quarta-feira, 5 de outubro de 2022
O espaço de O Delfim
terça-feira, 4 de outubro de 2022
Análise de "Cornélia, Mãe dos Gracos, Apresentando os seus Filhos"
Na
pintura, encontramos, ao centro, portanto em posição de destaque, uma figura
feminina, Cornélia, que, vestida de branco (cor que simboliza a pureza), se
dirige a uma outra mulher vestida de vermelho (símbolo da paixão, neste caso,
das coisas mundanas) e branco. Esta personagem, sentada, exibe as suas joias
valiosíssimas; como resposta, Cornélia mostra os seus três filhos, o seu maior
tesouro. Deste modo, através desta situação contrastante, a pintora enfatiza o materialismo
e a frivolidade da mulher de vermelho, provocando o seu visível embaraço.
Cornélia,
na realidade, era uma figura histórica romana, uma das poucas mães em Roma às
quais se credita uma poderosa influência sobre a vida pública dos filhos. Era
também conhecida por se vestir de forma menos vistosa do que muitas das suas
contemporâneas. Cornélia era mãe dos Gracos, dos quais dizia
que eram as suas joias, e, depois de ficar viúva, recusou voltar a casar,
preferindo dedicar-se exclusivamente à educação dos filhos, que ficaram
conhecidos pelas iniciativas reformistas e que acabaram por provocar o seu fim
trágico.
Em suma, esta obra critica o apego excessivo aos bens materiais e a vaidade feminina, demonstrando-se que há valores muito mais importantes na vida do ser humano, como, por exemplo, o amor maternal.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Análise de "Dizeres íntimos", de Florbela Espanca
Dizeres íntimos
O título da composição aponta
para a ideia de que se trata de uma confissão do «eu» poético (onde ele revela
as suas inquietações e pensamentos dolorosos ao refletir sobre a morte), o que
parece ser confirmado pelo uso da primeira pessoa, quer nas formas verbais
(“vou”), quer nos determinantes (“minha”).
O primeiro verso traduz a tristeza
do sujeito lírico pela sua morte, sobretudo, deduz-se, numa idade jovem: “É tão
triste morrer na minha idade” (v. 1). Assim sendo, o poema coloca-nos, desde
já, perante a ideia da morte como algo triste.
Os versos seguintes parecem esboçar
uma imagem do estado físico de uma pessoa morta, como, por exemplo, o redor dos
olhos roxos. A aliteração do /s/ produz uma sonoridade apropriada para a
expressão de estados de alma caracterizados por sentimentos como a tristeza, a
dor e a angústia, motivados pela morte. Por seu turno, a assonância da vogal
/i/, associada ao diminutivo “inho”, reproduz um tom agudo que sugere a imagem
sonora de um grito fino e dolorido que vai crescendo à medida que o sujeito
poético pensa na morte e no abandonar o usufruto da vida.
Pela leitura da primeira estrofe,
fica claro que a morte, para o sujeito poético, é um evento triste, já que
significa o fim da vida. Desta forma, o «eu» ironiza a morte, desde logo porque
não é possível evitá-la, o que o leva a procurar camuflar o medo de morrer,
dado que, ao mesmo tempo que demonstra angústia ao referir-se-lhe, parece
ironizar e brincar com a morte, como se depreende do uso da expressão “E vou
ver” (v. 2), a qual sugere um momento de reflexão.
Os versos 3 e 4, embora contenham
vocabulário do domínio do religioso (“crentes”, “convento”), não querem dizer
que o sujeito poético seja religioso, antes pretendem traduzir uma atitude
solene e compungida, representada pela imagem do “convento da Saudade” (v. 4).
A referência à cor roxa e o adjetivo “soturno”, juntamente com as vogais
fechadas /u/ e /o/ traduzem o tom melancólico e fúnebre que domina a primeira
estrofe. Deste modo, o «eu» expressa o medo que a ideia de morte lhe traz, pois
a qualquer momento a vida pode extinguir-se e a matéria transformar-se em nada,
em pó. Imaginar a própria morte é um gesto assustador e angustiante por várias
razões, incluindo o facto de ela não ser apenas uma possibilidade, mas uma
certeza.
A segunda quadra abre com a conjunção
coordenativa copulativa «e», o que traduz uma ideia de sequência, ou seja, a
tristeza expressa na primeira estrofe expande-se nesta e manifesta-se sob a
forma de outro sentimento: a ansiedade [“E logo vou olhar (com que
ansiedade!...)”]. O ato de olhar contém em si o sentimento de ansiedade
anunciado dentro dos parênteses.
Após o discurso parentético, o «eu»
prossegue a descrição do estado cadavérico, focando-se nas suas mãos, “esguias”
e “languescentes”, isto é, moles, fracas, sem vitalidade e pálidas. A repetição
da conjunção coordenativa copulativa «e» ao longo de versos vários sugere a
gradação com que a morte se vai apossando do corpo: inicialmente, pintam os
olhos de roxo; depois, empalidece e enfraquece as mãos; a seguir, no verso 7, os dedos brancos.
Nos versos 7 e 8, o «eu» estabelece
uma analogia entre os bebés doentes e ele mesmo, sugerindo a sua, dele, morte
prematura, enquanto o primeiro terceto se inicia com uma tonalidade mais
positiva, tendo em conta o vocábulo “Paraíso” no verso 9, dado que, em termos
religiosos, ele simboliza o espaço para onde o espírito vai após a morte, sendo
considerado um ambiente calmo, iluminado, pacífico. Ora, é exatamente essa
sugestão de paz que este terceto introduz no soneto, como se o sujeito poético
fosse gradualmente acalmando e a sua angústia, trazida pelos pensamentos na
morte, vai desaparecendo aos poucos.
Por outro lado, não obstante o
Paraíso ser associado à morte, neste caso parece estar mais relacionado com a
vida. Aqui, entra em cena a imagem da “estrada larga, ao sol, florida”: a
estrada larga é o futuro pela frente; “florida” é a flor da idade, a juventude;
o sol representa a plenitude da vida. Em suma, a imagem enfatiza a felicidade
trazida pela esperança representada pela estrada larga e florida que é a
juventude.
O último terceto precisa a idade do
«eu»: vinte e três anos. Os parênteses e a exclamação traduzem, mais uma vez, a
tristeza que sente de morrer na sua idade, tendo toda a vida pela frente. Ou
seja, apesar de exalar vida com vinte e três anos, sabe que a morte é
inevitável. Neste contexto, as reticências enfatizam a valorização da vida e a
vontade de viver.
O soneto termina de forma irónica: “Dizem
baixinho a rir: / Que linda a vida!...”. As repetições da vogal /i/ causam a impressão
de uma risadinha fina, sarcástica dos seus “vinte e três anos”. A ironia maior
reside no verso 14, traduzindo a dor causada pela morte: “Responde a minha
dor:/ Que linda a cova!”. É interessante registar que as antíteses “rir”/”dor”
e “vida”/”cova” parecem sugerir que, embora o senso comum se entristeça com a
ideia da morte em idade jovem, ela também determina o fim da dor. O nome “cova”
representa precisamente a morte, mas uma morte que se torna um alívio, pois o
sofrimento, a dor, a angústia terminam.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022
Análise de "Poema dum funcionário cansado", de António Ramos Rosa
Este poema foi incluído na obra O Grito Claro, publicado em 1958. Nele, Ramos denuncia a desumanização de que são vítimas os trabalhadores do Estado, traduzida na alienação que o trabalho rotineiro e monótono impõe a quem dele necessita para (sobre)viver e que se traduz na perda da individualidade que advém do esmagamento do espírito do funcionário público, tratado como uma máquina ou uma parte dela. A sociedade não liberta; pelo contrário, escraviza; não valoriza e dignifica, antes desumaniza.
Na primeira estrofe, o sujeito
poético autocaracteriza-se como uma pessoa solitária, confusa, sem amigos e
despojada de sonhos, com uma visão profundamente negativa e pessimista do mundo
em que vive, que o oprime.
Diariamente reduzida a uma coisa, um
objeto, o “funcionário cansado” perceciona a cidade como um espaço físico (e
social) asfixiante e opressivo, no qual a escuridão da noite, as ruas e as
casas se tornam ameaçadoras ao agigantarem-se contra ele (“as casas engolem-nos”)
– a casa é representada como um monstro que o engole (devora); as ruas
limitam-lhe os movimentos (“ e a rua é estreita / em cada passo”), como secada
uma fosse uma calha à qual está preso (como o comboio aos carris) e lhe
dirigisse os passos até ao quarto onde vive, solitário, e para onde retorna
todas as noites com o coração pesado e a alma triste. O espaço, com efeito,
aprisiona-o, a ele e aos seus sonhos, perdendo tudo o que possa ter de mais
íntimo, pessoal e criativo. O que sobra? Um “funcionário cansado”,
“irremediavelmente perdido no [seu] cansaço”. Atente-se na repetição,
nomeadamente da expressão “num quarto só” (quatro vezes em todo o poema), que
acentua a solidão do sujeito poético. Por outro lado, a personificação da
noite, responsável pela dispersão dos sonhos e dos amigos, bem como das casas
que o engolem, sublinha a confinação e o aprisionamento do «eu», vítima de uma
realidade que não o deixa respirar.
A cidade, percecionada, pois, como
extensão do poder instituído, impede a libertação da servidão em que o
funcionário se encontra, situação que é partilhada pela generalidade dos que
executam tarefas burocráticas (atente-se no uso do plural “engolem-nos” e
“sumimo-nos”) através das quais o Estado afirma o seu poder, ao mesmo tempo que
os responsabiliza, na medida em que as normas são superiormente decididas. Ao
funcionário cabe apenas cumprir as ordens que lhe dão e é essa obediência que
lhe garante uma vida “útil” à sociedade, o seu sustento e o da família.
No final do dia, espera-o um quarto,
uma outra “gaiola” idêntica à do pássaro que observa através da janela do
escritório (verso 16). Ao espaço reduzido em que trabalha, sucede o espaço
exíguo em que dorme sozinho. A pequenez do espaço em que faz a contabilidade
continua cá fora e, quanto mais pequenos forem os espaços, mais fácil será
exercer um controlo sobre os indivíduos, tanto na vida pessoal como na vida
profissional e social. Culpado do crime de desejar uma vida na qual lhe seja
permitido sonhar, criar, manifestar a sua singularidade de ser humano, o
funcionário é condenado à solidão do quarto para não ser contaminado com
pensamentos alheios ao desejo de ser útil à nação por parte do “chefe”, cujas
promoções se fazem à custa do cumprimento escrupuloso do «dever» e da denúncia
de quem pensa de modo diferente.
Habituado a ser dirigido pelo
“chefe”, este funcionário sente-se perdido fora do local de trabalho; o mundo
parece-lhe confuso, as relações sociais são inexistentes ou ocasionais, a
escuridão causa-lhe medo, porque é nela que se encontra consigo próprio e o que
vê dentro de si deixou há muito de fazer sentido, é uma noite mais negra que a
noite citadina: “A noite trocou-me sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos /
tenho o coração confundido e a rua é estreita / […] com toda a vida às avessas
a arder num quarto só.” O sujeito poético, solitário, sem amigos e despojado
dos seus sonhos, manifesta uma visão pessimista da sua vida e do mundo que o
rodeia, sentindo-se emparedado pelo espaço.
No início da segunda estrofe,
autocaracteriza-se como um funcionário “apagado” e “triste”. O seu cansaço
nasce do conflito que existe entre o seu reconhecimento de uma vida dedicada à
colaboração com uma organização social que o desorganiza a ele, dado que lhe
suga a vitalidade, e a necessidade de o fazer, apesar de saber que é apenas uma
peça de uma vasta engrenagem e das manifestações de desprezo que sente. O seu
lado visível aceita as ordens provenientes do superior hierárquico e o seu lado
invisível assiste, impotente, ao esmagamento quotidiano da sua individualidade.
Isto significa que existe um
desajuste entre a sua sensibilidade de poeta e a sua condição de funcionário.
De faco, esta obriga-o a uma vida compassada pelo ritmo dos números e dos
documentos com que trabalha, o “Débito e Crédito” referenciado no poema. No
entanto, em desajuste relativamente a esta condição de funcionário, a sua alma
insatisfeita “não dança com os números” e arrasta o seu “olhar lírico” de poeta
para lá da realidade, para a beleza de um pássaro, para as “velhas palavras
generosas” do seu sonho aprisionado. Neste passo do poema, o sujeito poético
recorre, nalguns versos, a uma ironia triste: “A minha alma não dança com os
números”, “o chefe apanhou-me com o olhar lírico”, “debitou-me na minha conta
de empregado”.
Apesar de tudo, é no local de
trabalho, onde vigora o “policiamento do chefe”, que o funcionário ousa deitar
o “olho lírico” (ironia e metáfora: traduzem a possível transformação que a
vida poderia trazer à sua vida), para a “gaiola do quintal em frente” (metáfora),
atitude que o faz sentir “envergonhado” por se evadir, momentaneamente, do
“Débito e Crédito Débito e Crédito”. Este passo do poema pode ter duas
interpretações: por um lado, o funcionário sentirá inveja do pássaro por este
lhe parecer ter tido mais sorte, dado que nasceu pássaro inconsciente da sua
prisão (os animais irracionais, enquanto tal, não pensam, não refletem, pelo
que não têm consciência do que são ou experienciam); por outro lado, o olhar
que o «eu» lhe dirige é um olhar de cumplicidade terna com o animal
encarcerado, tal como ele.
A realidade é que, da janela do
escritório, o funcionário observa um espaço exterior domesticado e murado do
qual está ausente o céu; o desejo por parte dos agentes do poder de dominar os
que se encontram na base da pirâmide é extensiva à natureza. Quer o ser humano
quer a natureza não humana existem apenas para serem úteis: o funcionário faz a
contabilidade, o quintal produz o que lá decidiram plantar e o pássaro decora o
quintal e distrai o dono com o seu canto.
Domesticado como um animal numa
jaula, o funcionário, “cansado” de pactuar com uma sociedade em que não se
revê, sente-se “envergonhado” após ter sido “apanhado” a olhar o pássaro preso.
O “chefe”, estupidificado por anos de chefia, não percebeu que um ser humano
digno desse nome lamenta a triste vida dos pássaros engaiolados, eles que
nasceram para voar no infinito do céu. Provavelmente convencido de que o
funcionário desejava trocar a vida rotineira e monótona de “o deve” e “o haver”
por outra diferente, decidiu diminuir-lhe o salário, pois muitos outros
estariam dispostos a fazer a contabilidade dias inteiros sem tirar os olhos do
papel.
A divisão interior que o conflito
entre a vontade da “alma” e a necessidade de ser um funcionário exemplar não se
manifesta em revolta contra o agente controlador da sua vida, apenas se anuncia
nas perguntas retóricas que o funcionário se coloca e para as quais sabe a
resposta: “Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? / Porque
me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?” Estas interrogações
traduzem o desalento solitário, a insatisfação calada e só confessada a si
mesmo.
Cansado de não viver, mas da vida
desagregadora da sua realidade interior, da ausência de esperança / sonho em
que a sua vida se transformou, tem consciência de que, caso escolhesse um
caminho alternativo à submissão ao “chefe”, se condenaria à angústia gerada
pelo desemprego, pela despromoção social, pelo sentimento de culpa e pela
miséria. Na engrenagem social de que ele e a maioria das pessoas faz parte, não
há final feliz para ninguém, porque a exploração dos que estão empregados e o
desespero dos que procuram emprego é mortal para uns e outros, ainda que por
razões diferentes.
Na solidão do quarto, o funcionário
“soletra” as “velhas palavras generosas” (metáfora) que outrora o fizeram
sentir-se vivo, talvez porque já não as saiba pronunciar tão bem como
antigamente, de tão descabidas que elas agora lhe parecem no isolamento em que
vive e em tempos de desprezo pelo que é genuinamente humano.
Em suma, na segunda estrofe, o «eu»
poético revela as razões da sua insatisfação e do seu cansaço: a atividade que
exerce como funcionário público, daí o seu autorretrato – apagado, triste e
inadaptado à rotina de um trabalho que não é compatível com a sua alma de
“poeta”. O seu trabalho envolvendo contas e contabilidade, cálculos e números
fazem parte de um mundo material, de um tipo de atividade da qual a sua alma
lírica não participa.
Apesar da sua condição de funcionário
que arrasta uma existência apagada, o funcionário soletra “velhas palavras” que
povoam o seu sonho abafado – “flor”, “rapariga”, “amigo”, “menino”, “irmão”, “beijo”,
“namorada”, “mãe”, “estrela”, “música”. São palavras que podem encher de calor
a alma mais fria, de cor o lugar mais cinzento, palavras carregadas da poesia
que o funcionário não ousa, apenas timidamente soletra e deixa escapar do “olho
lírico”. A enumeração dos versos 22 a 24 simbolizam aspetos como amor, afeto,
beleza, vida, inocência, amizade, alegria, luz, que a vida tem e ao «eu»
faltam.
No entanto, o sonho de libertação é
impossível, pois o sujeito poético esconde, envergonhado, as suas evasões
poéticas, como se verifica com o olhar a gaiola do quintal em frente do seu
escritório, está soterrado na prisão da sua vida, autolimitado, sozinho na
noite que o venceu e lhe “trocou os sonhos e as mãos”. Aprisionado num espaço
físico e social absolutamente asfixiante que o engole e aos seus sonhos, num
universo de funcionários que só podem ter olhos para os papéis, perde tudo o
que possa ter de mais íntimo, pessoal e criativo, e fica um “funcionário
cansado”, “irremediavelmente perdido no [seu] […] cansaço”. De acordo com o
«eu» poético, a existência sem poesia constitui um grande vazio, por isso
intenta um momento de evasão, traduzido pelo soletrar de “palavras generosas”,
sem as quais a vida se resume a nada.
terça-feira, 27 de setembro de 2022
Os websites mais populares desde 1993
segunda-feira, 26 de setembro de 2022
Análise do prefácio da segunda edição de Amor de Perdição (1863)
Título ↓ a caracterização da história de Simão: “triste
história”, “trágicas e afrontosas dores” |
|
Subtítulo ↓ as referências à família do protagonista e do autor
(“a triste história do meu tio paterno”, “Minha tia […] estava sempre pronta
a repetir o facto”, etc.) |
domingo, 25 de setembro de 2022
sexta-feira, 23 de setembro de 2022
Análise do poema "Variações sobre «O Poema Pouco Original do Medo» de Alexandre O’Neill", de Manuel Alegre
Este poema de Manuel Alegre foi escrito em 1965,em plena vigência do Estado Novo, que é o equivalente a falar em falta de liberdade, censura, medo, opressão. A literatura não ficou indiferente à situação: houve escritores que a aceitaram, enquanto outros procuraram combater o regime, o que forçou alguns ao exílio, como sucedeu com Manuel Alegre.
O título do texto relaciona-o
com o poema de Alexandre O’Neill por meio do nome «variações», termo que remete
para uma versão de algo. Assim sendo, iremos encontrar diferenças entre as duas
composições.
Relativamente à estrutura interna,
podemos dividir o texto em três partes. A primeira corresponde à primeira
estrofe, que nos dá conta da invasão da cidade pelos ratos e o seu domínio
sobre “as gentes”. A segunda parte, composta pela segunda estrofe, evidencia a
postura do «eu», que não se conforma nem se acomoda à vontade dos ratos, não se
deixa intimidar nem oprimir. A terceira parte, a terceira estrofe, apresenta o
resultado do poder transformador do canto, isto é, a liberdade de expressão
combate o medo.
A primeira estrofe dá-nos conta de
uma situação: os ratos invadiram a cidade e dominaram toda a gente, como o
demonstra o seu comportamento – tomaram as casas e roeram o coração das
pessoas, a vida, o sol, a lua e o amor. Quer isto dizer que o medo reina,
governa tudo e todos, incluindo o próprio país. A metáfora do verso 4 (“Cada
homem traz um rato na alma.”) significa que as pessoas foram dominadas pelo que
os ratos simbolizam negativamente. A aliteração do /r/ do verso 5 sugere a
forma como os ratos roem e o ruído que produzem ao fazê-lo, bem como a sua ação
dominadora e destruidora dos seres humanos. Por sua vez, o verso 6 traduz a
noção de que todos têm de aceitar os valores e as ideias representadas pelos
ratos. Por outro lado, simboliza a desumanização das pessoas, ao retirar-lhes
os traços humanos, substituídos pelos dos roedores.
Por que motivo terá o «eu» selecionado
estes animais para desenvolver a temática do poema? Os ratos são bichos que
vivem e se alimentam do lixo, que se reproduzem rapidamente e em grande escala.
Quando atuam em grupo, têm um efeito devastador. Além disso, são responsáveis
pela transmissão de várias doenças graves para os humanos, como, por exemplo, a
peste negra. Por último, o termo «rato», quando aplicado às pessoas como
adjetivo qualificativo, significa que as ditas são medrosas, se acobardam.
Deste modo, podemos deduzir que os
ratos, neste poema, simbolizam o medo, a opressão, a desumanização do indivíduo,
etc.
A segunda estrofe mostra a atividade
e o comportamento do «eu». Assim, afirma-se um homem, por oposição a um rato.
Por outro lado, ao contrário dos roedores, que chiam, ele canta e grita-lhes
não, isto é, enfrenta-os corajosamente, não se deixando intimidar nem oprimir. Por
conseguinte, enche a toca de sol, que simboliza a liberdade (o sol fica no
céu), a luz, a esperança; de luar e de amor. Cada uma das ações do sujeito poético
é seguida de um verso entre parênteses e anafórico (“Cá fora”), que traduz a
oposição entre os ideais que defende – a liberdade, por exemplo – e que estão a
ser destruídos pelos ratos (“roeram o sol”, “roeram a lua”, “roeram o amor”) e
a situação vivida.
A última estrofe reflete o poder
transformador da ação e do canto do «eu». Esses quatro versos estão prenhes de
esperança e representam a semente da mudança que foi plantada: a toca do
sujeito poético não é mais dominada pelos animais; pertence agora a um conjunto
de homens que canta e que, através do seu canto, a enche de sol, ou seja, subverte
a situação num sentido positivo. O sol e o canto simbolizam os princípios que
os ratos haviam destruído, concretamente a liberdade de expressão, a vida, o
amor. Por outro lado, a antítese entre os ratos que chiam e os homens que
cantam representa a humanização destes. Em suma, esta estrofe apresenta-nos a
imagem de um conjunto de homens unidos e a cantar contra os ratos, isto é,
todos os que oprimiam, para permitir que a cidade, sinédoque do país
(Portugal), se voltasse a encher de sol, ou seja, de liberdade.
Deste modo, podemos concluir que
este poema reflete o medo e a opressão vividos nos anos 60 em Portugal, em
plena ditadura salazarista. Assim, não é de estranhar o posicionamento crítico
do poeta, que denuncia e expõe a opressão e a falta de liberdade suscitadas
pelo regime, como forma de dominar “as gentes”, a sociedade.
A presença do canto dos homens neste poema relaciona-se com uma tendência da época, que consistia em fazer da poesia uma arma de combate, de denúncia da situação, em suma, uma arma política. Assim sendo, o poeta, nesta composição, denuncia a opressão e a falta de liberdade de expressão, mostra a sua postura perante a realidade vivida na época face à opressão e perseguição da polícia através da figura dos ratos.
quinta-feira, 22 de setembro de 2022
Análise do poema "Caminho", de Camilo Pessanha
Tenho sonhos cruéis, n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente…
Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...
Porque a dor, esta falta d’harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d’agora,
Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.
Nas duas quadras, o sujeito poético
descreve o seu drama existencial, o seu percurso de vida (passado, presente e
futuro), enquanto nos dois tercetos amplia esse sentimento ao descrever a dor
como uma falta de harmonia, embora necessária aos corações humanos,
demonstrando que o seu sofrimento é recorrente no percurso de outras vidas.
O sujeito poético é um ser sofrido,
consumido por uma dor existencial, que não é motivada por nenhuma razão
palpável, como o amor não correspondido, a perda ou a morte.
Na primeira quadra, o «eu» descreve
a sua angústia em relação ao caminho que deve percorrer e declara-se um
sonhador, embora viva um momento de dor e medo, do qual, apesar de tudo, sente
saudades. A rima entre o adjetivo «doente» e o nome «presente» contribui para a
construção da ideia de que o presente do «eu», embora seja passível de saudade,
é um momento de sofrimento, no qual a sua alma se encontra doente, assolada por
essa dor. No que diz respeito à sua trajetória, o sujeito poético afirma que
tem sonhos cruéis que mantém na sua alma. Por outro lado, sente um receio que o
faz caminhar com medo pelo estreito caminho que o levará ao futuro. Ao mesmo
tempo em que há o medo, sente saudades do presente, no sentido de que o caminho
que o levará ao futuro o faz sentir saudades do presente, que logo se
transformará em passado, assim que o caminho for percorrido. Por outro lado, a
rima entre o adjetivo «prematuro» e o nome «futuro» mostram que a angústia do
sujeito lírico existe em todos os momentos, que o medo é antecipado, incluindo
o que se relaciona com o futuro, o incerto.
Na segunda quadra, a rima entre a
forma verbal «procuro» e o adjetivo «escuro» sugere que, embora o «eu» procure
libertar-se da dor que sente, a escuridão e o sofrimento constituem a sua
resposta. Mais uma vez afirma que sente saudades do presente e da dor que o
caracteriza, da qual se procura afastar, porém em vão. Essa dor agrava-se com o
anoitecer (“ao desmaiar sobre o poente” – v. 7). O mesmo véu que cobre a noite
cobre o seu coração e torna-o sombrio, tomado pela dor, pelos medos e pelas
incertezas. A metáfora “desmaiar sobre poente” representa o sono, o momento de
adormecer. Além do caminho que é a vida, há outros caminhos: o que transforma
dia em noite, sol em escuridão.
No primeiro terceto, o sujeito
poético compara a dor à falta de harmonia, a qual se pode entender como um
desconcerto, uma inadaptação ao mundo, à sociedade e a si mesmo. Por outro
lado, a dor é a luz desregrada que ilumina as almas, a luz que ora é forte, ora
é fraca, mas sem a qual não é possível sobreviver, como se comprova no segundo
terceto: “Sem ela o coração é quase nada: / Um sol onde expirasse a madrugada,
/ Porque é só madrugada quando chora.” (vv. 12-14). Estes versos significam
que, sem essa luz e consequentemente a dor, que gera a luz, o coração é quase
nada. A rima entre «agora» e «chora» evidenciam o sofrimento que caracteriza o
«eu» no presente. A escuridão e a madrugada constituem símbolos de solidão e
dor.
segunda-feira, 19 de setembro de 2022
Análise do poema "Reais Ausências", de Ana Luísa Amaral
Ao longo do poema, o «eu» enumera
reis e rainhas, estabelecendo entre eles constantes conspirações, no sentido de
evidenciar a escassa importância que é dada a elas, falemos da rainha santa
Isabel – famosa pelo milagre das rosas –, comparada com Henrique VIII – famoso por
ter casado seis vezes, por ter sido declarado soberano da nova Igreja Anglicana
(fundada após a sua rutura com a Igreja Católica), por ter exercido o poder
mais absoluto dentre os monarcas ingleses e pela peça homónima de Shakespeare –,
seja comparando Maria da Escócia – uma soberana bela, instruída, culta e
inteligente, condenada à morte pela filha de Henrique VIII, Isabel I, sua prima
– a D. Dinis, marido da rainha portuguesa Isabel, famoso trovador e místico
plantador do pinhal de Leiria, cuja madeira, de acordo com a Mensagem,
serviria para construir as naus das Descobertas.
Por outro lado, o sujeito poético
parece sugerir que as figuras femininas teriam sido as responsáveis pela ruína
dos reis míticos, Artur e Sebastião. De facto, de acordo com a História,
Guinevere traiu Artur com Lancelot, um dos seus cavaleiros da Távola Redonda,
enquanto D. Sebastião, por ser solteiro (correspondendo tal à ausência de uma
mulher) e ter morrido em Alcácer Quibir, esteve na origem do fim da dinastia de
Avis e da perda da independência nacional.
A ausência da mulher assume
particular relevância na já citada Mensagem, na qual são referidas
unicamente D. Teresa, “Mãe de reis e avó de impérios”, e D. Filipa de
Lencastre, o “Humano ventre do Império”, a que só génios concebia, o que
equivale a dizer que as mulheres são importantes não pelos seus atos ou pelas
suas qualidades, mas apenas pela função de mães, de terem concebido e dado à
luz os reis de Portugal. Assim sendo, o papel das mulheres é reduzido à
conceção, “como se a virtude da mulher pudesse ser medida pelas virtudes de
seus filhos, como se esses filhos fossem uma continuação da mãe, não um começo
em si.”(Rhea Willmer, in Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de
pensar o feminino na poesia contemporânea em português, p.45).
As rainhas deveriam ser, entre as
mulheres em geral, especialmente férteis, visto que dependia delas o assegurar
a descendência e os sucessores ao trono. Outra obra de referência, o
Memorial do Convento, aborda, logo de início, esta premência de assegurar a
sucessão. Com efeito, existe grande preocupação no círculo da corte por causa
de a rainha, após quase dois anos de casamento, ainda não ter dado um filho a
D. João V. A função da mulher é reduzida no romance, mais uma vez, a parir filhos,
daí o narrador se referir a ela através de uma metáfora bíblica: “vaso de
receber”.
Voltando ao poema, a única figura
feminina que assume relevância enquanto monarca é a rainha Vitória. É importante,
neste contexto, salientar o facto de esta soberana ter assumido o trono
unicamente pelo facto de, à época, não haver nenhum homem que sucedesse, por
linha direta, ao rei George III, bem como a realidade de não ter assumido o
poder em Hannover, onde vigorava a lei sálica (uma lei originária dos Francos
Sálios, estabelecidos no Norte da França e da Bélgica atuais, que excluía as
mulheres da sucessão à terra dos seus antepassados, por se considerar que,
através do casamento, elas deixavam a sua família para integrar a do marido.
Esta lei, que inicialmente se aplicava exclusivamente às sucessões privadas,
graças a uma interpretação abusiva dos juristas, serviu mais tarde para as excluir
da sucessão da coroa). Não obstante, o «eu» lírico destaca que “na forma de
mandar, foi mais que homem”.
É frequente, quando as mulheres que
lideram governos exercem o poder de forma rígida e conservadora, compará-las a
homens, como se fosse necessário que se masculinizassem para exercer esse
poder. São exemplos disto a ex-primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher
(apelidada de Dama de Ferro) e Golda Meir, em Israel. Esta comparação estará,
eventualmente, relacionada com o facto de estas figuras não terem assumido,
durante a sua governação, uma postura maternal relativamente ao seu povo nem “uma
posição progressista esperada por muitos homens e mulheres que veem no
conservadorismo uma forma de perpetuar as desigualdades, dentre as quais, as
desigualdades entre homens e mulheres.” (Rhea Willmer, ibidem, p. 46).
Deste modo, a rainha Vitória, mesmo não sendo uma monarca absolutista, acaba
por ser comparada a um homem pela forma como exerceu o poder e pela rigidez em
termos de normas sociais, vestuário e linguagem, traços evidenciados no poema
por expressões como “toucados opressores” e “verso espartilhado e de costumes”.
Perante isto, o sujeito poético
parece procurar um modo feminino e diferente de exercer o poder num “reinado
feminino e língua nova, / nariz torcido à guerra no saber ancestral / de entranhas
próprias”, mas não encontra nenhum exemplo de tal: “não me lembro nenhuma”. Apesar
de haver figuras como as rainhas Santa Isabel e Vitória, que exerceu o poder
durante mais de sessenta anos, não existe nenhuma monarca mitificada pela
maneira como exerceu o poder. Veremos como a História registará a longo reinado
de Isabel II, de Inglaterra, recentemente falecida. A única exceção talvez seja
Inês de Castro. Porquê? Em primeiro lugar, esta figura assumiu grande
relevância literária (tal como os reis Artur e Sebastião, por exemplo),
constituindo um dos mais importantes episódios de Os Lusíadas e servindo
de base à escrita de uma tragédia, da autoria de António Ferreira. Em segundo
lugar, foi coroada depois de morta. Em terceiro lugar, possui sobrenome próprio
(Castro), dado que não chegou a casar com D. Pedro. Em quarto lugar, a sua
mitificação não dependeu da sua função de mãe, visto que a conceção de filhos
de um rei foi a consequência do seu amor por D. Pedro e das suas relações sexuais
com o filho do rei (D. Afonso IV, que a mandou matar). Assim sendo, Inês de
Castro é assassinada – e posteriormente mitificada – por não ter seguido o
modelo de Nossa Senhora. Com efeito, esta concebeu o filho de Deus sendo
virgem, para que o fruto do seu ventre fosse puro, sem a mancha do pecado do
sexo, enquanto Inês satisfez os seus desejos sexuais femininos de um modo que
só foi permitido às mulheres trazer a público e através de uma linguagem muito
recentemente.
Note-se, porém, que num outro poema,
intitulado “Inês e Pedro: quarenta anos depois”, Ana Luísa Amaral traça um
retrato muito cruel do casal. Assim, Inês é, quarenta anos depois, uma mulher
velha e desdentada, enquanto o seu amado Pedro sofre de cãibras e o passado é
mera fantasia ou imaginação. Um pouco à semelhança do que aconteceu com Diana
de Gales, a morte prematura permite a Inês de Castro tornar-se um mito: ela
está morta, mas permanece jovem e bela. Envelhecer e tornar-se um mito é algo
extremamente difícil para as mulheres. Atente-se, por exemplo, no caso da atriz
Greta Garbo, que abandonou a sua carreira em Hollywood, para ficar imortalizada
no auge da sua beleza.
Bibliografia:
• FERNANDES, Maria Lúcia, As Palavras e as
Coisas na Poesia de Ana Luísa Amaral.
• JUNQUEIRA, Maria Aparecida, Imagens:
tempos espacializados na Poesia de Ana Luísa Amaral.