“Um adeus português” foi publicado
originalmente em 1958, na obra No Reino da Dinamarca, e constitui uma
crítica ao regime do Estado Novo r ao ambiente persecutório e controlador do
Portugal dessa época.
A origem do poema foi explicada pelo
próprio poeta. Assim, O’Neill ter-se-ia apaixonado por uma mulher francesa
chamada Nora Mitrani e desejava ir a Paris encontrar-se com ela, porém
elementos da sua família opunham-se à sua ida e meteram uma «cunha» junto da
PIDE no sentido de lhe negarem o passaporte.
Deste modo, o poeta foi chamado à
sede da polícia, onde o questionaram a propósito da razão da sua viagem a
França e se conhecia a senhora Mitrani. O’Neill respondeu afirmativamente,
tendo o inspetor que o interrogava retorquido o seguinte: “Se calhar V. quer
ir, porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola.”. O poeta respondeu que
Nora não era uma gaja e que não tinha cachola. Na sequência deste episódio, não
conseguiu obter passaporte durante vários anos.
Quando Alexandre O’Neill pode,
finalmente, ir ao seu encontro em Paris, já ela tinha falecido, vitimada pelo
cancro, mas ficou a saber que Nora tinha lido o seu poema e ficado muito
comovida com o mesmo.
● Título
No título do poema, destacam-se duas
palavras:
• o nome «adeus»: a despedida;
• o adjetivo «português»: o
sentimento nacional.
O título anuncia o final de um amor
e, em simultâneo, aponta para uma crítica ao modo de ser português.
De facto, não é a falta de amor que
leva à separação dos apaixonados, mas a condição e a vivência no país.
● Tema
O tema do poema é a inevitável
despedida de dois amantes, de um amor que desde o início estava
condenado à impossibilidade [é o tema do amor impossível ou
impossibilitado], dado que os apaixonados pertencem a mundos diferentes e
opostos – enquanto ela parte para longe, para a “cidade aventureira”, ele
permanece limitado à pequenez burocrática e à “dorzinha quase vegetal” em que
entretém a passagem do tempo.
Além do sofrimento motivado pela
separação dos amantes, destaca-se o diagnóstico sobre Portugal e a maneira
portuguesa de viver, resignada ao lento apodrecimento dos afetos, sob o efeito
de um mal-estar quase nauseante que contagia, aliás, toda a visão que esta
poesia tem do país.
Jornal Público
Além deste tema central, outros estão
presentes na composição poética:
▪ o tema da separação e
do adeus;
▪ o tema (da imagem) de
Portugal;
▪ o tema da revolta e da
denúncia;
▪ o tema de um país
outro.
● Estrutura interna
• 1.ª parte (vv.
1-4): O sujeito poético interpela o «tu» (a mulher amada), indiciando já a
despedida e a separação iminentes entre ambos.
▪ O sujeito poético
interpela, ao longo da composição, um «tu», como se pode comprovar pela
ocorrência de formas de segunda pessoa:
» pronomes: «tu» (v. 5),
«te» (v. 52), «ti» (v. 55);
» determinantes: «teus»
(v. 1), «teu» (v. 51);
» formas verbais:
«podias» (v. 5), «mereces» (v. 35), «és» (v. 41), etc.
▪ Apresentação do «tu» /
da mulher:
» possui «olhos altamente
perigosos»: olhar muito sedutor, daí perigoso;
» tem uma relação de amor
com o sujeito poético (“vigora ainda o mais rigoroso amor”);
» esse amor e a mulher
são puros, ainda que marcados pela sensualidade da «cama»;
» uma sombra ameaça esse
amor, a de uma «angústia já purificada».
Esta mulher, o «tu» a quem os sujeito
poético se dirige, é aquela que ele ama, mas vai partir de Portugal para outro
país, pois não se enquadra no ambiente que se vive cá, marcado pela opressão e
podridão, pela repressão policial, pela hipocrisia, pela mesquinhez. É alguém
que não se identifica com a monotonia e a ausência de liberdade que asfixia.
▪ A primeira estrofe
constitui, pois, a abertura do diálogo (simulado) entre o sujeito poético e o
«tu», do qual sabemos muito pouco, além do atrás referido.
▪ A relação entre os dois
é muito próxima, proximidade essa que é pontuada pelo uso recorrente de formas
de segunda pessoa do singular. Sabemos também que é uma história de amor (“nos
teus olhos (…) vigora ainda o mais rigoroso amor”) e que esse sentimento parece
condenado à partida: o advérbio «assim» possui um valor temporal e aspetual que
antecipa o fim da relação (na medida em que se institui a oposição entre
«ainda» e «já não»). Por outro lado, a relação é intensa, mas acaba,
inevitavelmente, com o afastamento e a despedida dos dois.
▪ No poema, está presente
também um «nós», marcado pelas formas de 1.ª pessoa do plural («apodrecemos»,
«giramos», «nossa»). No entanto, o «nós» que surge no poema não é sempre o
mesmo. Num caso, é o resultado do «eu» + o «tu»; no outro, é o resultado da
junção do «eu» com ?.
• 2.ª parte (vv.
5-49): O sujeito poético apresenta as razões que impedem o amor entre si e a
sua amada.
▪ As seis estrofes
seguintes (2.ª à 7.ª) constituem um bloco único, ligado pela anáfora («Não»)
que inicia cada uma delas. O advérbio de negação contribui para a simulação do
diálogo, nomeadamente nas segunda e sexta estrofes, em que se estabelece um
jogo de polifonia: a ocorrência do advérbio faz ouvir a voz do «tu» simulado,
como interrogação total a que responde(ria) o advérbio (em posição inicial), ou
apenas como hipótese, quando a ocorrência do advérbio marca a asserção negativa
(“tu não podias ficar presa comigo” e “tu não mereces esta cidade”).
Esquematicamente:
[eu podia
ficar contigo?] [tu podias
ficar comigo]
↑ ↑
Não tu
não podias ficar comigo
▪ A segunda estrofe
clarifica que o «tu» é efetivamente uma mulher, a partir da forma feminina do
adjetivo («presa»). Ela não se enquadra no conjunto de situações elencadas e,
por isso, tem de partir. A anáfora (iniciada pelo advérbio de negação «Não»)
mostra precisamente os motivos que tornam impossível o amor entre o
sujeito poético e a mulher representada por «tu».
▪ A primeira dessas
situações surge precisamente na segunda estrofe: ela não poderia ficar presa
como ele (mas ele fica). A quê?
» À roda em que ele
apodrece: a roda equivale a um círculo fechado e surge associada à forma verbal
«apodreço».
» À pata ensanguentada:
. a pata e outros elementos evocam as touradas:
o animal avança pelo túnel, ferido («vacila»): a pata ensanguentada (o touro),
mugindo (a vaca), sugerindo dor.
▪ A anteposição do
adjetivo ao nome em “uma velha dor” sugere a transição da dor (motivada pelo
ferimento) para a dor (simbólica) de uma tourada (simbólica) [numa arena que é
o mundo, a vida?].
▪ Assim, a roda em que o
sujeito apodrece pode ser interpretada como a arena de uma tourada (real e
simbólica). Note-se que a forma verbal «apodrecemos» se encontra num plural,
isto é, a podridão afeta um coletivo e não apenas o eu.
▪ Os primeiros versos da terceira estrofe indiciam uma vida
rotineira e monótona, feita de burocracia.
▪ Os versos seguintes
desnudam a miséria, uma “miséria que sobe aos olhos”, indiciando um movimento
(ou sensação) de vómito sugerido(a) pelo movimento ascendente denunciado pelos
predicados verbais (“sobe aos olhos”, “vem às mãos”).
▪ A enumeração dos
elementos repulsivos, culminando com “o modo funcionário de viver”, evoca a
tradição poética neorrealista, de que serão expoentes a figura ou a relação com
o “patrão Vasques”, de Bernardo Soares, o Coro dos Empregados da Câmara
e Mataram a Tuna, de Manuel da Fonseca.
▪ Esta enumeração
gradativa evolui dos aspetos positivos para os negativos, realçando o
caráter opressivo da cidade.
▪ Na quarta estrofe, a
«cama» simboliza o amor, um amor sensual, erótico, mas também marcado pela
perspetiva de fim ou morte (“trânsito mortal”).
▪ O dia é “sórdido /
canino / policial” (tripla adjetivação): estes adjetivos, juntamente com
«mortal», denunciam o clima de perseguição política e policial e de repressão
vivido na cidade. Por sua vez, o adjetivo «puríssima» sugere o caráter positivo
da mudança que é necessária.
▪ Por outro lado, o dia,
que nasce da madrugada, simboliza, ordinariamente, a abertura, o nascimento, e
estaria associado à promessa e à pureza, porém, neste caso, corresponde à
noite, isto é, ao fecho, à morte.
▪ A quinta estrofe denuncia
os brandos costumes que caracterizam a sociedade portuguesa da época, aos quais
a mulher não poderia ficar presa.
▪ A imagem da dor trazida
pela mão é bastante significativa e está associada à imagem de trazer pela
tela, como um cão. Esta passagem possui um valor irónico-caricatural: trazer a
dor docemente pela mão, dor à portuguesa (os brandos costumes).
▪ Outra das razões pelas
quais o amor é impossível surge na sexta estrofe e tem a ver com o facto de a mulher não
merecer aquela cidade, caracterizada pela náusea, pela idiotia, pela morte e
pelo absurdo.
▪ A sétima estrofe
apresenta duas imagens diferentes de cidade. A mulher «pertence» a uma cidade
(quase) ideal, caracterizada pela aventura, pelo amor, pelo comércio puro, uma
cidade, em suma, onde existe liberdade e modos de vida alternativos.
▪ Já o sujeito poético
vive numa cidade que asfixia, que prende, que oprime, uma cidade onde existe “a
moeda falsa do bem e do mal”. Esta representa, metonimicamente,
Portugal, que contrasta com a imagem da cidade ideal apresentada anteriormente.
▪ Nesta estrofe, estão
presentes temas surrealistas, como o encontro, o acaso, o amor louco.
▪ Em suma, deste bloco de
seis estrofes, as cinco primeiras apresentam uma imagem não poética de
Portugal, enquanto a sexta (no conjunto do poema, a sétima) retrata um outro
lugar alternativo. Esta imagem remete para dois espaços que correspondem a duas
identidades nacionais e/ou dois espaços simbólicos (política e culturalmente):
Lisboa Paris
↓ ↓
Portugal França
↓ ↓
ditadura liberdade
↓ ↓
brandos
costumes alternativa
▪ Não esqueçamos a origem
do poema: Nora Mitrani, francesa surrealista que O’Neill conhecera e Lisboa e
por quem se apaixonara, parte da França; o poeta é impedido de se lhe juntar,
pois a PIDE confisca-lhe o passaporte e ele, impossibilitado de sair do país,
nunca mais a volta a ver, pois, entretanto, ela falece de cancro. No entanto, o
que é significativo no poema não é propriamente uma leitura biográfica, antes
passa pelo saborear a sua mensagem: de amor, de dor, de revolta e de utopia.
• 3.ª parte (vv.
50-55): Na última estrofe, assistimos à despedida e separação entre o sujeito e
a sua amada.
▪ O sujeito poético
despede-se da mulher amada (“digo-te adeus”), que vai partir (“o teu
desaparecimento”), despedida essa que é marcada, simultaneamente, pela ternura
e pela dor (“Nesta curva [símbolo da mudança de direção da relação entre os
dois, isto é, da sua separação] tão terna e lancinante”).
▪ A separação [e a dor
que lhe está associada], embora não tenha sido ainda concretizada, é sentida já
como tal: “que vai ser que já é” (v. 53).
▪ É o momento do
desaparecimento irremediável do amor – marcado pela partida da mulher – para
além da curva da vida, um momento de dor e de frustração, comparado a um
tropeço de ternura de um adolescente.
▪ Há uma certa circularidade
no poema, com marcas de narratividade, dado que a separação é anunciada na 1.ª
estrofe e retomada na última.
• Crítica
Em suma, o poeta critica, ao longo
deste poema, o ambiente vivido na época em Portugal:
▪ compara-o a uma
tourada, um espetáculo sangrento, de dor e morte;
▪ critica o povo
português por se conformar com a vida que tem (vv. 31-35 e 38-40) –
conformismo;
▪ critica a repressão
política do Estado Novo, bem evidente na referência ao medo, nos versos 23 a
29;
▪ critica a miséria e a
burocracia (vv. 12-21);
▪ critica a podridão e a
sordidez;
▪ critica o medo, o
desespero e o policiamento.