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quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Análise de "Nova canção do exílio", de C. Drummond de Andrade


             Este poema, constituído por 17 quadras e 1 dístico, foi publicado originariamente na Revista de Domingo do Jornal do Brasil em 1978 e republicado em Poesia numa hora dessas? em 2002, e traça um quadro simultaneamente humorístico e sinistro do final da década de setenta do século XX.

            Os dois primeiros versos enumeram quatro clubes brasileiros (“Minha terra tem”): o Palmeiras e Corinthians, dois rivais paulistas, o Internacional de Porto Alegre, clube pelo qual torce o autor, e o Flamengo, o clube mais popular do Brasil. De seguida, o «eu» poético alude à seleção argentina de futebol e ao Mundial realizado nesse país em 1978, do qual a equipa anfitriã se sagrou campeã. Ora, nesse mesmo ano, o campeonato brasileiro foi disputado por setenta e quatro clubes. Nas meias-finais, o Palmeiras eliminou o Internacional, mas, na final, realizada em agosto, o campeão foi o Guarani.

            Nesta estrofe ainda, fica clara uma ideia muito comum entre a população brasileira, nomeadamente na época da ditadura: o futebol seria uma atividade típica de alienados, de ignorantes. Após a surpresa de “palmeiras” se tornar “Palmeiras”, a referência ao que aconteceu – “pelo que se viu” – na Argentina remete para o foco do poema: a crítica política temperada pelo humor elegante. Afinal, o que se viu na Argentina? O mundo viu que “não jogam mais futebol por lá”.

            Em junho de 1978, sob a presidência do general Jorge Rafael Videla, aquele país sedeou o Campeonato do Mundo de futebol, numa época em que estava sujeito a uma ditadura militar feroz, a qual, de acordo com entidades ligadas à defesa dos Direitos Humanos, foi responsável pela morte de trinta mil cidadãos. A FIFA fez ouvidos moucos às denúncias e apelos internacionais e manteve a competição em solo argentino, o que levou, segundo se crê, a que o holandês Johan Cruyff tivesse recusado integrar a seleção do seu país, que repetiu a chegada à final e a derrota no certame, ocorridas em 1974. Tal como sucedeu no Brasil em 1970, sob a presidência de Médici, os jogos de futebol deveriam funcionar como uma espécie de “pão e circo” para o povo, distraindo-o dos problemas socioeconómicos que se viviam então. Os desmandos e a corrupção chegaram aos relvados e uma série de manobras e esquemas permitiu que a seleção argentina se sagrasse pela primeira vez campeã mundial de futebol. O caso mais notório sucedeu no desafio que opôs Argentina e Peru, cuja seleção, comprovadamente, facilitou a vitória dos anfitriões, impedindo o Brasil de prosseguir em prova.

            Deste modo, esta estrofe inicial altera, radicalmente, a perspetiva ingénua e edificante do poema oitocentista “Canção do Exílio”, da autoria de Gonçalves Dias, do qual o texto de Veríssimo constitui uma paródia, e utiliza para o efeito uma referência da cultura popular – o futebol –, comumente considerada como estando desprovida de elementos políticos, uma espécie de ópio do povo. De facto, o «eu» poético aproveita este desporto para tecer a sua crítica. O poema aproxima dois países vizinhos e rivais, mostrando que “por lá” (isto é, na Argentina) acontecem coisas semelhantes às que sucedem no Brasil, na “minha terra”, então sob a presidência do General Geisel, em pleno quinto ano de mandato (1974-1979), sucedendo a Garrastazu Médici. O sujeito poético já sabe, de acordo com a sétima estrofe, que outro general (Figueiredo, «eleito» em outubro de 1978) irá substituir Geisel. Nesse contexto, já se ouve falar de “promessas de abertura”: o famigerado Ato Institucional n.º 5, imposto em 13 de dezembro de 1968, virá a terminar em 31 de dezembro de 1978.

            Novamente, futebol e política misturam-se: fala-se, pois, de abertura e de “um suposto novo Santos”. De facto, em novembro de 1978, o Santos, outro clube de futebol sedeado em São Paulo, foi campeão paulista pela primeira vez após a saída de Pelé da agremiação, ocorrida em 1974. A suposta (mas não verdadeira) nova equipa ecoa nas “promessas de abertura”, o que parece indiciar que também estas são mera hipótese, sobretudo tendo em conta que “a coisa”, a vida, o quotidiano, “vai aos trancos”, isto é, aos trambolhões. Note-se como o sujeito poético volta a sobrepor assuntos aparentemente conflituantes: abertura e Santos, política e futebol. Não deixa de ser irónico o facto de, atualmente, o desporto continuar a ser um veículo do qual os políticos se procuram aproveitar e cavalgar para efeitos de popularidade. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o Primeiro-Ministro, António Costa, e o Presidente da Assembleia da República, Santos Silva, tencionam deslocar-se ao Catar para assistir a jogos da seleção portuguesa de futebol no Mundial do presente ano.

            Por falar em ironia, a terceira estrofe está prenhe deste recurso estilístico: o céu tem mais estrelas, mas a melhor conjunção é a que se alinha nos ombros de um general, metonímia do poder militar. O nome «conjunção» pertence tanto ao campo da astronomia como da astrologia e significa proximidade aparente de dois planetas ou de outros corpos celestes, naves ou sondas, que se encontram no mesmo alinhamento, vistos da perspetiva do nosso planeta. Esta estrofe indicia que posturas transcendentais ou místicas (“estrelas” no céu, “horóscopo”) passam para segundo plano comparativamente à “melhor conjunção”, neste caso a “melhor circunstância” (“estrelas no ombro”, “chão”). A República dos Generais (designação dos governos brasileiros entre 1964 e 1985, exercidos por generais), com as suas quatro estrelas, oprime, aos trancos, a vida: mesmo que o céu esteja cheio de estrelas, “no chão continua o assombro”, o terror. Note-se que, neste passo, o poema de Veríssimo se relaciona com a última estrofe de “S.O.S.”, tema musical cantado por Raul Seixas: “Ô ô ô seu moço do disco voador / Me leve com você, pra onde você for / Ô ô ô seu moço, mas não me deixe aqui / Enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí”. De facto, as “estrelas” constituem uma sinédoque / metonímia dos militares, visto que a patente ostentada pelos oficiais é simbolizada por estrelas. Os que têm mais estrelas nos uniformes são exatamente os generais. Deste modo, havendo tanta estrela “por aí”, isto é, com os militares no poder, o «eu» prefere embarcar num disco voador a permanecer em solo brasileiro.

            As estrofes seguintes focam outras questões: poluição, assaltos, atropelamentos, insegurança, desmatamento, o que significa que a violência se manifesta de múltiplas formas. Mais: quer a natureza quer o campo estão contaminados pela ação nefasta do ser humano. Nos rios poluídos, só entram “desinformados e suicidas”, ou seja, aqueles que desconhecem a poluição e o perigo que constitui e aqueles que sabem e, por isso mesmo, entram no rio para morrer. Note-se, por outro lado, que os bosques têm mais vida que a cidade, não por serem mais belos, vivos ou por qualquer outro atributo, mas porque na urbe se morre.

            A corrupção que ocorre nas instituições públicas contagia a esfera particular, um estado de coisas que é simbolizado pelo “motorista de porre”: a imprudência e a impunidade andam de braço dado. A noite – espaço e metáfora prediletos dos românticos, propiciadora de ambientes misteriosos, de solidão, reflexão e aventura – transforma-se, neste poema, num espaço real, concreto, de potencial perigo: “Em cismar, sozinho, à noite / mais prazer encontrava eu lá. / Agora sei que cismar pode, / mas sozinho, e à noite, não dá!” Andar sozinho, de noite, é extremamente perigoso hoje em dia.

            Na estrofe sete, encontramos de novo o nome «palmeiras», agora comum e não próprio, como na primeira, em que designava um clube de futebol, introduzido de forma cómica: há palmeiras, sim, mas não muitas, pois escasseiam as árvores (“anda escasso o arvoredo”). No final dos anos 70, deu-se o amadurecimento de uma consciência ecológica que se foi intensificando ao longo das décadas seguintes e que prossegue na atualidade a todo o vapor. O arvoredo escasseia, porque “Tudo se corta, queima e derruba”: este verso denuncia claramente o desmatamento (por exemplo, da Amazónia), um flagelo que prossegue nos nossos dias. Mas a leitura dos versos não fica por aqui: a rima pobre entre «arvoredo» e «Figueiredo» remete para a figura de João Batista de Oliveira Figueiredo, eleito Presidente da República pelo Colégio Eleitoral em 15 de outubro de 1978, sucedendo a Ernesto Geisel, tendo tomado posse a 15 de março do ano seguinte. O seu governo celebrizou-se pela inadequação e truculência do seu discurso, quando, por exemplo, se referira ao povo e à democracia. Note-se que, enquanto nome comum, a palavra «figueiredo» designa um extenso aglomerado de figueiras.

            Na oitava estrofe, o sujeito poético canta outros «primores» brasileiros – “samba, feijoada, bons papos” – que aludem a belezas genéricas e elementos que subentendem alegria e festa coletivas, sem conflitos, que entram em choque com uma referência pontual, concreta, que é introduzida sob a forma de uma interrogação: “mas quem é essa Bruna Lombardi?” Bom, Bruna Lombardi foi modelo e, posteriormente, atriz (estreou-se, em 1977, na novela Sem lenço, sem documento, da autoria de Mário Prata e exibida pela Rede Globo), tendo-se destacado pela sua beleza - «primores». Na época, no programa humorístico “Planeta dos Homens”, o ator Agildo Ribeiro dava corpo a um professor de mitologia que dava início às suas divagações sempre a partir da invocação da atriz: “Brrruna…”. Ao longo da sua obra, Veríssimo constrói uma espécie de paideuma de musas: Bruna Lombardi, Patrícia Pillar, Luma de Oliveira, Luana Piovani, etc.

            A nona estrofe explicita o quadro económico e político do ano de 1978: o aumento da taxa de juros e da inflação (40,8% em 1978 e 77,2% em 1979 – “Nossos bancos têm mais juros”); a política de favores, que estimula o enraizamento da corrupção nas instituições e nos costumes; o arrocho salariam (“nossos pobres mais desgraça”). No entanto, apesar deste quadro profundamente negativo, o povo resiste e tem vontade de viver, como se pode comprovar pelo verso “nossa vida mais amores”, que lembra o tema musical “Vai levando”, da autoria de Chico Buarque e Caetano Veloso, editada em 1975: “Mesmo com todo o emblema / Todo o problema / Todo o sistema / Toda Ipanema / A gente vai levando / A gente vai levando / A gente vai levando / A gente vai levando essa gema”. A anáfora “Vai levando” mostra a necessidade de insistir, de cultivar a esperança em dias melhores, substantivos, “mesmo com todo o problema”.

            As alusões a Chico Buarque são frequentes ao longo da composição poética, em parte por preferência pessoal do poeta, em parte porque ambos são figuras públicas, intelectuais e artísticas de Esquerda. Assim, a referência da estrofe 10 ao sabiá (“O sabiá, eu sei, já não canta”) pode constituir uma referência à canção “Sabiá”, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, vencedora do III Festival Internacional da Canção de 1968, que também se pode considerar uma canção do exílio: “Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para o meu lugar / Foi lá e é ainda lá / Que eu hei de ouvir cantar / Um sabiá”. A ave do poema de Veríssimo – símbolo da liberdade – já não cantava “por questões ecolo-genéticas”, verso que ecoa um debate da área da ornitologia e que versa a dúvida se os sabiás cantam ou não cantam em palmeiras, sendo que, para a coerência do texto, canta. Seja como for, pouco importa se o sabiá canta ou não, dado que “agora existem as Frenéticas”, que eram um grupo de cantoras, empresariado por Nelson Motta, que fazia bastante sucesso desde a estreia na discoteca Frenetic Dancing Days, em 1976, e, dois anos depois, na banda sonora da telenovela “Dancin’Days”, em que interpretavam um «hit» homónimo: “Abra suas asas / Solte suas feras / Caia na gandaia / Entre nessa festa”. O clima era já de “promessas de abertura” e o convite à festa, à celebração, ao prazer, ao hedonismo, remete para o comportamento contracultural da geração desbunde, um grupo de diversos artistas, jornalistas e intelectuais que deu andamento a um movimento de contracultura e resistência à ditadura, no fim da década de 60 do século XX, assente no «deboche».

            A estrofe 11 contempla nova referência ao sabiá, agora um sabiá “renitente”, isto é, inconformado, teimoso. Ora, este adjetivo remete para a canção “Tanto mar”, de Chico Buarque, datada de 1975: “Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim.” O tema foi vetado pela censura, pelo que a letra foi alterada, tendo uma segunda versão surgida em 1978: “Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / E inda guardo, renitente / Um velho cravo para mim”. A canção remete claramente para a Revolução dos Cravos, uma revolta militar ocorrida no dia 25 de abril de 1974 em Portugal que pôs fim a uma longa ditadura de quatro décadas. A analogia entre a situação portuguesa e brasileira é óbvia, repetindo-se aqui um processo que já surgira logo na primeira estrofe, então entre o mesmo Brasil e a Argentina. Muitos artistas, intelectuais e políticos brasileiros foram vítimas da censura e viram várias composições e textos seus proibidos, o que os levou a criar vários pseudónimos para a iludir. O poema que estamos a analisar esclarece o motivo da censura: o sabiá – isto é, o poeta – “insistia em cantar ‘Anistia!’”, palavra que significa «esquecimento». Note-se que, curiosamente, em 1979 surgiu a Lei da A(m)nistia, que amnistiou militares e torturadores responsáveis por crimes de todo o tipo. Além disso, a forma verbal «insistia» e o nome «anistia» constituem uma rima interna e formam anagramas.

            A décima segunda estrofe demonstra que o sujeito poético é bem informado e tem um perfil que o enquadra na classe média ou média alta: é apreciador de vinho e procura manter-se atualizado a partir da leitura da imprensa (“Veja”, “Isto é”, “JB”) e da MBP. O poema está recheado de expressões ambivalentes (“palmeiras”, “estrelas”, “noite”, etc.) e, nesta estrofe, temos outra – «pacote» –, que remete para o Pacote de Abril, um conjunto de medidas abusivas e autoritárias promulgado pelo governo de Geisel, em 13 de abril de 1977, que ampliou a duração do mandato presidencial, manteve a eleição para governador a partir de eleições indiretas, fechou o Congresso Nacional durante algum tempo e alterou as regras do jogo eleitoral, procurando manter, à força, a hegemonia da bancada do governo, com a criação da figura do “senador biónico”. A crítica à lentidão do envio da correspondência (“o pacote chegou atrasado”) reforça a ideia de que é difícil manter-se atualizado, pois o «pacote», a informação chega atrasada(o). O recurso ao superlativo absoluto sintético «atualizadíssimo» é uma ironia: como pode alguém estar muito atualizado com o que já se passou há bastante tempo?

            O quotidiano e a política regressam na quadra seguinte. Longe da sua terra, o «eu» poético não compreende algumas «novidades» que lhe chegam. Na época, falava-se do «biorritmo», que é o ritmo ou o ciclo intrínseco característico com que determinados processos biológicos ocorrem num indivíduo ou nos organismos de uma espécie. O «biorritmo» é lento e gradual, tal como lenta, gradual e segura ficou conhecida a abertura política de Geisel e Figueiredo. Quer isto dizer que o ritmo do biorritmo e o ritmo da amnistia se assemelham, dado que constituem ciclos irregulares, sem qualquer garantia de continuidade.

            As duas estrofes seguintes enumeram outros elementos que agradavam ao sujeito poético exilado: as músicas de Chico Buarque, a leva de ambrósia, o gole de guaraná. A nostalgia, algo melancólica, mas solidária, e a referência a “um retrato” logo após a “um disco do Chico” remetem para a canção “Retrato em preto e branco”, de 1968, da autoria de Chico Buarque e Tom Jobim, onde se refere que os passos dessa estrada não vão dar em nada.

            A estrofe 16 retoma factos coletivos e comporta um verso que sintetiza o sentimento do sujeito poético diante do quadro geral da nação: “entre o trágico e o cómico”. Se a subvenção a desfiles carnavalescos data de décadas anteriores à escrita do poema, a aparição do “senador biónico” e a ocorrência de “peste suína” são factos contemporâneos da “canção”. Esses senadores foram indicados por um Colégio Eleitoral em 1 de setembro de 1978 para um mandato de oito anos (1979-1987). O termo «biónico», irónico, remete para a série “The Six Million Dollar Man”, que relata as desventuras de um homem que, após sofrer um acidente, recebe próteses que lhe conferem superpoderes e o levam a trabalhar para o governo norte-americano.

            Para grande estupefação do «eu» poético, o Brasil é assolado por um surto de peste suína, sendo o caso do município de Paracambi o que mais captou a sua atenção. Porém, comparativamente, o que lhe causa mais espanto – e mal-estar – não é o Carnaval subvencionado nem o surto de peste suína, mas o golpe do Pacote – e do senador biónico: “Peste suína, carnaval subvencionado / vá lá – mas o senador biónico…”. As reticências traduzem o enorme espanto do sujeito poético que, em época de censura, não completa o seu raciocínio em relação ao que pensa sobre a invenção antidemocrática, casuística, autoritária e absurda do senador biónico, a que ainda se seguiria a figura do prefeito biónico.

            A penúltima estrofe altera o tempo do verbo «cantar», conjugado agora no pretérito imperfeito do indicativo, o que constitui uma importante mudança no poema: na terra do sujeito lírico, o sabiá já não canta (deixou de o fazer), o que significa que estão ausentes os sentimentos da alegria, da beleza, da liberdade que o cano de uma ave simboliza. A “grande questão”, e “só há uma”, que envolve o país é hilariante: “a Júlia fica com o Cacá?” Estas duas personagens formavam o casal romântico de protagonistas da já referida telenovela “Dancin’Days”, interpretados por Sónia Braga e António Fagundes, que foi exibida, pela Rede Globo, entre 10 de junho de 1978 e 27 de janeiro de 1979. Esta referência evidencia a força descomunal dos média, nomeadamente da televisão, na época, que comandava a chamada indústria cultural. De facto, o Brasil atravessa um período muito conturbado, como o poema demonstra: corrupção, insegurança, censura, violência, autoritarismo. No entanto, a “grande questão” prende-se com um melodrama ficcional que passa na televisão, ou seja, quem estabelece, quem determina o assunto que domina o palco é o pequeno ecrã. Nota ainda para “Cacá”, que é uma variação dicionarizada de “caca” – “excremento, fezes, qualquer porcaria”. Na trama, Cacá é um diplomata desiludido e cobarde que abandona Júlia na prisão. Seria Cacá / caca uma metáfora da elite brasileira? Aparentemente, sim. No final, os conflitos de classe diluem-se: Júlia, agora rica, “fica com Cacá”, pois cada vez mais se assemelham. Quem «dança», no final, é a consciência crítica dos milhões de telespectadores.

            O dístico que encerra o poema, iniciado pela conjunção coordenativa adversativa «mas», esclarece que, apesar de tudo, o sujeito poético reafirma a vontade de regressar à sua terra. Para o exilado, as “promessas de abertura” aguçam a saudade de futebol, samba, feijoada, bons papos e um golo de guaraná: “Mas não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá”.

            Em suma, o poema traça um quadro muito negro da situação do Brasil no final dos anos setenta do século passado: uma ditadura militar (que censura, prende, tortura, exila e mata) e um arrocho económico (o “milagre” foi para poucos, pois o bolo não foi partilhado). A política opressora do Estado cria indivíduos conformados, medrosos, tristes, reificados, sem espírito crítico. O sentido da arte altera-se: enquanto o «eu» poético exilado sente a falta de canções de Chico Buarque, a população do Brasil é seduzida por Bruna Lombardi, pelas Frenéticas e pela telenovela “Dancin’Days”. Assim sendo, o entretenimento sobrepõe-se ao pensamento, ao espírito crítico.

            A situação é dramática: as instituições estão contaminadas, a corrupção medra, a ética está comprometida e as pessoas desanimadas. Para algumas, um recurso possível, mas não necessariamente suficiente, é encarar esse estado de coisas com, apesar de tudo, humor, que é a opção tomada no poema: entre o trágico e o cómico. Se o futebol pode funcionar como instrumento de alienação, o poema serve-se dele como instrumento de reflexão: viu o que fizeram na Argentina? Se, de modo semelhante, a crença em horóscopos pode indicar uma perspetiva também alienante, mística, metafísica, a composição poética mostra que as «estrelas» que mandam estão na terra, no ombro dos generais. Recorrendo ao humor, os versos fazem com que se misture riso e reflexão.

 

Fonte: SALGUEIRO, Wilberth, “A graça na desdita: Poesia, Humor e História a partir de «Nova Canção do Exílio» (1978) de Luís Fernando Veríssimo”.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Análise de "A Carne é triste depois da felação", de C. Drummond de Andrade


             Este poema integra o livro póstumo de Carlos Drummond de Andrade, O amor natural, publicado em 1992, e é caracterizado por um tom claramente melancólico.
            O sujeito poético começa por declarar que “A carne é triste depois da felação”. O nome «carne» materializa a humanidade que há no homem, ou seja, “A carne é triste” corresponde à humanidade, ao homem, à própria existência, que é (são) triste(s). Por seu turno, o nome «carne» é o tecido muscular, o músculo, pelo que podemos entender a «carne» como referindo-se ao pénis, que, por sua vez, constituirá uma metonímia do corpo. Assim sendo, o pénis é triste depois da felação, nome que se refere ao gozo sexual provocado pela sucção.
            Será que antes da felação a carne já era triste? Ou se é apenas “Depois do sessenta-e-nove [que] a carne é triste”? A repetição do adjetivo «triste», caracterizando o pós-felação e o pós-sessenta-e-nove, indicia que o «eu» se sente dececionado e insatisfeito, ideia que parece ser confirmada pelos versos “Não há mais nada / após esse tremor?” O gozo parece conduzir ao vazio, à incompletude e, desse modo, à melancolia. O próprio prazer é posto em questão, por causa da sua natureza aparentemente contraditória (“tão fundo na aparência mas tão raso / na eletricidade do minuto?” e até antonímica: “fundo na aparência” mas “tão raso”.
            A forma do poema parece mimetizar o sexo oral: os dois primeiros versos têm 11 sílabas métricas; os dois seguintes, 10; os dois pares subsequentes são formados por um eneassílabo (9 sílabas métricas) e um decassílabo. A alternância 9-10, 9-10 forma em si mesma um par e, também, aponta para um vai e volta. Assim sendo, este emparelhamento e movimento entre pares de versos (dois hendecassílabos, dois decassílabos e dois eneassílabos) parecem remeter (mimetizar) para o sexo oral, sugestão que é reforçada pelo penúltimo verso: “e gosma”. Note-se como este verso é breve, sugerindo o instante pontual do prazer do orgasmo. O último verso – “escorre lentamente de tua vida” – indicia o momento da ejaculação. Estes dois versos complementam-se: “e gosma” significa “e goza” e de “escorre lentamente de tua vida” parecem pulsar jatos de sémen (inclusive na alternância entre sílabas tónicas e átonas). Convém ainda atentar no predomínio de sons consonânticos oclusivos (/g/, /k/, /t/ e /v/),que se pronunciam fechando-se totalmente o aparelho fonador, sem dar espaço para o ar sair, o que sugere o “emparedamento” do sujeito poético perante a constatação imediatamente posterior ao orgasmo de que “Já se dilui o orgasmo na lembrança”, não havendo “mais nada”. O que resta? A melancolia e a tristeza que sucede à felação.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

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Análise da Cena 8 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Localização da cena na obra
 
            Esta cena é antecedida pela preocupação de D. Madalena quanto à deslocação de Manuel de Sousa e de Maria a Lisboa, esta para visitar a Condessa de Vimioso, e é seguida por novas observações acerca do bem-estar e da segurança de Maria e constatação, por arte da mãe, em pânico, da negatividade de que aquele dia se reveste, na medida em que fora a data em que casara pela primeira vez, a data em que perdera o primeiro marido na batalha de Alcácer Quibir e que vira e amara Manuel de Sousa pela primeira vez.

 
Assunto: o estado de preocupação de D. Madalena, agravado pela referência ao exemplo da Condessa de Vimioso, que Manuel de Sousa refere numa tentativa vã de a tranquilizar.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte – O medo incontrolado de D. Madalena por ficar sozinha.
 
2.ª parte – A tentativa de apaziguamento de D. Madalena por parte de Manuel de Sousa, referindo outras situações e personagens que, simultaneamente, se aproximam e distanciam do seu caso.
 
 
Caracterização de D. Madalena
 
Fraca:
- porque se deixa abater pelos seus próprios sentimentos – dominada pelos sentimentos característica da heroína romântica;
- porque não luta para ultrapassar a sua insegurança: “Que queres? Não está na minha mão.”;
- porque não se considera detentora de coragem semelhante à da Condessa de Vimioso, que ingressou num convento.
 
Insegura, tensa, inquieta e receosa de ficar só: “Tenho este medo, este horror de ficar só…”.
 
Sentimental e emotiva, bem ao gosto romântico.
 
Mãe desvelada: preocupa-se com a saúde débil de Maria.
 
Mostra-se espantada e até indignada com a atitude tomada pela Condessa de Vimioso: espantada, pois os esposos separaram-se sem razão aparente; indignada, já que essa separação não lhe parece razoável.
 
Por outro lado, mostra admiração pela força e pela virtude que a Condessa demonstrou ao abdicar dos bens e amor terrenos, até porque não se vê capaz de tais «perfeições», considerando a atitude dos condes como uma assunção de morte em vida.
 
 
Caracterização de Manuel de Sousa
 
Começa por repreender a esposa por esta continuar a mostrar-se crente em achar-se “só no mundo”, como o demonstra a exclamação «Madalena!».
 
É mais racional e sensato do que a esposa, firme, decidido e objetivo, como o demonstra o facto de tentar afastar os agouros, as crenças e as superstições desta, fazendo-lhe notar o exagero dos mesmos: “Olha se ela faria esses prantos, quando disse o último adeus ao marido…”.
 
Mostra-se dedicado, carinhoso e apaixonado pela esposa, o que se nota nas formas de tratamento utilizadas: “Oh! queria mulher minha”.
 
Mostra-se também preocupada com a fragilidade e a insegurança de D. Madalena ao tentar apaziguá-la e ao deixar seu irmão Jorge fazendo-lhe companhia: “Jorge, não a deixes”.
 
É um homem seguro, pois sente-se protegido por Deus e convicto de que nada lhes acontecerá: “A nossa situação é tão diferente (…) Em todas nos pode ele abençoar”.
 
 
Elementos trágicos da cena
 
O pathos constante de D. Madalena (o sofrimento da personagem que impregna a obra de um cariz trágico e nefasto).
 
Os presságios:
- O receio de D. Madalena de ficar só no mundo.
- Os terrores de D. Madalena.
- O comentário premonitório de Frei Jorge, que antecipa a separação de Madalena e a sua entrega à vida religiosa: “É perfeição verdadeira; é a do Evangelho: «Deixa tudo e segue-me».”
- A história dos condes de Vimioso, referida pela boca de D. Madalena: “Vivos ambos… sem ofensa um do outro, querendo-se, estimando-se… e separar-se cada um para sua cova! Verem-se com a mortalha já vestida e… vivos, sãos… depois de tantos anos de amor… e conveniência… condenarem-se a morrer longe um do outro, sós, sós! E quem sabe se nessa tremenda hora… arrependidos!” Esta referência antecipa a separação de D. Madalena e Manuel de Sousa, que serão obrigados a seguir o exemplo de D. Joana e do marido, estabelecendo-se um paralelo entre os dois casais. De facto, a semelhança entre os dois casos é evidente: tanto D. Madalena como Manuel de Sousa optaram pelo afastamento da vida mundana, decidiram professar, tal como sucedeu à condessa (que entrou no Convento do Sacramento em 1607) e a seu esposo (que professou pouco depois em S. Domingos de Benfica). A reclusão conventual parece ser a alternativa, na época, para os responsáveis por atos de menor dignidade ou nobreza – a constatação do adultério de D. Madalena e a ilegitimidade de Maria e Manuel de Sousa naquela família.
 

Características trágicas da cena

A importância conferida a aspetos religiosos.
 
A importância atribuída ao amor, centro dos problemas que afetam as personagens.
 
A interioridade e os conflitos individuais patentes em D. Madalena, quer nos seus monólogos, quer nos seus diálogos.
 
A linguagem utilizada, que pretende ser um espelho fiel da emotividade, do estado psicológico das personagens.
 
A espontaneidade da oralidade: as pausas, as frases suspensas e as repetições.

 
Linguagem
 
Gradação: “Tenho este medo, este horror de ficar só…”.
 
Repetição do determinante demonstrativo «este».
 
Hipérbole: “… de vir a achar-me só no mundo…”.
 
Reticências nas falas de D. Madalena.
 
O vocábulo «cuidados» possui um duplo significado:
- por um lado, traduz a preocupação de D. Madalena quanto à saúde débil de Maria;
- por outro lado, refere-se aos temores, receios, que a atormentam a partir de uma passagem da sua vida que a inquieta.
 
Trocadilho: “Eu não tenho já cuidados” – na verdade, D. Madalena só sente / tem “cuidados”, preocupações, medos. A ironia aqui presente reforça o seu estado de extrema inquietação, que a faz quase chegar a um estado de demência ficando consternada, perturbada com a existência e a razão de tais cuidados.
 
Comparação: “… parece que vou eu agora embarcar num galeão para a Índia…” – sugere a grande angústia de D. Madalena.
 
Ironia trágica das palavras de D. Madalena e Manuel de Sousa quando se referem aos condes de Vimioso: “E que temos nós com isso? A nossa situação é tão diferente.” O casal comenta a entrada dos condes de Vimioso para o convento como sendo um sacrifício de que eles mesmos não seriam capazes: “… não sou capaz de chegar a essas perfeições”; “E que temos nós com isso?” A ironia reside no desconhecimento de estarem tão próximos de uma situação que julgam muito diferente da sua.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Análise da Cena 7 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
O discurso de D. Madalena demonstra a sua preocupação e ansiedade: repetições, cortes nas frases, exclamações, mudança de tom de voz [“(Baixo a Doroteia)”; [“(Fala baixo da Doroteia que lhe responde baixo também: depois diz alto.)”], recomendações a todos que acompanham a filha.
 
Manuel de Sousa Coutinho e Maria consideram a hipótese de já não ir a Lisboa, tal é o choro de D. Madalena, que se despede dramaticamente do marido (“Adeus, esposo do meu coração!”) e, além dos muitos conselhos que dá (“Maria, minha filha, toma sentido no ar, não te resfries. E o sol… não saias de baixo do toldo do bergantim. Telmo, não te tires de ao pé dela.”), revista tudo o que a filha leva, para que não lhe falte nada.
 
Tendo em conta que a viagem é curta (de Almada a Lisboa e regresso) e breve (regressarão naquele mesmo dia), como se justifica todo o dramatismo de D. Madalena? Ela pressente que esta partida, esta despedida, não é momentânea, de horas, mas para sempre. As cenas seguintes comprovam que tem razão, já que, quando se reencontrar com o marido e com a filha, o seu casamento e a sua família presentes não são mais viáveis, pois está confirmado que D. João de Portugal está vivo através do seu regresso na pele do Romeiro. Assim sendo, esta é a última vez que se veem enquanto elementos da mesma família. Por exemplo, D. Madalena e Maria só tornarão a ver-se no momento em que a primeira se prepara para ingressar no convento.
 
D. Madalena, nesta cena, mostra-se muito carinhosa com Maria e zelosa e preocupada com o seu bem-estar, envidando todos os esforços para que nada lhe aconteça ou falte. Maria, por sua vez, procura acalmar a mãe, mas, na realidade, sente-se profundamente abalada com a tristeza e o sofrimento que D. Madalena deixa transparecer.
 

Análise da Cena 6 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Esta é uma cena rápida, girando em torno de Maria, após a sua saída de cena para se preparar para a viagem a Lisboa.
 
Manuel argumenta em defesa da filha, afirmando que a ida lhe fará bem, pois ela necessita de se distrair, de sair de casa, mudar de espaço. Só assim se evitará que esteja sempre a pensar nos mesmos assuntos.
 
D. Madalena declara que quer que Telmo acompanhe Maria: “Telmo que vá com ela; não o quero cá.” Por que razão deseja ela tal coisa? D. Madalena não quer ficar sozinha com o velho aio de D. João de Portugal, pois teme que se repita o diálogo da cena II do Ato I  e que a atormente com os seus presságios, nomeadamente com as dúvidas em torno do regresso de D. Sebastião e D. João. Assim sendo, deseja que ele esteja longe, sobretudo naquele dia tão marcante para ela. Perante o marido, justifica-se dizendo que Telmo e Maria necessitam um do outro e que ele, estando velho, a põe a cismar: “… e entra-me com cismas que…”. Tal como sucede ao longo da peça, D. Madalena receia a presença de Telmo.
 
Nas falas de D. Madalena, assumem grande relevância as reticências, que indiciam a falta de argumentos de D. Madalena para explicar o desejo de que Telmo não fique em Almada. De facto, as reticências mostram que a personagem interrompe as suas frases, como se procurasse um argumento minimamente convincente. O seu discurso é o de quem fala movido pela emoção e não pela razão, por razões convincentes.
 

Crónica de D. João I: prólogo e Cap. XI


quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Análise da Cena 5 do Ato II de Frei Luís de Sousa


  Importância da cena no contexto da peça
 
            Esta cena repõe aparentemente a ordem e a tranquilidade na família. Como o marido já não precisa de se esconder, D. Madalena sente-se “curada” e Frei Jorge incentiva-os a usufruir da felicidade como uma dádiva divina.
            Contudo, a alusão a sexta-feira, um dia muito temido por D. Madalena, e a ausência do marido, da filha e do próprio Telmo indiciam a vulnerabilidade da personagem, que ficará confirmada com a chegada do Romeiro. O confronto, cara a cara, entre D. Madalena e o primeiro marido prepara-se.
 
 
Estado de espírito de D. Madalena

D. Madalena surge em cena restabelecida e bem-disposta, afirmando estar bem (“Estou boa já, não tenho nada…”), mas essa boa disposição é passageira, e logo parece regressar à profunda tristeza em que vive [“(Vai recair na sua tristeza).”], procurando, após as palavras de Frei Jorge, mostrar-se alegre [“(fazendo por se alegrar)”].
 
No entanto, ao saber que o marido tem de ir a Lisboa, fica inquieta e apreensiva (“A Lisboa… hoje!”). A referência àquele dia (sexta-feira), ao qual atribui uma conotação muito negativa e considera aziago, deixa-a abatida e aterrorizada[“Sexta-feira! (aterrada). Ai que é sexta-feira!”]. Após as palavras de Manuel de Sousa, parece entrar num estado de resignação [“(caindo em si) – Tens razão.”; “(fazendo por se resignar)”].
 
As razões apresentadas por D. Madalena para a filha (e, no fundo, também o marido) não ir a Lisboa são todas de cariz sentimental e exageradas. De facto, não apresenta qualquer argumento racional ou sólido; apenas se lamenta de ficar só, abandonada por todos, entregue aos seus terrores:

- o terror de ser sexta-feira (“Logo hoje este advérbio de tempo será repetido 24 vezes até ao final do ato, constituindo uma espécie de refrão -voz coral que previne o espectador da data em que irão justificar-se os constantes terrores de D. Madalena);

- o terror de ficar só, sobretudo neste dia;

- a sensação de desamparo;

- a aflição por nunca se ter separado da família (cena 7);

- as inúmeras recomendações e os inúmeros cuidados, sobretudo com Maria, revelam o seu amor maternal;

- as expansões amorosas em relação a Manuel mostram a sua paixão (ficamos mesmo com a impressão de que o amor dela é muito mais profundo, talvez por Manuel se deixar guiar mais pela razão do que pelo sentimento).

 
A preocupação, a inquietação, a apreensão e a ansiedade de D. Madalena crescem quando o marido lhe diz que tem de ir a Lisboa nesse dia (“A Lisboa… hoje!”), pois aquele dia
 
 
Retrato das restantes personagens
 
Manuel de Sousa sente-se apreensivo com o estado psíquico da esposa, que, embora procure disfarçar, está cada vez mais insegura, receosa e vulnerável.

Por outro lado, perante o crescimento da preocupação e da ansiedade de D. Madalena quando lhe diz que tem de ir a Lisboa nesse dia (“A Lisboa… hoje!”), pois aquele dia é aziago e muito receado por ela, enquanto homem racional, Manuel de Sousa apresenta-lhe argumentos racionais que justificam a viagem (e a da filha por arrasto). Assim, (1) explica-lhe que, por uma questão de gratidão, deverá deslocar-se à capital para acompanhar o regresso do arcebispo a Almada. Além disso, (2) acrescenta que estará de volta a casa ao anoitecer e que, posteriormente, não sairá de junto dela durante o tempo que desejar.

Além disso, mais uma vez fica patente o contraste que caracteriza o casal: Madalena é uma mulher sentimental/emotiva, perseguida pelos agouros e ligada ao passado, do qual não se liberta, com problemas de consciência, enquanto Manuel é um homem decidido e racional, íntegro e sem problemas de consciência que o atormentem.

 
Maria fica entusiasmada com a perspetiva de ir a Lisboa, mas fica desiludida e triste quando lhe dizem que não poderá ir para não deixar a mãe sozinha. A alegria e o entusiasmo regressam quando tudo se compõe de forma a permitir a sua viagem, no entanto, acaba por reconhecer, num aparte, que não consegue deixar de pensar e de se preocupar, daí que a sua cabeça nunca será «fria», isto é, racional. Tal só sucederá quando estiver «oca», ou seja, sem vida.
 
Frei Jorge é aquela figura sempre pronta para pacificar os espíritos atormentados, por isso oferece-se para fazer companhia à cunhada durante a ausência, de modo que Maria possa acompanhar o pai a Lisboa e visitar Sóror Joana.
 
 
Presságios
 
O advérbio de tempo «hoje» é repetido treze vezes nesta cena, constituindo um símbolo da desgraça, um mau augúrio. A sua repetição indicia que algo muito importante vai suceder nesse dia.
 
A referência à “santa freirinha” (Sóror Joana), “que tanto deixou para deixar o mundo e se ir enterrar num claustro.” antecipa o destino de D. Madalena.
 
A sexta-feira é um dia aziago, de mau agoiro.
 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

A ação de Hamlet


             Hamlet retrata a indecisão e a incapacidade do protagonista escolher a forma adequada para vingar a morte do pai, pondo em jogo o contraste entre o destino e o livre arbítrio, entre agir de forma decidida ou deixar a natureza seguir o seu curso. Além disso, questiona se a ação do ser humano, no seu tempo de vida, têm algum impacto e fazem diferença. Assim que toma conhecimento que o tio matou o seu pai, o príncipe sente-se obrigado a tomar uma atitude, mas hesita acerca da sua situação e até sobre os seus próprios sentimentos, por isso não é capaz de decidir o que vai fazer. Deste modo, o conflito que faz mover a peça é de caráter interno: Hamlet luta contra a sua própria dúvida e incertezas em busca de algo que lhe dê força suficiente para agir. Os acontecimentos da peça são efeitos colaterais desse conflito interno. Por exemplo, as tentativas de Hamlet de reunir evidências da culpa de Cláudio alertam-no para as suspeitas do sobrinho e, à medida que a luta interna do protagonista se vai intensificando, ele vai agindo de forma impulsiva por frustração. Tudo isto culmina no homicídio de Polónia por engano, que mostra que este conflito nunca será resolvido, pois o protagonista não consegue, em última análise, decidir aquilo em que acreditar ou que ação desenvolver. Esta ausência de resolução torna o final da peça bastante horrível: quase todas as personagens estão mortas, mas nada de essencial foi resolvida.

            Por outro lado, a obra mostra-nos que Hamlet é percorrido por três crises: a sua não está debaixo de ataque, a sua família está a esfarelar-se e ele sente profundamente infeliz. O fantasma do antigo rei da Dinamarca faz a sua aparição nas ameias do castelo, e os soldados que o veem acreditam que constitui um presságio negativo para o reino. Eles discutem os preparativos para resistir à ameaça do príncipe norueguês Fortinbras. A cena seguinte aprofunda a sensação de que a Dinamarca vive uma crise política, enquanto Cláudio prepara uma estratégia diplomática para esbater a ameaça que Fortinbras constitui. Além disso, a família de Hamlet está também em crise: o pai está morto e a mãe casou-se com alguém que o príncipe desaprova. E o próprio Hamlet vive a sua própria crise.

            Estas três crises – no reino, na família de Hamlet e no espírito deste – estabelecem as bases para o incidente que está na génese da peça: a exigência do fantasma de que o filho vingue a morte de seu pai. Hamlet aceita imediatamente que é seu dever vingar a morte do pai, vingança essa que poderia ajudar a resolver as três crises da peça. Se matasse Cláudio, Hamlet poderia, com este gesto, remover um rei fraco e imoral, arrancara sua mãe do que ele acredita ser um mau casamento e tornar-se rei da Dinamarca. No entanto, desde cedo fica claro que a vingança de Hamlet será prejudicada pela sua luta interna.

            Durante o segundo ato, Hamlet retarda a sua vingança fingindo estar louco. De facto, Ofélia mostra que o protagonista se comporta como se estivesse louco de amor por ela. Porém, é só no final deste ato que ficamos a saber a razão da procrastinação de Hamlet: ele não consegue decifrar quais são os seus verdadeiros sentimentos sobre o dever de vingança. Inicialmente, afirma que não se sente tão zangado e vingativo quanto pensa que deveria. Depois, mostra-se preocupado que o fantasma não seja realmente um fantasma, mas um demónio que o tenta enganar. Por tudo isto, decide que necessita de mais evidências do crime e da culpabilidade de Cláudio.

            À medida que a ação se aproxima do clímax, o conflito interior de Hamlet aprofunda-se, até começar a mostrar sinais de estar realmente a enlouquecer. Ao mesmo tempo, Cláudio começa a suspeitar de Hamlet, o que cria uma expressão sobre si mesmo para agir. Hamlet, no início do ato III, debate-se entre mantar ou não matar Cláudio(“Ser ou não ser, eis a questão”). Momentos depois, dispara insultos misóginos contra Ofélia. Ele mostra-se aborrecido com o papel das mulheres no casamento e no parto, o que remete para o desgosto que sentiu com a sua mãe e o seu segundo casamento. Este pronunciamento misógino pode significar que o desejo de Hamlet matar Cláudio pode ser alimentado pelo seu ressentimento pela necessidade de vingar a morte do pai e pelo tio lhe ter tirado a mãe. Cláudio ouve o discurso de Hamlet e suspeita que a loucura do sobrinho constitui um perigo, por isso decide mandá-lo para Inglaterra. Assim, o jovem príncipe fica sem tempo e espaço para executar a vingança.

            O clímax da peça é atingido quando Hamlet encena uma peça para mexer com a consciência do tio e obter evidências claras da culpa de Cláudio. Nesta fase, contudo, Hamlet parece ter realmente enlouquecido. Finda a representação, o príncipe tem mais uma oportunidade de liquidar o tio, mas decide não agir, desta vez por causa do risco de Cláudio ir para o céu se morrer enquanto reza. Posteriormente, acusa gertrudes de estar envolvida na morte de seu pai, mas age de forma tão errática que a mãe pensa que o filho é simplesmente louco. Agindo impulsiva ou loucamente, Hamlet confunde Polónio com Cláudio e mata-o.

            O desenlace da peça centra-se nas consequências da morte de Polónio. Hamlet é enviado para Inglaterra, Ofélia enlouquece e Laertes regressa de França para vingar a morte de seu pai. Quando o protagonista volta a Elsinore, aparenta já não estar preocupado com a vingança, que praticamente não volta a referir após esta fase da peça. Porém, o seu conflito interior ainda não terminou. Agora Hamlet contempla a morte, mas é incapaz de chegar a qualquer conclusão sobre o significado ou propósito da morte. Mostra-se, todavia, menos melindrado em matar pessoas inocentes e descreve a Horácio como assinou as sentenças de morte de Rosencrantz e Guildenstern para salvar a sua própria vida. Por seu turno, Cláudio e Laertes planeiam matar Hamlet, mas o plano não resulta e as consequências são terríveis: Gertrudes é envenenada por engano, Laertes e Hamlet são ambos envenenados pela lâmina da espada e, quando morre, o príncipe finalmente mata Cláudio. A vingança não encerra o conflito interior de Hamlet, pois ainda tem muito a dizer, pedindo a Horácio que divulgue a sua história. Fortinbras, no final da peça, concorda com o pedido, o que significa que a vida do jovem terminou, mas a luta para determinar a verdade sobre si e sobre a sua vida não.

"Havia" ou "haviam"; "houve" ou "houveram"?



O verbo «haver», enquanto verbo principal, é sinónimo do verbo «existir». Por isso, pode ser substituído pela forma verbal correspondente:

- O Eusébio disse que havia muitos computadores estragados.

- O Eusébio disse que existiam muitos computadores estragados.

 
Quando o verbo «haver» é o verbo principal da frase, é defetivo impessoal (isto é, não tem sujeito) e apenas se conjuga na terceira pessoa do singular (em qualquer tempo ou modo), independentemente de o complemento direto estar no singular ou no plural.

- No estádio, havia muitos espectadores com a careca ao sol.

- No estádio, havia muita gente com a careca ao sol.

- O professor afirmou que há muitos alunos que não estudam.

- Se houvesse mais competência no governo, não estaríamos a atravessar uma crise tão aguda.

 
A mesma regra aplica-se também quando o verbo «haver», enquanto verbo principal, está acompanhado por verbos auxiliares.
 
Estes verbos auxiliares flexionam-se também apenas na 3.ª pessoa do singular, mantendo-se o verbo principal («haver») no particípio ou no infinitivo.

- Na minha escola, tem havido muitas atividades.

- Algum dia deixará de haver fome e guerra entre os homens.

 
Quando o verbo «haver» é usado como verbo auxiliar, conjuga-se em todas as pessoas, concordando com o sujeito:

- Quando o filme começou, os alunos já haviam acalmado. [Note-se que os verbos auxiliares dos tempos compostos são «haver» e «ter», pelo que a frase podia também ser Quando o filme começou, os alunos já tinham acalmado.].

- Quando a campainha tocou, o professor já tinha terminado a aula.

- Os vícios humanos hão de levar à sua extinção.

 
O verbo «haver», quando é auxiliar, acompanha o verbo principal no particípio passado ou no infinitivo.

- As minhas ex-namoradas ainda hão de descobrir que namorei com todas ao mesmo tempo.

 
 
Conclusão
 
É a subclasse do verbo «haver» que determina se se conjuga apenas na 3.ª pessoa do singular ou em todas as pessoas.
 
Assim, quando ocorre como verbo auxiliar, conjuga-se em todas as pessoas.
 
Porém, quando ocorre como verbo principal, como sinónimo de «existir», apenas se usa na 3.ª pessoa do singular.
 
            Resumindo, vamos deixar de ouvir dizer ou ler «Houveram muitos acidentes no verão passado.» e bacoradas semelhantes?
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