depois de confirmar que D. Madalena já não o ama.


● A cena abre com novo equívoco: D. João, ao ouvir D. Madalena chamar por seu marido (“Esposo, esposo!”) e pensando que a esposa já sabe quem ele realmente é, julga por instantes que ela se refere a si e sente-se tentado a abrir-lhe a porta, como ela pedia. Por momentos, a ilusão do amor toma conta de D. João e o que solicitara a Telmo parecer ser esquecido (“É ela que me chama! Santo Deus! Madalena que chama por mim…”; “Que encanto, que sedução! Como lhe hei de resistir?!”), mas rapidamente toma consciência que a esposa se referia a Manuel de Sousa.
Seja como for, é mais do que óbvio que D. João ama a esposa e, mesmo que por momentos, estaria disposto a abandonar todas as resoluções se ela lhe correspondesse.


● Quando se apercebe do equívoco (quando ela nomeia “Manuel”, chamando-lhe “meu amor”), D. João fica furioso e dirige-se para a porta, para se vingar de D. Madalena, provocando-lhe um choque profundo (“Investe para a porta com ímpeto; mas para de repente.”). No entanto, reconsidera e mantém a decisão que anunciara a Telmo, saindo violentamente da cena (sinal da sua deceção), o que confirma que se trata de um homem digno, íntegro, generoso, abnegado e virtuoso. Esta saída intempestiva da sala mostra também o quão solitário é e frustrado se sente: “Ah! E eu tão cego que já tomava para mim!...”.


● Tendo em conta a sua postura, o seu comportamento e atitudes desde que entrou em cena, podemos concluir que, quanto à caracterização, D. João de Portugal:
» simboliza as virtudes do cavaleiro cristão: amor ao rei e à pátria, combate contra os inimigos da fé, pelos quais expõe a sua vida, sujeitando-se a maus-tratos, privações, distância, ausência de notícias e saudade da esposa durante mais de 2º anos;
» revela grande generosidade e grandeza de alma e caráter ao querer preservar a honra de D. Madalena, optando, não obstante a sua dor, frustração e mágoa pela perda da esposa, passar por impostor, mentiroso, apagando-se voluntariamente, para tentar remediar o problema que o ser regresso gerou e preservar a família da destruição.

domingo, 12 de janeiro de 2020

Análise da Cena 5 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

A anagnórise cumpre nova etapa: Telmo Pais conhece a identidade do Romeiro.
Nesta cena, dá-se o tão esperado encontro entre Telmo e D. João, o qual confirma que o amor por este foi suplantado pelo amor a Maria. Por outro lado, nela assistimos ao arrependimento do Romeiro/D. João e ao pedido ao velho aio para que reverta a situação criada.


● A cena abre com um equívoco, técnica que Garrett utilizou mais do que uma vez na peça: o Romeiro pensa que a prece de Telmo se dirige a si, quando, na verdade, o motivo da preocupação do velho criado era Maria, o que é confirmado pelo aparte: «Já não sei pedir senão pela outra.».


● O que permite o reconhecimento de D. João de Portugal é a voz e, posteriormente, o rosto: «Que voz!»; «Esta voz… esta voz!»; «oh! é o meu filho todo: a voz, o rosto…». De facto, assim que o Romeiro entra em cena, Telmo encontra algo de estranho na sua voz, algo que lhe faz lembrar, nas inflexões, no timbre, uma voz familiar e conhecida.


● Entre as duas personagens existe uma relação paternal, de amizade e de lealdade. Durante o diálogo entre ambos, D. João duvida que essa relação se mantenha após tantos anos de ausência: «E contudo, vinte anos de ausência, e de conversação de novos amigos, fazem esquecer tanto os velhos!...». De facto, com a decorrência do diálogo, D. João vai-se apercebendo, gradualmente, do conflito com que o velho aio se debate. Começa por manifestar algumas dúvidas sobre se a longa ausência não alterou em nada o amor de Telmo e compreende, finalmente, a dimensão desse conflito no momento em que o criado lhe fala de Maria.


● No início da cena, Telmo faz uma pergunta idêntica à que Frei Jorge fizera ao Romeiro e a resposta, para além dos gestos com que descobre o rosto, é semelhante, só que dada de forma muito mais sentida, parecendo bem mais melindrado do que aquando do encontro com D. Madalena. A repetição do pronome indefinido «ninguém» e a razão que apresenta para a sua utilização («se nem já tu me conheces!») evidenciam os seus sentimentos (perplexidade, tristeza, dor, mágoa…) e a sensação de anulação, motivada pelo esquecimento a que foi votado por todos os que lhe eram queridos, incluindo agora também a dúvida sobre o velho criado.


● No final, D. João de Portugal reconhece o quão imprudente, injusto e cruel foi: «Fui imprudente, fui injusto, fui duro e cruel.». E reconhece também a sua anulação: ninguém queria o seu regresso, exceto Telmo e mesmo este mudou de comportamento neste ato, ninguém desejava sequer que estivesse vivo, todos contavam com a sua morte e sobre ela foram construídos um amor e uma família. A partir desse momento, D. João de Portugal não existe, é ninguém: «Na hora em que ela creditou na minha morte, nessa hora morri. Com a mão que deu a outro riscou-me do número dos vivos.».


● Note-se que Telmo tinha razão com a sua superstição segundo a qual D. João de Portugal iria regressar e cumprir a promessa feita na carta enviada a D. Madalena na véspera da batalha de Alcácer Quibir: primeiro, visitaria a esposa e, depois, não se iria sem «aparecer ao seu velho aio». Com efeito, a primeira visita foi, efetivamente, para D. Madalena e a segunda para o velho aio.


● A atitude do Romeiro foi-se alterando desde o momento da sua chegada até esta cena. De facto, quando fez a sua aparição diante da esposa, estava profundamente magoado e dominado por instintos de vingança por D. Madalena ter refeito a sua vida com outro homem, construindo a sua felicidade sobre a sua morte, o que Telmo considera injusto. Depois de o velho aio ter confirmado as diligências da esposa, bem como a sua virtude e honra, revela-lhe a sua resolução e pede-lhe que a cumpra: o Romeiro era um impostor e tudo não passara de um embuste. De seguida, desaparecerá para sempre e salvará a nova família de D. Madalena: sabedor de que havia uma filha na equação, sentiu-se responsável pelo «mal feito».


● O objetivo do Romeiro ao procurar o seu velho criado é simples: aferir a verdade do que ouvira sobre o seu desaparecimento e o comportamento de D. Madalena, isto é, que fizera todos os esforços para saber notícias e para encontrar o primeiro marido após a batalha de Alcácer Quibir. E fê-lo junto de Telmo, porque era o único em quem confiava e que era seu amigo.


● Confirmada a verdade, D. João expõe a sua decisão: pede a Telmo que minta e diga que o Romeiro era um embuste, para poder reparar o mal infligido à atual família de D. Madalena. Mostra-se assim disposto a abdicar da sua própria existência, a anular-se enquanto D. João de Portugal, para impedir a destruição daquela família. D. João de Portugal revela, deste modo, um extraordinário espírito de abnegação, o que mostra que é uma personagem exemplar.


● No entanto, Telmo não acata o pedido e, apesar de reconhecer a nobreza do gesto e o caráter de D. João, questiona a possibilidade de se reverter a situação, mostrando, assim, a sua crença na inexorabilidade do Destino e o momento trágico vivido por todos. Note-se que Telmo seria a única pessoa que poderia levar a cabo tal proposição, já que ninguém conhecia melhor D. João do que ele e ansiava pelo seu regresso, o que lhe conferia toda a credibilidade para fazer passar o embuste como credível junto das outras personagens. Seja como for, nada disto poderia resolver o conflito do aio, visto que viveria sempre com o remorso de ter renegado o velho amo, «um filho».


● Os apartes de Telmo adquirem grande relevância neste passo da obra, pois revelam todo o drama vivido por Telmo: o conflito interior entre o amor a Maria e o amor a D. João e a conclusão de que aquele superou este. Como não o consegue revelar diretamente ao seu primeiro amo, fá-lo através dos apartes, que revelam igualmente os seus sentimentos e emoções.


● Esta cena confirma o que a anterior deixava adivinhar: a transformação psicológica sofrida por Telmo.
De facto, o velho criado, depois de ter desejado e alimentado o regresso do antigo amo durante 21 anos, apercebe-se de que, afinal, já não o deseja, uma vez que tal implicaria que Maria passasse a ser filha ilegítima e, por outro lado, constata que o amor pela filha de Manuel de Sousa e D. Madalena superou o que sentia por D. João.
Depois de este último se ter certificado de que a esposa não se poupara a esforços para o encontrar, decide pedir a Telmo que minta, que diga que o Romeiro é um impostor e o velho escudeiro sente-se tentado a acatar o pedido, apenas para salvar Maria, que também considera sua filha.
Deste modo, pode concluir-se que, ao longo da peça, Telmo se humaniza, pois deixou de ser a figura inflexível e atormentadora de D. Madalena a que fomos apresentados no ato I, para passar a ser alguém angustiado e dilacerado por um conflito interior que o consome, acabando por abdicar dos seus princípios por amor a Maria.


A figura de D. João de Portugal em Frei Luís de Sousa

De acordo com Luís de Amaro Oliveira (Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, p. 162):

A. D. João de Portugal é uma entidade dupla:

1 – É uma entidade abstrata (desde o começo até à cena 15 do segundo ato), porque
a) até ao fim do II ato, não tem senão uma existência física provável (é a simples representação de um indivíduo dado como morto);
b) não tem uma existência moral individualizada até aos fins do mesmo ato (é um simples vago de Fatalidade e de Destino – vestígio literário da vontade superior dos deuses da tragédia grega).

2 – É uma entidade concreta (desde a cena 15 do segundo ato até ao fim da peça), porque
a) a partir dos fins ao ato II, surge na figura do Romeiro;
b) procura interferir voluntariamente na ação dramática, esforçando-se por impedir a tomada de hábito de Madalena.

B. D. João de Portugal não é, em rigor, uma personagem real, no sentido dramático e vivo da palavra:

1 – Não é uma personagem real como entidade abstrata, porque não atua direta e voluntariamente na ação dramática. Não é ele quem vem, são os outros quem o traz ao conflito. Mas, como fonte de toda a energia dramática da peça, está quase permanentemente em cena. E permanece através:
a) das evocações angustiosas de Madalena;
b) das convicções, sempre renovadas, de Telmo no seu regresso;
c) do sebastianismo de Maria (se D. Sebastião pode regressar, porque não D. João?) (II, 1);
d) das intuições de Frei Jorge e Manuel de Sousa (II, 9);
e) da crença nos agouros e sinas (II, 1), nas revelações dos sonhos (III, 11), nas almas penadas (I, 1).

2 – Não é uma personagem real como entidade concreta, porque, embora atuando direta e voluntariamente, a sua atuação carece de força e de intenção. É como se toda a natureza simbólica de que viveu nos dois primeiros atos extravasasse e o tivesse esvaziado de autenticidade humana. A simples prova da sua existência é suficiente para o desenlace.
De facto:
- Quem pensa mais seriamente no destino do Romeiro após a sua identificação?
- Quem adere em profundidade ao seu drama de prisioneiro, de marido ultrajado, de amigo esquecido?
- Quem acredita na eficácia das suas tentativas de solução da crise?

C. D. João de Portugal é uma personagem virtual

D. João é a presença simbólica de uma «força trágica» permanente que atua sobre as personagens reais, exacerbando-lhes as paixões, avolumando o clima patético através de situações psicológicas progressivamente tensas até ao desfecho.

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