Português

domingo, 4 de setembro de 2022

A escola do século XIX em imagens - VIII


John Frederick Lewis, Escola árabe (c. 1850)

    Embora a arte europeia tenda a representar sobretudo, como é natural e expectável, o mundo dos europeus, não faltam, a partir do Renascimento e da expansão europeia, exemplos de pinturas e outras obras artísticas que refletem a descoberta e o contacto com outros continentes, civilizações e culturas. Trata-se de um olhar, de início curioso e ocasional, que se vai tornando mais atento e sistemático à medida que as principais potências do Velho Continente constroem ou consolidam, no século XIX, os seus impérios coloniais.

    John F. Lewis, um inglês que viveu a sua infância no Cairo, registou, nesta pintura a guache e aguarela, o ambiente de uma típica maktab, a escola muçulmana que correspondia sensivelmente ao que hoje designamos por ensino básico. Os rapazes que desejassem prosseguir os seus estudos ingressariam depois numa madrassa. Umas e outras são escolas religiosas, sublinhando a ligação umbilical, também patente no mundo ocidental, entre a escola e a religião. Só que, enquanto na Europa a laicização progressiva da sociedade foi abrindo espaço à separação entre a escola pública, destinada a formar cidadãos, e as escolas da Igreja, vocacionadas para a formação do clero, no mundo muçulmano essa distinção entre religião e laicidade tem-se mostrado mais difícil e custosa.

    A pintura, de contornos difusos, mas onde não falta expressividade, foca-se nas figuras do professor, já idoso – a idade avançada é, neste contexto, um símbolo de sabedoria -, e de um dos seus alunos, que se prepara para recitar a lição. O apelo à memória, hoje tão criticado, era um elemento essencial dos sistemas de ensino mais tradicionalistas e conservadores. E será sempre fundamental, embora ninguém defenda hoje o decorar de matérias como um fim em si mesmo: a verdade é que só somos verdadeiramente conhecedores daquilo que conseguimos armazenar, de forma organizada e compreensiva, no nosso cérebro.

Análise do poema "Aos principais da Bahia chamados Caramurus"


     O nome «caramurus» foi atribuído a Diogo Álvares Correia, fidalgo português que naufragou na costa da Baía. Ao encontrar os índios, ficou assustado e puxou de uma arma, mas apenas matou uma ave, que os indígenas chamavam caramuru, deus do fogo. O português foi levado para a tribo índia e acabou por casar com Paraguaçu, filha do chefe. Esta história vai ser explorada no poema "Caramuru", de Santa Rita Durão.
    Começa aqui por especificar a genealogia dos caramurus: a linha materna ou feminina é indígena (uso da metonímia), enquanto a linha paterna ou masculina é obra do acaso: descende de uma índia com um branco reles. Isto mostra que os caramurus, apesar das suas pretensões de que são brancos, têm muito sangue índio. Isto é a síntese do poema.
    Um dos aspetos do ludismo barroco é a sonoridade das palavras indígenas.

Análise do poema "Ilha de Itaparica, Alvas areias", de Gregório de Matos


     Nesta composição poética, Gregório descreve um lugar já descrito por Manuel Botelho: a ilha de Itaparica. No entanto, a forma de concretizar a descrição é diferente, porque usa o grotesco a par de outros estilos. Esta mistura de estilos vem já da origem das artes, pois a própria pintura das cavernas misturava elementos da mitologia com elementos da Natureza (ex.: elementos da primavera com cara de deuses).
    Por outro, neste soneto sobressaem três aspetos:
        👉 louvor da paisagem;
        👉 crítica social em tom satírico;
        👉 tom encomiástico, porque louva a casa do capitão.
    A natureza do poema é, ao mesmo tempo, laudatória da ilha, satírica e encomiástica. Através da sátira, mostra a existência dessas «gentis moças» na Bahia. Se compararmos os textos literários com os documentos históricos, ambos atestam a existência da prostituição feminina. Já os jesuítas evidenciam a preocupação com este problema: as índias, tiradas do seu habitat, eram exploradas pelos brancos, mas também as negras eram aproveitadas como objeto sexual pelos «donos». Existia ainda a prostituição da mulher branca, muitas vezes originada pelo facto de os maridos terem ido morar com outra. Esta situação é mais frequente nos meios pobres e nas grandes cidades e está ligada à miscigenação racial, talvez por sele satirizada. Gregório, ocasionalmente, louva a figura feminina negra, mas isto é apenas o reflexo do petrarquismo no Barroco: louvor da mulher, que, no caso do Brasil, é a negra. Ele critica a miscigenação, sobretudo quando os negros se querem comparar aos brancos.

Análise do poema "Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia", de Gregório de Matos


     Este poema é, no fundo, uma crónica, porque dentro da técnica da dispersão e recolha, ele descreve as pessoas que adoram meter-se na vida alheia, das pessoas metediças, dos bisbilhoteiros e boateiros.
    No primeiro terceto, sai da esfera social para falar do espírito de pequenez na cidade. É o provincianismo da Bahia; fala da quantidade populacional, salientando os mulatos, vistos por Gregório com olhos de europeu.
    O poema termina com a habitual síntese do poema barroco: "E eis aqui a cidade da Bahia". É uma crónica, porque se refere ao espírito de mesquinhez, do provincialismo, da inversão do mundo e da economia. Mas tudo isto é tratado em tom irónico. A sátira pode ser feita em tom elevado ou, por vezes, em tom vulgar.

sábado, 3 de setembro de 2022

Análise do poema "Buscando a Cristo", de Gregório de Matos


     Manuel Botelho é o poeta representativo do Barroco no Brasil, diferente dos que vimos até aqui e cuja produção é muito pequena e não ficou muito conhecida no Brasil, ao contrário da de Gregório de Matos, que foi muito popular.

    Por causa dessa sua popularidade, teve um problema semelhante ao de Luís de Camões: como não publicou nada em vida, não se sabe exatamente o que é ou não de sua autoria. Os seus poemas foram, na sua maioria, reunidos por James Amado.

    Em comum com Manuel Botelho, Gregório possui o facto de terem estudado juntos em Coimbra. A diferença é que, enquanto o primeiro escreveu versos sobre o emblema de um Barroco sério, de que Música do Parnaso é exemplo, apesar de aí encontrarmos poemas de outro caráter; o segundo, além da vertente séria, tem uma vertente satírica, que o tornou popular. Ela é de tal ordem que ele ficou conhecido por "Boca do Inferno". A sátira está muito dentro do espírito barroco (ver Fénix Renascida e Postilhão de Apolo). Assim, ele não transgride o espírito barroco e escreve poesia satírica, séria e também sacra.

    Gregório estudou em Coimbra, mas vai ser o primeiro a dar pistas sobre a sociedade brasileira. Manuel Botelho e Itaparica só falaram da riqueza da terra de forma ufanista. Por seu turno, Gregório fala da sociedade brasileira, o que faz sobretudo na vertente satírica da sua poesia.

    O texto "Buscando a Cristo" é um soneto de tema sacro, comum ao Barroco ibérico, o que evidencia sua matriz religiosa e católica.

    Apresenta as fases do próprio Cristo independentes, mas subordinadas a um todo, que é o corpo. Enumera as partes e vai-se dirigindo a cada uma: braços, olhos, pés. Isto é típico do Barroco. Usa também jogos de oposições: "Que para receber-me, estais abertos / E, por não castigar-me, estais cravados.". Mas esta oposição é aparente, porque, na realidade, há uma reiteração. Também na referência aos olhos, temos um jogo de palavras/oposições, mas igualmente aparente, porque a ideia é sempre de perdão. Isto faz parte de um certo gosto que o Barroco tem pelo ludismo, visto que deste movimento faz parte o espírito de jogo, que tem a ver com a participação do leitor, que tem de pensar para compreender o jogo. É por isto que a poesia experimental do século XX vai buscar as suas bases ao Barroco, pela forma como este pressupõe a participação do leitor. Claro que esta participação não é intencional como o é na poesia do século XX. No Barroco, a participação do leitor dá-se pelo gosto do próprio poeta em ser hermético e camuflar as suas ideias. Não parte do conceito de que o leitor é um criador, mas que o poeta é que tem recursos para dizer ou não dizer, de acordo com a ocasião.

    Outra característica barroca é o uso da gradação (ex.: "Para ficar unido, atado e firme"), que ao mesmo tempo é uma forma de recolher de elementos que ficaram mais ou menos dispersos.

    Camões escreveu o soneto "Alma minha gentil que te partiste", enquanto Gregório "Alma gentil, espírito generoso". O primeiro insere-se na sua linha temática do neoplatonismo e todo o poema gira em torno disso. Isto não aparece no poema de Gregório, que opõe mais as ideias de vida e de morte, ao passo que Luís Vaz fala de um amor que permanece mesmo depois da morte.

    A forma de tratar a figura feminina é diferente: Camões usa formas mais suaves e equilibradas; Gregório de Matos socorre-se de uma forma mais retorcida, usando oposições ("Senão por dar-te a mágoa de perder-te") e a ideia de um prazer quase erótico na vida e na morte; o amor de Camões é mais espiritual.

    Encontramos ainda em Gregório de Matos como característica barroca o espírito de imitação, próprio do Classicismo.

    Uma última nota para o facto de a oposição vida/morte se manifestar de modos diversos: em Camões, valoriza-se o amor que continua, mesmo depois da morte; em Gregório, valoriza-se a moral. 

Análise do poema "À Ilha de Maré Termo desta Cidade da Bahia - Silva", de Manuel Botelho


     Manuel Botelho de Oliveira estudou em Coimbra e foi colega de Gregório de Matos, famoso pela sua língua viperina (era chamado "Boca do Inferno") e pela beleza da sua linguagem.

    Manuel Botelho chegou a escrever um livro intitulado Música do Parnaso, que é muito curioso, porque em nenhum momento fala do Brasil. Aqui, faz jogos de palavras bem barrocos como "caavo", "anarda", por exemplo. Fala da caça ao javali, na Fonte das Lágrimas de Coimbra e de tudo, menos do Brasil. O mais curioso é que, no prefácio, afirma que escreveu o livro para mostrar que as musas, por um momento, também se fizeram brasileiras. Por outro lado, Manuel Botelho escreveu em várias línguas: português, castelhano, latim.

    Apesar de brasileiro, adquiriu uma visão de colonizador. No fim da obra, coloca um poema que é o único que se refere ao Brasil de uma forma curiosa, com os mesmos objetivos do colonizador. Ele elege não a cultura, mas a natureza brasileira. Não se refere a acontecimentos citadinos nem à mulher brasileira, mas ao pescado, à fruta, aos legumes. O seu olhar para a terra é semelhante ao do colonizador, embora haja quem veja aí uma certa dose de brasilidade. Este poema apêndice tem uma inspiração nativa e um tom ufanista.

    Silva é uma forma de composição bastante usual no Barroco.

    O poema pode dividir-se em várias partes:

        👉 Numa primeira parte, o poeta define a situação da ilha e a sua forma. Há uma quase personificação da ilha, com recurso à mitologia: Neptuno. Este trecho mostra que o Barroco denota uma herança clássica: apego às figuras da mitologia.
    Outro elemento barroco é o jogo de palavras: «mar/maré» e o uso de «marés» em várias expressões: «marés de rosas», «marés vivas», «maré de saudade». Este jogo de palavras traduz uma ideia de inconstância e amor.
    Ainda característico do Barroco é o gosto pela imagem visual: "Vista por fora é pouco apetecida / porque aos olhos por feia é parecida; / porém dentro habitada / é muito bela, muito desejada...". Temos ainda aqui presente o jogo de oposições, que continua na estrofe seguinte, com a oposição «monte/vale».
    Na sexta estrofe, temos ainda outra característica barroca: "e na desigual ordem / consiste a fermosura na desordem", ou seja, a desordem é a ordem barroca. Por exemplo, em Gregório de Matos, o Barroco manifesta-se na dispersão, isto é, todo o poema é uma manta retalhada, mas no final há uma ordem perfeita. Isto também se manifesta na arquitetura.

        👉 Numa segunda parte do poema, o «eu» poético fala dos habitantes da ilha, que são os «pescadores em saveiros». Aproveita a palavra «peixes» para expressar uma ideia que não tem nada a ver com o que está a falar: "ser pequeno no Mundo é desventura".

        👉 A partir da oitava estrofe, o poeta começa a mostrar o seu ufanismo, que chega a um tom exagerado. Esta parte pode subdividir-se em partes consoante a realidade descrita:
                    = elogio do peixe, que é de tal modo bom, que já vem do mar como que "a gosto
                       preparado";
                    = louvor das plantas: usa o barroquismo da linguagem para dizer que as plantas
                       são sempre verdes. Usa uma imagem que é uma herança europeia, pois a
                       primavera, na Bahia, atinge o seu auge em setembro: "... esmeraldas de abril
                       em seus verdores...". Tudo é caracterizado por uma imagem de abundância, o
                       que é típico do Barroco. O peninsular cai muito na exuberância, enquanto, em
                       França, não houve propriamente, mas sim o Rococó;
                    = louvor das frutas: mais uma vez, deparamos com o uso do jogo de palavras com
                       «salgado/sal». Inicia-se, então, a enumeração dos frutos, outra característica
                       barroca, os quais são de origem europeia, mas que no Brasil são ainda melhores,
                       mostrando bem o seu ufanismo, talvez movido pela saudade: canas, laranjas,
                       limão, cidra, uvas, melões, melancias, figos, romãs. Temos, neste caso, sempre
                       confrontado o padrão europeu com o brasileiro, com o objetivo de valorizar a
                       natureza brasileira, não falando do homem. Só com Gregório de Matos se 
                       começa a mencionar o homem do Brasil, também porque ainda não há o verda-
                       deiro homem brasileiro.

    Desde a Carta de Caminha que a literatura mostra as preocupações económicas do colonizador com a exploração da terra, que é boa para qualquer tipo de plantação. Mesmo os frutos tipicamente europeus são aí produzidos em maior quantidade e qualidade.

    Segue-se a enumeração dos frutos tipicamente brasileiros: coqueiros, cajus (variação de cor e sabor; jogo de palavras - " e como vários são nas várias cores"), castanha, pitangas, pitombas (exploração do sensorialismo), araçázes, bananas (inclui a referência à característica barroca da "ordem na desordem": apresenta diversos fragmentos e no fim faz uma síntese: "... é fruto, é como pão, serve em conduto...").

    A enumeração da fruta prossegue: pimenta (caracterizada pela qualidade, quantidade e superioridade); mamão, maracujá (em toda a poesia brasileira, o maracujá pelo seu sabor e o ananás pela sua forma aparecem como rainhas das frutas do Brasil. No texto Sermão da Fruta, do franciscano A. Pereira, comparam-se os frutos aos pecados e aí o maracujá ocupa um lugar de destaque), ananás (temos o jogo visual, quando se refere à casca do ananás e outro elemento barroco, que é concetualismo: aproveita a fruta para falar de um conceito - "não há c'roa no mundo sem espinhos". É a descrição do ananás que ocupa um maior número de versos e termina com uma síntese, depois da dispersão), mangavá (caracterizado pela cor, forma e abundância; gosto barroco pelo sensorial), maracujá.

    Segue-se o louvor dos legumes: mangarás, batatas, mandioca (há uma lenda que diz que a mandioca foi dada a conhecer aos índios por Tupã ou Sumé - figura mitológica saída das águas -, aqui tomado como S. Tomé. Há uma apropriação da lenda por motivos religiosos, que aparece noutros autores. É caracterizada por uma série de elementos barrocos: abundância, gradação, comparação com o pão de trigo para vincar a superioridade do beiju; sensualização, jogo concetual), arroz.

    Depois de caracterizar todos os elementos referidos, faz um jogo com o A, que é também um elemento barroco e faz parte do seu ludismo, pois gosta de jogos formais e concetuais. O autor chega a imitar Camões, o que também é típico do Barroco, bem como um certo tom grotesco, resultante da mistura do clássico (Camões) com a descrição de frutos e legumes.

    Em resumo, podemos dizer que, em todos os aspetos, se marca a superioridade dos elementos brasileiros em relação aos europeus. O poema termina com uma espécie de síntese, onde se fala da Ilha da Maré e se recorre à mitologia: Vénus e Fénix, que morre para renascer e ela faz parte do espírito de renovação barroca. Subjacente está um fundamento religioso, quando se considera Maria superior a Vénus.

    Itaparica segue os mesmos passos de M. B. de Oliveira; apenas acrescenta a pesca da baleia.


sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Análise do poema "Prosopopeia", de Bento Teixeira


    Apesar de a literatura brasileira ter nascido sob o signo do Barroco, a primeira poesia feita no Brasil a respeito do Brasil é uma poesia de transição, embora seja dada como marco da poesia brasileira, feita em moldes camonianos (literatura «kitsch camoniana»): "Prosopopeia", de Bento Teixeira, é um poema em louvor do governador de Pernambuco e a sua família. Contém duas ou três estrofes dedicadas ao Brasil, mas, mesmo cantando as vantagens da terra, o autor possui uma ótica externa de ver as coisas brasileiras.

    Bento Teixeira faz uma tentativa de imitar Camões, fazendo uma epopeia reduzida, mesmo em termos de impacto. É uma epopeia que fala da família dos Albuquerques, o que reduz o âmbito do poema, que inaugura a lisonja na literatura do Brasil: louva, pois, a família dos Albuquerques, que pertencem à família dos donatários da capitania de Pernambuco.

    A composição poética começa com uma Proposição parecida com a de Os Lusíadas, mas não se refere a Luís da Camões, antes a Virgílio, designado como "o Mantuano", cantando Eneias. A Eneida foi uma das fontes da epopeia camoniana. Assim, vai imitar Camões a partir dos versos de Os Lusíadas e refere-se à catábase de Eneias (quando desce ao Hades). Esta é uma literatura que surge no Brasil, mas com gostos importados de raízes europeias: a imitação de um poema lusitano. Bento Teixeira tenta fazer de Albuquerque o grande herói do seu poema e não de Camões ou Eneias.

    Na Invocação, invoca Deus e não as musas, o que mostra a sua origem cristã. As referências ao mundo grego e latino são referências características do Renascimento, sendo que a alusão a Deus também aparece em Camões, que usa a mitologia e a cultura clássicas como ornamento. O poema refere-se ao Renascimento tardio, ao poema camoniano e está filiado numa cultura europeia e religiosa.

    Na realidade, este texto é uma paródia a Os Lusíadas, havendo, no entanto, uma referência à situação do poema: a sua ligação com o Brasil ("Dos casos vários da olindesa gente...").

    No canto IV, afirma a sua ligação não só ao cristianismo, mas ao catolicismo. O poema tem, de facto, um vínculo ideológico com o catolicismo..

    No V, existem várias referências à Antiguidade Clássica: Talia é uma musa do canto épico e da comédia; o motivo da humildade do poeta, que é fingida, como se comprova quando ele refere o seguinte: "Doutro licor melhor que o de Aganipe". O uso da humilitas é uma característica clássica.

    O VI diz-nos que, com o seu canto, Bento Teixeira pretende mostrar feitos tais que espantem todos os elementos: ar, fogo, mar e terra. Depois dos seis primeiros cantos, onde propõe e invoca, passa a descrever. Mas o quê? O espaço de Pernambuco. Ele vai situar Pernambuco e, mais concretamente, a cidade de Recife, referindo-se sobretudo às vantagens do porto da cidade, formado por uma barreira de coral.

    Se alguém podia pensar que ele se humildava por escrever no Brasil, no canto XIX, mostra que não estava inserido no ambiente descrito; trata os índios como bárbaros, o que mostra que tem uma visão de colonizador. Transfere para a linguagem uma propriedade que atribui aos indígenas: hipálage. Ele faz uma distinção e eleva-se a si mesmo. A única referência ao Brasil é a referência a um espaço do porto do Recife. De resto, o poema não serve para louvar o país, mas os Albuquerques. Ele louça o espaço, como é comum nesta primeira literatura, mas denigre as gentes.

    Caminha, apesar de ter achado a terra ótima e as índias belas, tem como preocupação vestir o índio; aqui a referência ao porto subentende uma situação de exploração. O louvor a Pernambuco tem a ver com o progresso que esta capitania vai alcançar com a produção da cana de açúcar.

    No canto XX, mostra preocupações com a posse colonial e não com a terra. Este poema não tem pontos de vista brasileiros, mas coloniais, até porque ainda não havia o verdadeiro brasileiro resultante de uma fusão do índio, do branco e do negro. Logo, não se pode exigir uma literatura brasileira.

    No último canto (XXI), prepara a narração dos feitos dos Albuquerques de Pernambuco.

    Temos, assim, na "Prosopopeia" um louvor da terra, como é visível também na Carta de Caminha. Nesta fase, estamos já num segundo período, sendo que o primeiro era o da descoberta e informação acerca da nova terra, de que a obra de Caminha é o modelo.

    O segundo período afasta-se um pouco do que se possa dizer em termos de literatura, porque é uma literatura para o Brasil e uma literatura de catequese. Mas os jesuítas também produzem uma literatura sobre o Brasil nas cartas que enviam para Portugal e onde falam da terra e das almas.

    Este período do século XVI e uma época em que se produz uma literatura sobre o Brasil, a par da qual surge uma literatura para o Brasil (ex.: Anchieta). Por seu turno, no século XVII, deparamos com uma literatura que se começa a formar. É produzida no Brasil, mas ainda não se pode chamar brasileira. No século XVIII, começa a haver um sistema literário iniciado com o Barroco, porque há brasileiros que vêm estudar para Portugal e regressam. É o caso de Manuel Botelho.

A escola do século XIX em imagens – VII


George Haanen, Escola nocturna (1835)

    Eis uma faceta da escola oitocentista que não poderia faltar nesta série: a escola noturna. As aulas à noite têm hoje uma presença pouco mais do que residual nos sistemas educativos, mas foram cruciais em épocas em que a maioria da população começava a trabalhar com uma escolarização mínima, ou mesmo sem ter tido oportunidade, na infância, de frequentar a escola. Neste contexto, e à medida que os trabalhadores vão percebendo que a formação escolar lhes pode abrir novas perspetivas profissionais e de desenvolvimento pessoal, a vontade e a necessidade de voltar a estudar começam a impor-se.

    Na imagem, percebemos que boa parte dos alunos que chegam a esta escola, iluminada a velas e candeias, é ainda criança: na primeira metade do século XIX, o trabalho infantil era uma realidade muito frequente, o que remetia estas crianças desafortunadas para a escola noturna, única forma de escaparem ao analfabetismo. Posteriormente, graças sobretudo à luta sindical, esta situação começará a mudar, com o aparecimento de legislação restritiva do trabalho de menores e o aumento progressivo da idade mínima para trabalhar. Aliás, e já que se fala em sindicalismo, refira-se também o papel importante que os sindicatos tiveram, praticamente desde o seu aparecimento, na promoção do ensino e da formação profissional entre os seus associados.

    Nesta escola, o ambiente de aprendizagem parece pouco formal, reinando algo parecido com o que hoje chamaríamos diferenciação pedagógica, o que é natural tendo em conta as diferenças de idades, as motivações e os níveis de conhecimento de uns e outros. Assim, enquanto uns alunos estudam autonomamente, outros fazem uma pausa no estudo e aquecem-se junto à salamandra. Um dos discentes, vestido de verde, ouve a explicação do professor, que por sua vez mira de relance aqueloutro – talvez um novo aluno? – que acaba de chegar à escola, trazido pela mãe…

Fonte: Escola Portuguesa.

Análise do poema "De São Maurício", de José de Anchieta


    Este poema de José de Anchieta mostra a dupla conversão do índio: à religião católica e à ação portuguesa. Ou seja, quando os Portugueses chegaram ao Brasil, houve tribos que ficaram do lado de outros povos europeus, como os franceses. Então, os jesuítas, ao mesmo tempo que tentavam manter a fé, porque os invasores eram protestantes, procuravam conservar o império, visto que os invasores eram franceses.
    Este poema compõe-se de dez subdivisões de duas estrofes, sugerindo, como acontece nas danças que encerram algumas peças, dez pessoas que declamem. Deve ter sido apresentado em Vitória, por ocasião de alguma entrada a incursões protestantes.
    Nele, faz-se a exaltação de S. Maurício, santo guerreiro que chefiava uma legião conhecida por "Legião Tebana". Ficou famosa por se ter recusado a participar numa perseguição contra os cristãos, o que lhe valeu a ira do imperador e o consequente massacre, em 286.
    A perspetiva que a literatura de finais do século XX nos dá do índio oscila entre o herói selvagem, bravo e cruel, e a quase criança inocente.
    Até ao quarto grupo de estrofes, temos a exaltação do santo; a partir daí conta-se a sua história. Da mesma forma que S. Maurício venceu os infiéis pagãos com as suas hostes romanas, também agora os Portugueses o invocam na vitória sobre os franceses, que são protestantes. É uma invocação ao mesmo tempo didática, religiosa e festiva. Temos uma situação de festa motivada pela vitória, que é aproveitada para invocar um herói religioso, para propagar a religião e para ensinar um pouco da história da Igreja. Os franceses são inimigos religiosos e políticos, porque querem a mesma terra. Eles procuravam uma nova terra para fundarem a França Antártida. A vila de Vitória - capital do Espírito Santo - foi consagrada à vitória dos portugueses sobre os protestantes.
    As poesias jesuítas, mesmo as que eram destinadas a comemorar algo, apresentam-se com ar festivo, porque a festa era um importante veículo de catequização. Está sempre apresente a ideia de oposição cristão / pagão, a qual vai persistir na literatura para o Brasil, que é uma literatura de conversão, de catequese.
    No grupo 8, há uma referência ao «pecado» que pode ser a invasão da terra pelos protestantes ou uma condenação a uma certa maneira de viver dos índios, que tinham várias mulheres, praticavam a antropofagia, trocavam de mulher, andavam nus e amantizavam-se com os Portugueses. Nesta estrofe tão simples, está patente uma ideia importante: a ideia da expansão de um império e da fé não era apenas portuguesa, mas também francesa e inglesa.
    No grupo 9, faz-se referência à partida dos jesuítas nas «entradas», que eram incursões feitas ao interior do Brasil, para explorar ouro, trazendo no regresso índios para a catequese. Claro que as cidades foram construídas no litoral, porque era mais fácil a defesa e o abastecimento. Mas a expansão para o sertão era importante para ver se aí havia algum interesse. Muitas vezes traziam índios como escravos, mas que eram libertados pelos jesuítas. Eles participavam nas entradas para darem apoio espiritual aos brancos e prestígio junto dos índios e para evitarem a escravização do índio, que eles pretendiam trazer para os colégios de índios no litoral. As entradas não eram normalmente de grande extensão. As incursões mais longas chamavam-se «bandeiras» e levavam mais pessoas que as «entradas», mas esta é uma distinção didática, porque houve várias confusões. A consequência das entradas e das bandeiras foi a ajuda dada à configuração atual do território brasileiro, porque ambos os processos ultrapassaram em muito a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas e, quando os espanhóis, deram conta, já aí havia cidades com uma cultura portuguesa bem arreigada.
    Este tipo de literatura visa a cristianização do índio e daí a constante invocação de Deus. O espírito que rege a expansão da fé entre os índios brasileiros e os filhos dos colonos é um espírito festivo. Mesmo as procissões descritas pelos jesuítas têm um caráter festivo, em que as pessoas vestiam as melhores roupas, havendo ainda uma série de invenções de espírito barroco que chamavam a atenção, o que se vai acentuar com a descoberta do ouro.
    A literatura brasileira vai nascer como literatura brasileira no século XVII, sob o signo do Barroco, com autores como Manuel Botelho de Oliveira e Frei Manuel Maria de Itaparica. É uma poesia de transição. A primeira poesia é feita a respeito do Brasil, que é dada como marco do início da literatura brasileira. É uma poesia muito camoniana ainda, uma espécie de Lusíadas «kitsch».

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Análise de "O Operário em Construção", de Vinicius de Moraes


            Esta composição de Vinicius de Moraes foi publicada inicialmente em 1959 no livro Novos Poemas II e foi divulgada, em 1962, na coletânea de poemas engajados Violão de Rua, e pode ser lida como uma metáfora para a construção da consciência de um trabalhador.

            O poema é antecedido de uma epígrafe, extraída do Evangelho de São Lucas (Lc 5, 5-8), um trecho parafraseado por Vinicius para compor a estrutura do poema e proporcionar a sua leitura. A passagem bíblica corresponde à tentação sofrida por Jesus no deserto. Nela, este elevado pelo Diabo ao alto de um monte e é aí tentado a adorar o seu opositor. O texto de Vinicius retoma essa ideia claramente através de uma estrofe em que o operário é desafiado a abandonar a sua ética em troca de favores do seu patrão, após este compreender que nem por meio da violência o convenceria:

De sorte que o foi levando

Ao alto da construção

E num momento de tempo

Mostrou-lhe toda a região

E apontando-a ao operário

Fez-lhe esta declaração:

– Dar-te-ei todo esse poder

E a sua satisfação

Porque a mim me foi entregue

E dou-o a quem bem quiser.

Dou-te tempo de lazer

Dou-te tempo de mulher.

Portanto, tudo o que vês

Será teu se me adorares

E, ainda mais, se abandonares

O que te faz dizer não.

            A escolha desta passagem para iniciar um poema que retrata o operário contribui para o entendimento do poema e encontra justificação nas bases sociais de meados do século XX. A epígrafe funciona como um pequeno roteiro para o desenvolvimento do poema, que vai da descoberta do sofrimento até à negação do tentador.

            O título do poema contém a ideia de um operário que não constrói somente o mundo ao seu redor, mas que vai dando conta da ampliação de si mesmo e da grandiosidade do seu trabalho de maneira poética e crítica, quando já não aceita a sua condição de operário, isto é, é um operário em construção de si mesmo.

            O poema inicia-se com a narrativa em trono de um operário da construção civil e do seu quotidiano, sem que ele consiga perceber a importância do seu trabalho para a sociedade, que o ato de construir uma casa tinha um grande significado para os que iriam morar nela. De facto, a abertura da composição faz-se com a apresentação do papel do trabalhador na construção das 6coisas e o desconhecimento do significado e impacto da sua profissão, traduzido pela alienação verificada na multidão que empilha os tijolos com suor e cimento.

            A comparação com “um pássaro sem asas” reflete a condição de artífice do operário, que, sem grandes expectativas, alcançava as alturas com o suor do seu trabalho. Apesar de o operário desconhecer a importância do seu trabalho, a sua ação não só é mais importante que a coisa construída, mas também faz o trabalhador ser e fazer mais, de maneira reflexiva: “Mas ele desconhecia, / Esse fato extraordinário, / Que o operário faz a coisa, / E a coisa faz o operário”. Estes versos conceituam a capacidade transformadora do trabalho em relação ao produto do seu trabalho. O vocábulo «coisa» aponta para a ideia da alienação e coisificação do trabalho, sendo o trabalhador alienado e coisificado transformado em «coisa» pelo sistema de produção. Por seu turno, o paradoxo «liberdade» e «escravidão» significa que o produto do seu trabalho deveria garantir liberdade ao operário, contudo tal não sucede, pelo contrário transforma-o num escravo.

            Em contraste com a alienação inicial, o funcionário é tomado por uma súbita revelação e a tomada de consciência de que tudo à sua volta é fruto do seu trabalho. Essa tomada de consciência dá-se num momento simples do seu quotidiano, o momento de uma refeição: “À mesa, ao cortar o pão / O operário foi tomado / De uma súbita emoção / Ao constatar assombrado / Que tudo naquela mesa / – Garrafa, prato, facão – / Era ele quem os fazia / Ele, um humilde operário, / Um operário em construção.”. A imagem do trabalhador sentado à mesa, cortando o pão (note-se que estes versos podem ser entendidos como o simples ato de alguém se alimentar, mas também como uma alusão ao partir do pão feito por Jesus), é o ponto de partida para a “súbita emoção” que o assalta e o leva a compreender a relação do seu trabalho com o que é produzido por esse mesmo trabalho. É isso que nos mostra a extensão enumeração: “Olhou em torno: gamela / Banco, enxerga, caldeirão / Vidro, parede, janela / Casa, cidade, nação! / Tudo, tudo o que existia / Era ele quem o fazia”.

            De seguida, o «eu» poético dirige-se aos “homens de pensamento”, afirmando que lhes é impossível compreender o que o humilde operário soube naquele momento. Isto constitui uma conceção anti-intelectual que contrapõe a noção de homens de pensamento ao humilde operário. A tomada de consciência do operário prossegue quando ele olha as suas mãos e compreende que são elas que tornam possível toda a sua obra: “O operário emocionado / Olhou sua própria mão / […] / E olhando bem para ela / Teve um segundo a impressão / De que não havia no mundo / Coisa que fosse mais bela.”. Esta constatação evidencia a descoberta que o trabalhador fez sobre si mesmo, a sua ação iluminada pela sua capacidade de construir aquilo que a sua mente pensa que é capaz.

            O operário, quando olha para a sua mão, tem a impressão de que não há coisa mais bela. Note-se que a mão simboliza o trabalho e, em simultâneo, é uma parte do corpo modificado pelo próprio trabalho, enquanto o adjetivo «rude» evidencia o sofrimento do corpo do trabalhador. Por outro lado, o “instante de compreensão” é solitário (“Foi dentro da compreensão / Desse instante solitário”), valorizando-se, assim, o indivíduo e não o coletivo. Encontrado esse sentido, o operário encontra a dimensão do poético que há no seu trabalho: “O operário adquiriu / Uma nova dimensão: / A dimensão da poesia.”, dimensão que causou a mudança de atitude que trouxe ao operário outras possibilidades de entender e viver no mundo. Os versos “Cresceu em alto e profundo / Em largo e no coração” revelam que essa dimensão poética tem as suas raízes no discurso emocional e é a partir dela que um operário «dizia» e o outro «escutava», aprendendo a dizer «não». Ou seja, o trabalhador consegue agora perceber a beleza que existe naquilo que constrói e reconhecer-se a si mesmo nos produtos que cria. Ele vai-se libertando, gradualmente, do jogo do patrão e incentivando os outros operários a fazerem o mesmo, a tomarem consciência da sua força, do seu poder de construção. Esta consciencialização opera-se por estas vias, ignorando as construções coletivas de luta, como os sindicatos, e através de um método retórico contrário ao racional. Em suma, a tomada de consciência social parte da sua função produtiva na sociedade e alcança dimensões mais amplas, primeiro adquirindo uma conceção estética, da beleza das suas rudes mãos, até à transformação das suas experiências de vida em poesia. O trecho em que o operário contempla a sua mão e considera que é a coisa mais bela do mundo pode parecer contraditório, visto que, de modo geral, a mão de um operário da construção civil tende a ser grossa, rude e cheia de calos. Deste modo, como pode ser considerada bela? A beleza que ele vislumbra situa-se além das aparências; percebe que tem nas suas mãos o poder de transformar o mundo.

            O que leva o operário a dizer «não» e a «se fazer forte na sua resolução» é a perceção das suas condições de vida, a diferença de condições de vida entre os trabalhadores e os patrões, ou seja, a oposição entre a pobreza dos primeiros e a riqueza dos segundos, através de várias metáforas, que o levam a questionar determinadas situações: “Notou que sua marmita / Era o prato do patrão / Que sua cerveja preta / Era o uísque do patrão / Que seu macacão de zuarte / Era o terno do patrão / Que o casebre onde morava / Era a mansão do patrão / Que seus dois pés andarilhos / Eram as rodas do patrão / Que a dureza do seu dia / Era a noite do patrão / Que sua imensa fadiga / Era amiga do patrão”. Este patrão é comparado, mais à frente, ao diabo tentando Jesus. Assim sendo, existe um momento de diabolização da riqueza e de transformar a pobreza em virtude, o que constitui uma forma simplista de abordar a luta de classes. Este ato de contestação não é um processo individual, passando o operário a compartilhar a insatisfação com os seus colegas de trabalho.

            Esta ação tem duas consequências. A primeira é a violência exercida sobre o operário, praticada pelos delatores, que, através de uma sugestão cifrada do patrão, o agridem. Assim, vê o seu rosto cuspido e o braço partido, agressões semelhantes às sofridas por Jesus Cristo: “Pois será entregue aos gentios, e escarnecido, injuriado e cuspido” (Lucas, cap. 18, versículo 32). A segunda consequência relaciona-se com a ineficiência das agressões. De facto, o operário, apesar de delatado por colegas e apesar de agredido repetidas vezes, continua a resistir e a dizer «não», mesmo sabendo que não seria fácil conviver com a sua própria verdade: “E todo o seu sofrimento / Misturava-se ao cimento / Da construção que crescia”. O patrão, percebendo a recusa do funcionário, tenta suborná-lo, oferecendo-lhe poder, tempo de lazer e mulheres, com a condição de que abandone o «não», no entanto o operário não reconhece naquilo que vê o poder do patrão, mas sim o trabalho de quem o construiu: “Um dia tentou o patrão / Dobrá-lo de modo vário. / De sorte que o foi levando / Ao alto da construção / E num momento de tempo / Mostrou-lhe toda a região / E apontando-a ao operário / Fez-lhe esta declaração: / – Dar-te-ei todo esse poder / […] / Será teu se ma adorares / E, ainda mais, se abandonares / O que te faz dizer não. / […] / Mas o que via o operário / Que olhava e refletia / Mas o que via o operário / O patrão nunca veria. / O operário via as casas / E dentro das estruturas / Via coisas, objetos / Produtos manufaturas. / Via tudo o que fazia / O lucro do seu patrão / E em cada coisa que via / Misteriosamente havia / A marca de sua mão. / E o operário disse: Não!”. Assim sendo, podemos concluir que o subordinado tem uma visão que o patrão jamais será capaz de compreender: o patrão não lhe podia dar nada daquilo, visto que fora ele, operário, e os seus companheiros que tinham construído tudo o que havia. Por outro lado, o operário observa a ampla região em volta da construção e vê o que o seu patrão não consegue ver: o trabalhador vê casas e muitos objetos, enquanto a visita do seu patrão se limita ao lucro.

            Este passo, em que o operário é desafiado a abandonar a sua ética em troca de favores do seu patrão, após este tomar consciência de que nem mesmo a violência o faria mudar de opinião, constitui uma paráfrase da epígrafe bíblica do poema: o patrão tenta subornar o operário, tal como Satanás tentara Jesus. No entanto, aquele não compreende, de facto, a recusa do seu funcionário, que é claro e revela a sua tomada de consciência: “ – Mentira! – disse o operário / Não podes dar-me o que é meu.”. Da discussão com o patrão, resulta o silêncio, o vácuo, o eco de tempos passados, de familiares que se foram.

            A sensação que se extrai do final do poema remete para a luta, a dor e o sofrimento, mas também a superação, quando “Uma esperança sincera / Cresceu no seu coração / E dentro da tarde mansa / Agigantou.se a razão / De um homem pobre e esquecido / Razão porém que fizera / Em operário construído / O operário em construção”. Os versos finais são carregados de uma troca contínua entre aquele que faz e o que é feito, ou seja, o operário constrói-se na medida em que constrói os seus sonhos, as suas habilidades refletem quem ele é. Um operário em construção constrói-se a si próprio, espelha-se no que faz para continuar a realizar um bom trabalho, tal como um poeta ou um artesão.

            Em suma, o poema procura expor o processo histórico de formação da classe operária e a consciencialização social, a partir da perceção da sua função produtiva no campo económico e da construção de uma nova forma de perceção do mundo, que inclui a dimensão estética, a ação coletiva e a necessidade de adoção de um posicionamento político, que sustenta o «não» do operário ao patrão. Note-se que toda a composição poética assenta na metonímia, pois o poeta não foca um trabalhador e um patrão específicos, mas de duas classes que se situam e vivem em campos opostos: “Via tudo que fazia / O lucro do seu patrão / E em cada coisa que via / Misteriosamente havia / A marca de sua mão.”

            Neste poema, dá-se conta da busca do autoconhecimento e do reconhecimento de quem se é e do que faz. Muitas vezes, não há uma relação direta entre o construído e aquele que o fez, pois, quando a construção está terminada, no exemplo do texto, ela não pertence, de facto, a quem a fez. No poema, a revolta dá-se quando o operário toma consciência da sua condição e, ao alcançar a dimensão da poesia, consegue poetizar a sua existência, tornando-se dono da sua própria vida, mesmo que de maneira figurativa.


terça-feira, 30 de agosto de 2022

A escola do século XIX em imagens – VI


Paul des Amoignes - Na sala de aula (1886)

    Este quadro constitui um exemplar da pintura naturalista francesa. Nesta observação cirúrgica e quase fotográfica da sala de aula, a figura de um pequeno estudante destaca-se pelo olhar intenso e penetrante, certamente dirigido à figura do professor.

    Alguns colegas escrevem aplicadamente, outros mostram-se apáticos, distraídos ou aborrecidos. Mas só este rapaz levanta o lápis do caderno para prestar atenção ao professor. É uma realidade de todos os tempos e de todas as escolas: nem todos os alunos têm o mesmo interesse, a mesma capacidade de concentração, a mesma facilidade em aprender. Mas o desafio de dar a todos a sua oportunidade, razão de ser da escola, em especial da escola pública, é hoje ainda mais pertinente do que há um ou dois séculos.

    A técnica do pintor é primorosa, não só no traço e na ambiência naturalista, mas também na forma como os rostos à volta do protagonista se apresentam desfocados – algo que na técnica fotográfica se consegue reduzindo a profundidade de campo – reforçando o impacto e o dramatismo da imagem. E atraindo o nosso olhar, irresistivelmente, para o aluno que quer aprender.

 Fonte: Escola Portuguesa.

Faleceu Mikhail Gorbatchov


1931 - 30.08.2022

 

Análise do quadro "O Tempo – Passado e Presente"



            “O Tempo – Passado e Presente” é uma pintura de Paula Rego, datado de 1990, a segunda realizada pela pintora enquanto Artista Associada da National Gallery, um acrílico sobre papel colado em tela, 183 cm x 183 cm.

            O título encontra eco nas duas personagens centrais – um homem velho e uma menina, provavelmente avô e neta – e também no par mulher/criança que comunica na porta ao fundo aberta. Os quadros nas paredes contêm outras personagens, são uma espécie de janelas que se abrem para outras narrativas e até os bonecos sobre o móvel e os azulejos nas paredes são figuras que podem contar-nos histórias, a nós e ao bebé que nos olha da direita do quadro.

            Ao centro, a figura masculina domina a composição. A idade já avançada sulca-lhe o rosto, pinta-lhe o cabelo de cinzento, estagna-lhe o olhar. É a presença que dialoga com a rapariga, pequena e andrógina, que está sentada à esquerda, debruçada sobre a folha em branco que se esforça por esconder. Sobre o aparador, vemos uma caravela, um hipopótamo e uma estatueta de contornos femininos, que as vestes acentuam. Estes objetos remetem para a memória do tempo passado, tal como os objetos e pinturas que povoam as paredes definidoras do espaço interior onde a cena se desenvolve. É um espaço fechado, iluminado pela claridade que entra pela porta que, ao fundo, se abre para o mar. Essa mesma porta mostra-nos uma mulher idosa, de saia azul, e uma menina, de saia amarela, que se encontra no exterior. Todas as personagens parecem alheadas do bebé envolto no seu casulo verde, confiado ao anjo, que encima o berço, a sua proteção. É esta figura a única que nos olha.

            A figura do bebé, que Paula Rego afirmou constituir uma alusão ao nascimento da sua neta Lola, é, pois, encimada por um anjo fundido com a parede-biombo onde se insere. À esquerda do quadro encontramos uma alusão ao mar que funde elementos relacionados com a História de Portugal (a caravela, por exemplo, é um símbolo dos Descobrimentos), a atividade de marinheiro de Keith Sutton e as viagens de S. Jerónimo, enquanto o centro da composição alude à pintura produzida num contexto de encomenda e fruição religiosa, da mesma forma que a imagem do anjo e a figura do bebé estabelecem com o observador uma relação de familiaridade que remete para a cultura tradicional – constituindo estas três camadas sociais uma crítica subtil à retórica propagandística do Estado Novo. Neste contexto, merece destaque a capa azul de pescador que marca a divisão de planos e o traje escolar, característico dos rapazes da Mocidade Portuguesa, com que é representada a adolescente – vestes que acentuam a robustez das formas desenhadas e se sobrepõem aos traços de feminilidade.

            Outras recorrências, como os azulejos bicromáticos em azul e branco onde estão representados jogos infantis, a extremidade da moldura do quadro apócrifo acima do aparador que remete para os beirais da casa portuguesa de Raul Lino, ou o mar que a porta aberta ao fundo deixa adivinhar como horizonte, remetem à infância da pintora (serão memórias convocadas da quinta dos seus avós na Ericeira).

            Neste quadro, podemos encontrar influências de outras obras, como, por exemplo, “S. Jerónimo na sua cela” (c. 1475), de Antonello de Messina, embora haja diferenças significativas entre os dois quadros. Assim, a relação interior/exterior é invertida: em da Messina o espaço encontra-se “fechado”, o tempo petrificado, e o observador é apenas convidado a observar; em Paula Rego, o observador encontra-se no interior do espaço onde se desenrola a ação da pintura, assumindo o lugar de espectador; a ilusão do espaço, em perspetiva, é-nos sugerida em Antonello pelo padrão geométrico do chão e pela arcaria à direita; em Paula Rego, são as ortogonais marcadas pela parede lateral esquerda e pela sobreposição de planos à direita que fecham o espaço e conduzem o olhar através da pintura. Para a construção das figuras do primeiro plano, o quadro recorre ao jogo realidade-ficção, fazendo coincidir em cada personagem a representação de alguém do seu mundo real com uma imagem retirada de uma obra da National. Desta forma, a figura masculina, não sendo a representação de S. Jerónimo mas um retrato de Keith Sutton, encontra-se na mesma posição mantendo a atitude pensativa e introspetiva que a figura do “S. Jerónimo numa paisagem” (c. 1440), de Bono da Ferrara; a figura da menina a desenhar («retrato» da artista quando jovem) coincide com a imagem do leão na pintura de Bono da Ferrara, ao nível da relação espacial que este estabelece coma figura de “S. Jerónimo” e do posicionamento do corpo. No que concerne ao bebé, existem semelhanças com o leão representado por Domenichino em “A visão de S. Jerónimo” (a. 1603). Do mesmo modo, a relação entre o par leão/anjo em Domenichino é assumida em “O Tempo…” pela dupla bebé/anjo. Assim, ao jogo realidade-ficção sobrepõe-se a injunção profano-religioso.

            Por outro lado, as pinturas de santos reproduzidas no fundo do quadro são reproduções fiéis ao “S. Francisco em Meditação” (c. 1636-9), de Francisco de Zurbaran, ao “S. Sebastiºao” (c. 1623), de Gerrit van Honthorst, e ao São Cristóvão, no reverso do volante esquerdo, do “Tríptico de Donne” (c. 1478), de Hans Memling. Deste modo, Paula Rego presta homenagem aos mestres do passado.

            É possível identificar na pintura duas narrativas paralelas: uma personificada pela própria artista que se autorrepresenta em três tempos diferentes (coincidentes com o bebé, a menina ao fundo e a adolescente) de cariz autobiográfico; outra historicista, que consiste na pintura enquanto disciplina artística. Neste contexto, é interessante registar a relação de “O Tempo…” e “As Meninas”, de Diego Velázquez, havendo diversas semelhanças entre as duas obras: a porta que se abre ao fundo para onde converge a obliquidade da construção espacial assinalando o ponto de fuga; a profusão de figuras; a convocação de obras de pintores precedentes e, no caso de Velázquez, também seus contemporâneos; a elisão do sujeito. É, no entanto, através da autorrepresentação – com a suspensão do gesto de Velázquez e a folha em branco em Paula Rego, com o facto de os pintores integrarem não só a pintura, mas também o seu tempo e contexto histórico de produção (para Velázquez a corte e para Paula Rego a instituição museu).

            Podemos considerar “O Tempo – Passado e Presente” como uma alegoria, por conter a representação simbólica de ideias abstratas através de figuras, grupos de figuras ou atributos. Neste caso, a arte do presente deve permitir estabelecer relações por antecipação (visão do futuro) e por retornos (conhecimento do passado). Nesta obra de Paula Rego, a existência dessa visão do futuro e conhecimento do passado estimula a continuidade transformativa que determina a inovação. Assim, no quadro, perspetivado como uma alusão à história da pintura que tem no tempo histórico o tema e na pintura o motivo, o que motiva a pintora é a combinação de formas múltiplas da história da pintura e da arte, a desconstrução e reformulação do real, a afirmação da linguagem pictórica e, através dela, da injunção da arte com a vida. Ou seja, “O Tempo – Passado e Presente” constitui uma alegoria da história da pintura.

 
Bibliografia:

C Paula Rego: O Tempo – Passado e Presente ou a Pequena História da História da Pintura.

C GREER, Germaine. 1992. “A Olhar para Paula Rego”, in Paula Rego: Histórias da National Gallery.

 

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Os arquivos secretos de Donald Trump


David Cavalinho

Análise do quadro "Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808", de Goya



             O quadro “O 3 de maio de 1808”, ou “Os fuzilamentos da montanha do Príncipe Pio”, ou “Os fuzilamentos de 3 de maio”, foi pintado por Francisco Goya (1746-1828) em 1814, seis anos após a dramática situação que narra um dos momentos mais simbólicos da resistência espanhola à invasão das tropas de Napoleão. A este quadro liga-se um outro, “O 2 de maio de 1808” (pintado igualmente em 1814), que relata o primeiro episódio deste acontecimento, ocorrido na véspera, e presumivelmente presenciado pelo pintor.

            Um acontecimento histórico trágico serviu, portanto, de motivo a este quadro. Os exércitos de Napoleão Bonaparte ocuparam a Espanha, mas no dia 2 de maio de 1808 os cidadãos de Madrid revoltaram-se contra essa ocupação das tropas napoleónicas. Na sequência dessa revolta, os franceses concretizaram uma terrível vingança, levando a cabo um massacre, fuzilando centenas de patriotas espanhóis e muitas outras pessoas que eram meras espectadoras. Goya só conseguiu registar estes factos alguns anos depois, quando o rei D. Fernando VII foi reconduzido ao trono espanhol.

            Numa poça de sangue, jazem três cadáveres no chão, enquanto um frade e alguns camponeses esperam receber a descarga, dos quais se aproxima outra fila de condenados que vão ser mortos.

            O grupo das vítimas tem no centro um homem que abre os braços, um condenado de camisa branca, um Cristo simbólico e inocente, cujo gesto se repete na figura caída em primeiro plano, que desafia os soldados sem rosto, curvados e fixos no ponto de mira. Este grupo de militares, situado à direita, significativamente de costas, empunha com violência as armas que dispara à queima-roupa. Os restantes elementos do grupo das vítimas caminham aterrorizados para a morte. Um frade reza e as restantes pessoas fazem gestos de desespero (cabeças baixas, mãos cobrindo o rosto).

            Assim sendo, pode concluir-se que a pintura constitui a denúncia da arbitrariedade do poder e da guerra que escolhe as suas vítimas entre os menores poderosos: o povo inocente. Por outro lado, configura um grito silencioso de revolta contra a opressão, em defesa do patriotismo e da liberdade, princípios muito caros aos românticos.

            No que diz respeito às cores e à luz, predominam os ocres da terra violada da Pátria e dos fatos pobres do povo. O negro representa a noite, tempo em que a ação se localiza; contra o céu escuro recorta-se o perfil da cidade-capital e, em primeiro plano, rodeado de luzes e sombras projetadas de encontro ao muro por uma lanterna, dá-se a execução brutal e impiedosa. O branco (símbolo da pureza e da paz) da camisa contrasta com o vermelho do sangue brutal e injustamente derramado, aqui e ali salpicados por leves tonalidades de azul, verde e amarelo. A luz, por sua vez, nasce da grande lanterna, no entanto, na verdade, é do homem da camisa branca que ela irradia, transformando o seu sacrifício anónimo um poderoso e digno foco dramático.

            Por último, no que diz respeito aos contornos, a pincelada é dramática, com menos contornos nos inocentes que nos carrascos. Aqueles parecem em comunhão com a terra.


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...