Esta composição de Vinicius de Moraes foi publicada inicialmente em 1959 no livro Novos Poemas II e foi divulgada, em 1962,
na coletânea de poemas engajados Violão de Rua, e pode ser lida como uma
metáfora para a construção da consciência de um trabalhador.
O poema é antecedido de uma epígrafe,
extraída do Evangelho de São Lucas (Lc 5, 5-8), um trecho parafraseado por
Vinicius para compor a estrutura do poema e proporcionar a sua leitura. A
passagem bíblica corresponde à tentação sofrida por Jesus no deserto. Nela,
este elevado pelo Diabo ao alto de um monte e é aí tentado a adorar o seu
opositor. O texto de Vinicius retoma essa ideia claramente através de uma
estrofe em que o operário é desafiado a abandonar a sua ética em troca de
favores do seu patrão, após este compreender que nem por meio da violência o
convenceria:
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
A escolha desta passagem para iniciar um poema que
retrata o operário contribui para o entendimento do poema e encontra
justificação nas bases sociais de meados do século XX. A epígrafe funciona como
um pequeno roteiro para o desenvolvimento do poema, que vai da descoberta do
sofrimento até à negação do tentador.
O título do
poema contém a ideia de um operário que não constrói somente o mundo ao seu
redor, mas que vai dando conta da ampliação de si mesmo e da grandiosidade do
seu trabalho de maneira poética e crítica, quando já não aceita a sua condição
de operário, isto é, é um operário em construção de si mesmo.
O poema inicia-se com a narrativa em trono de um operário
da construção civil e do seu quotidiano, sem que ele consiga perceber a
importância do seu trabalho para a sociedade, que o ato de construir uma casa
tinha um grande significado para os que iriam morar nela. De facto, a abertura
da composição faz-se com a apresentação do papel do trabalhador na construção
das 6coisas e o desconhecimento do significado e impacto da sua profissão,
traduzido pela alienação verificada na multidão que empilha os tijolos com suor
e cimento.
A comparação com “um pássaro sem asas” reflete a condição
de artífice do operário, que, sem grandes expectativas, alcançava as alturas
com o suor do seu trabalho. Apesar de o operário desconhecer a importância do
seu trabalho, a sua ação não só é mais importante que a coisa construída, mas
também faz o trabalhador ser e fazer mais, de maneira reflexiva: “Mas ele
desconhecia, / Esse fato extraordinário, / Que o operário faz a coisa, / E a
coisa faz o operário”. Estes versos conceituam a capacidade transformadora do
trabalho em relação ao produto do seu trabalho. O vocábulo «coisa» aponta para
a ideia da alienação e coisificação do trabalho, sendo o trabalhador alienado e
coisificado transformado em «coisa» pelo sistema de produção. Por seu turno, o
paradoxo «liberdade» e «escravidão» significa que o produto do seu trabalho
deveria garantir liberdade ao operário, contudo tal não sucede, pelo contrário
transforma-o num escravo.
Em contraste com a alienação inicial, o funcionário é
tomado por uma súbita revelação e a tomada de consciência de que tudo à sua
volta é fruto do seu trabalho. Essa tomada de consciência dá-se num momento
simples do seu quotidiano, o momento de uma refeição: “À mesa, ao cortar o pão
/ O operário foi tomado / De uma súbita emoção / Ao constatar assombrado / Que
tudo naquela mesa / – Garrafa, prato, facão – / Era ele quem os fazia / Ele, um
humilde operário, / Um operário em construção.”. A imagem do trabalhador
sentado à mesa, cortando o pão (note-se que estes versos podem ser entendidos
como o simples ato de alguém se alimentar, mas também como uma alusão ao partir
do pão feito por Jesus), é o ponto de partida para a “súbita emoção” que o assalta
e o leva a compreender a relação do seu trabalho com o que é produzido por esse
mesmo trabalho. É isso que nos mostra a extensão enumeração: “Olhou em torno:
gamela / Banco, enxerga, caldeirão / Vidro, parede, janela / Casa, cidade,
nação! / Tudo, tudo o que existia / Era ele quem o fazia”.
De seguida, o «eu» poético dirige-se aos “homens de
pensamento”, afirmando que lhes é impossível compreender o que o humilde
operário soube naquele momento. Isto constitui uma conceção anti-intelectual
que contrapõe a noção de homens de pensamento ao humilde operário. A tomada de
consciência do operário prossegue quando ele olha as suas mãos e compreende que
são elas que tornam possível toda a sua obra: “O operário emocionado / Olhou
sua própria mão / […] / E olhando bem para ela / Teve um segundo a impressão /
De que não havia no mundo / Coisa que fosse mais bela.”. Esta constatação
evidencia a descoberta que o trabalhador fez sobre si mesmo, a sua ação
iluminada pela sua capacidade de construir aquilo que a sua mente pensa que é
capaz.
O operário, quando olha para a sua mão, tem a impressão
de que não há coisa mais bela. Note-se que a mão simboliza o trabalho e, em
simultâneo, é uma parte do corpo modificado pelo próprio trabalho, enquanto o
adjetivo «rude» evidencia o sofrimento do corpo do trabalhador. Por outro lado,
o “instante de compreensão” é solitário (“Foi dentro da compreensão / Desse
instante solitário”), valorizando-se, assim, o indivíduo e não o coletivo.
Encontrado esse sentido, o operário encontra a dimensão do poético que há no
seu trabalho: “O operário adquiriu / Uma nova dimensão: / A dimensão da poesia.”,
dimensão que causou a mudança de atitude que trouxe ao operário outras
possibilidades de entender e viver no mundo. Os versos “Cresceu em alto e
profundo / Em largo e no coração” revelam que essa dimensão poética tem as suas
raízes no discurso emocional e é a partir dela que um operário «dizia» e o
outro «escutava», aprendendo a dizer «não». Ou seja, o trabalhador consegue
agora perceber a beleza que existe naquilo que constrói e reconhecer-se a si mesmo
nos produtos que cria. Ele vai-se libertando, gradualmente, do jogo do patrão e
incentivando os outros operários a fazerem o mesmo, a tomarem consciência da
sua força, do seu poder de construção. Esta consciencialização opera-se por
estas vias, ignorando as construções coletivas de luta, como os sindicatos, e
através de um método retórico contrário ao racional. Em suma, a tomada de
consciência social parte da sua função produtiva na sociedade e alcança
dimensões mais amplas, primeiro adquirindo uma conceção estética, da beleza das
suas rudes mãos, até à transformação das suas experiências de vida em poesia. O
trecho em que o operário contempla a sua mão e considera que é a coisa mais
bela do mundo pode parecer contraditório, visto que, de modo geral, a mão de um
operário da construção civil tende a ser grossa, rude e cheia de calos. Deste
modo, como pode ser considerada bela? A beleza que ele vislumbra situa-se além
das aparências; percebe que tem nas suas mãos o poder de transformar o mundo.
O que leva o operário a dizer «não» e a «se fazer forte
na sua resolução» é a perceção das suas condições de vida, a diferença de
condições de vida entre os trabalhadores e os patrões, ou seja, a oposição entre
a pobreza dos primeiros e a riqueza dos segundos, através de várias metáforas,
que o levam a questionar determinadas situações: “Notou que sua marmita / Era o
prato do patrão / Que sua cerveja preta / Era o uísque do patrão / Que seu
macacão de zuarte / Era o terno do patrão / Que o casebre onde morava / Era a
mansão do patrão / Que seus dois pés andarilhos / Eram as rodas do patrão / Que
a dureza do seu dia / Era a noite do patrão / Que sua imensa fadiga / Era amiga
do patrão”. Este patrão é comparado, mais à frente, ao diabo tentando Jesus.
Assim sendo, existe um momento de diabolização da riqueza e de transformar a
pobreza em virtude, o que constitui uma forma simplista de abordar a luta de
classes. Este ato de contestação não é um processo individual, passando o
operário a compartilhar a insatisfação com os seus colegas de trabalho.
Esta ação tem duas consequências. A primeira é a
violência exercida sobre o operário, praticada pelos delatores, que, através de
uma sugestão cifrada do patrão, o agridem. Assim, vê o seu rosto cuspido e o
braço partido, agressões semelhantes às sofridas por Jesus Cristo: “Pois será
entregue aos gentios, e escarnecido, injuriado e cuspido” (Lucas, cap. 18,
versículo 32). A segunda consequência relaciona-se com a ineficiência das
agressões. De facto, o operário, apesar de delatado por colegas e apesar de
agredido repetidas vezes, continua a resistir e a dizer «não», mesmo sabendo
que não seria fácil conviver com a sua própria verdade: “E todo o seu
sofrimento / Misturava-se ao cimento / Da construção que crescia”. O patrão,
percebendo a recusa do funcionário, tenta suborná-lo, oferecendo-lhe poder,
tempo de lazer e mulheres, com a condição de que abandone o «não», no entanto o
operário não reconhece naquilo que vê o poder do patrão, mas sim o trabalho de
quem o construiu: “Um dia tentou o patrão / Dobrá-lo de modo vário. / De sorte que
o foi levando / Ao alto da construção / E num momento de tempo / Mostrou-lhe
toda a região / E apontando-a ao operário / Fez-lhe esta declaração: / – Dar-te-ei
todo esse poder / […] / Será teu se ma adorares / E, ainda mais, se abandonares
/ O que te faz dizer não. / […] / Mas o que via o operário / Que olhava e
refletia / Mas o que via o operário / O patrão nunca veria. / O operário via as
casas / E dentro das estruturas / Via coisas, objetos / Produtos manufaturas. /
Via tudo o que fazia / O lucro do seu patrão / E em cada coisa que via /
Misteriosamente havia / A marca de sua mão. / E o operário disse: Não!”. Assim
sendo, podemos concluir que o subordinado tem uma visão que o patrão jamais
será capaz de compreender: o patrão não lhe podia dar nada daquilo, visto que
fora ele, operário, e os seus companheiros que tinham construído tudo o que
havia. Por outro lado, o operário observa a ampla região em volta da construção
e vê o que o seu patrão não consegue ver: o trabalhador vê casas e muitos
objetos, enquanto a visita do seu patrão se limita ao lucro.
Este passo, em que o operário é desafiado a abandonar a
sua ética em troca de favores do seu patrão, após este tomar consciência de que
nem mesmo a violência o faria mudar de opinião, constitui uma paráfrase da
epígrafe bíblica do poema: o patrão tenta subornar o operário, tal como Satanás
tentara Jesus. No entanto, aquele não compreende, de facto, a recusa do seu
funcionário, que é claro e revela a sua tomada de consciência: “ – Mentira! – disse
o operário / Não podes dar-me o que é meu.”. Da discussão com o patrão, resulta
o silêncio, o vácuo, o eco de tempos passados, de familiares que se foram.
A sensação que se extrai do final do poema remete para a
luta, a dor e o sofrimento, mas também a superação, quando “Uma esperança
sincera / Cresceu no seu coração / E dentro da tarde mansa / Agigantou.se a
razão / De um homem pobre e esquecido / Razão porém que fizera / Em operário
construído / O operário em construção”. Os versos finais são carregados de uma
troca contínua entre aquele que faz e o que é feito, ou seja, o operário
constrói-se na medida em que constrói os seus sonhos, as suas habilidades
refletem quem ele é. Um operário em construção constrói-se a si próprio,
espelha-se no que faz para continuar a realizar um bom trabalho, tal como um
poeta ou um artesão.
Em suma, o poema procura expor o processo histórico de formação
da classe operária e a consciencialização social, a partir da perceção da sua função
produtiva no campo económico e da construção de uma nova forma de perceção do
mundo, que inclui a dimensão estética, a ação coletiva e a necessidade de
adoção de um posicionamento político, que sustenta o «não» do operário ao
patrão. Note-se que toda a composição poética assenta na metonímia, pois o
poeta não foca um trabalhador e um patrão específicos, mas de duas classes que
se situam e vivem em campos opostos: “Via tudo que fazia / O lucro do seu
patrão / E em cada coisa que via / Misteriosamente havia / A marca de sua mão.”
Neste poema, dá-se conta da busca do autoconhecimento e
do reconhecimento de quem se é e do que faz. Muitas vezes, não há uma relação
direta entre o construído e aquele que o fez, pois, quando a construção está
terminada, no exemplo do texto, ela não pertence, de facto, a quem a fez. No
poema, a revolta dá-se quando o operário toma consciência da sua condição e, ao
alcançar a dimensão da poesia, consegue poetizar a sua existência, tornando-se
dono da sua própria vida, mesmo que de maneira figurativa.