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quinta-feira, 29 de agosto de 2024

O Segredo de Chimneys, de Agatha Christie

    No primeiro capítulo, é apresentada a figura de Anthony Cade, ujm aventureiro que vive em África. Ele encontra-se com Jimmy McGrath, um velho amigo, que lhe fala de uma missão intrigante: entregar as memórias do conde Stylptich, um político muito importante de Herzoslováquia, um país fictício situado algures na Europa Central, a uma editora de Londres e devolver um conjunto de cartas comprometedoras a uma mulher chamada Virgínia Revel. Pelo meio, é descrito o contexto em torno desse país peculiar e mencionada outra personagem relevante, Vyktor Drago, um político ambicioso envolvido numa conspiração para derrubar o poder instituído e apossar-se dele.
    George Lomax e Lorde Caterham discutem o caso e o diplomata sustenta que é imperioso impedir a publicação das memórias, acrescentando que seria interessante envolver uma mulher no assunto no sentido de, de forma subtil e com tato, atingir tal desiderato junto de James McGrath. Na sequência, sugere o nome da sua cunhada, Virgínia Revel, viúva de um homem que esteve ligado à embaixada inglesa na Herzoslováquia e que era particularmente versado nos assuntos desse país. A mulher referida possui 27 anos, é loura, elegante, atrevida e prococadora, possuindo o dom de arrastar a admiração e paixonetas de homens.
    Entretanto, Anthony Cade, sob o nome do amoigo McGrath, chega a Londres, cujo solo não pisa há 14 anos. Pouco depois da sua chegada, é contactado no hotel onde se instala por um homem, o barão Lolopretjzyl, o representante do partido Lealista da Herzoslovákia, que lhe diz que é tempo de restaurar a monarquia e entregar o poder ao príncipe Miguel. Além disso, o indivíduo oferece a Cade a quantia que este desejar para as memórias do conde Stylptich não serem publicadas, pois elas causarão um escândalo que predicará o seu partido e o seu candidato ao trono, no entanto aquele recusa.
    Logo de seguida, é visitado por um representante da Irmandade da Mão Vermelha, que deseja apossar-se do livro e que o ameaça com uma arma, porém Cade desarma-o e o sujeito foge. Nessa noite, entra pela janela do quarto o criado que lhe servira o jantar, igualmente para se apossar das memórias, no entanto aquele desperta do sono e luta com o intruso, que se escapole pela janela, levando consigo, todavia, o maço de cartas supostamente da autoria de Virgínia.
    O foco da ação, após estes eventos, centra-se precisamente nela, que recebe igualmente a visita de um homem que a pretende chantagear com cartas de teor amoroso comprometedor, ameaçando enviá-las ao marido, o que significa que o chantagista não conhece Virgínia nem a sua vida, ignorando que é viúva há algum tempo. Por outro lado, pela sequência de eventos, é simples deduzir que se trata do criado que invadiu o quarto de Cade e lhe roubou o maço de cartas. A mulher lê uma que o indivíduo levou como exemplar do material de que dispõe, fica estupefacta com o facto de o papel estar assinado com o seu nome, porém reconhece de imediato que não é a sua caligrafia, porém guarda a informação para si. O sujeito exige-lhe mil libras para não divulgar a correspondência e o seu conteúdo e a viúva, por diversão e como estratégia para o apanhar, entrega-lhe quarenta, com a promessa de lhe pagar o restante posteriormente. Assim que o indivíduo sai, Virgínia recebe outra visita, a de George Lomax, que a tenta convencer a seduzir McGrath de modo a apoiar a restauração da monarquia na Herzoslovákia, concretamente o príncipe Miguel Obolovitch. A viúva irá passar o fim de semana em Chimneys, onde espera que o assunto seja discutido.
    Anthony Cade, na pele do seu amigo McGrath, comunica ao gerente do hotel o ataque de que foi vítima na noite anterior por parte do criado Giuseppe. O administrador fornece-lhe todas as informações de que dispõe: está em Inglaterra há cinco anos e, dentre os hotéis em que havia trabalho, em dois tinham ocorrido roubos. Mais tarde, ainda nesse dia, Cade recebe um telefonema proveniente da firma Balderson & Hodgkins, concretamente de Balderson, que o esclarece que a sua editora tem sido vítima de ameaças e tentativas de chantagem por causa do manuscrito que o aventureiro possui, por parte de um grupo muito perigoso, e pede-lhe que não lhes entregue diretamente o texto. Em alternativa, no dia seguinte, um funcionário da editora recolhê-lo-á junto de Cade e entregar-lhe-á um cheque de mil libras.
    Na manhã posterior, liquida a conta do hotel e, quando se prepara para entrar num táxi, entregam-lhe uma carta em que lhe é pedido que não tome qualquer resolução sobre o manuscrito antes de se reunir com George Lomax. A missiva compreende ainda um convite para Chimneys na sexta-feira, endereçado por Lorde Caterham. De seguida, Cade instala-se numa obscura hospedaria de Londres, o Blitz Hotel, e envia uma carta-resposta à que recebera, na qual comunica que já se encontrava em Londres desde terça-feira, que tinha entregado o manuscrito à firma Balderson & Hodgkins e, por último, que declinava o convite, pois iria partir de imediato de Inglaterra. Todas estas ações não passam, porém, de uma estratégia tendente ao abandono da identidade do amigo e à assunção da sua.
    Virgínia vai jogar ténis e, quando retorna a casa, a aia comunica-lhe que recebera um telegrama supostamente endereçado pela própria patroa, instruindo-a a enviar toda a criadagem para a casa de campo, onde supostamente iria dar uma festa durante o fim de semana. Quando entra no estúdio para telefonar à polícia, dá de caras com um homem morto no sofá, assassinado com um tiro no coração. Ao observá-lo mais de perto, constata que se trata do seu chantagista. Enquanto decide o que fazer, tocam à campainha. É um jovem desempregado que lhe tentara vender um folheto quando ela regressara do ténis. Na realidade, é Anthony Cade. Quando ambos observam o revólver com que fora morto, descobrem que tem gravado o nome Virgínia e, ao revistarem a sua roupa, encontram um pedaço de papel no forro rasgado do casaco que reza o seguinte: "Chimneys onze e quarenta e cinco, quinta-feira."
    Esgotados as investigações, coloca-se um problema: o que fazer com o corpo? Cade deposita-o numa mala; Virgínia chama um táxi e manda depositar a bagagem nele, incluindo a mala. Desloca-se até à estação de Paddington e manda guardá-la no depósito de bagagem. Cade aguarda-a na plataforma e, quando ela passa por ele, deixa cair o bilhete do depósito, que Cade apanha e finge devolver, mas, na realidade, conserva-o na sua posse. De seguida, levanta a mala e conduz o corpo para longe de Londres, abandonando-o na berma de uma estrada recôndita. Depois esconde a arma do crime no cimo de uma árvore e segue para Chimneys. Às 23 horas e 5 minutos, enquanto ronda a propriedade, ouve um tiro proveniente da vetusta mansão. Pouco depois, a luz acende-se numa das janelas superiores.
    Mais tarde chegam o superintendente Battle e o coronel Melrose. O morto é o príncipe Miguel, da Herzoslováia, e estava em Chimneys para firmar um acordo com Herman Isaacstein: trocar concessões de petróleo por um empréstimo quando subisse ao trono. O relógio da vítima parou com a queda do corpo e regista as 23 e 4 como a hora do crime. Foram descobertas marcas de pés que iam dar à janela do compartimento onde ocorreu o crime, que foram comparados com os sapatos de um rapaz que alugou um quarto numa estalagem nessa noite e correspondem exatamente. Quem é esse rapaz? Anthony Cade. No instante em que o superintendente acaba de revelar estes dados, um criado entra a anunciar a presença de um cavalheiro que deseja falar com Lorde Caterham sobre um assunto muito importante. Quem é esse cavalheiro? Anthony Cade. Ele conta ao aristocrata, a Battle, a Lomax e ao coronel Melrose a história desde o encontro em Bulavaio com o amigo, James McGrath, omitindo, no entanto, alguns pormenores, como o encontro com Virgínia e tudo o que se passou em torno do homem morto na sua casa. Battle leva-o e fala com ele a sós e dessa conversa fica a conhecer-se um facto: Cade, na noite anterior, encontrou todas as janelas fechadas, mas na manhã seguinte a do meio encontrava-se aberta. Debaixo do cadáver, fora encontrada uma folha de papel com o símbolo da Mão Vermelha. De seguida, o superintendente leva-o a ver o cadáver e Cade reconhece nele a figura de Mr. Holmes, o enviado da casa Balderson & Hodgkins. Depois regressam à Sala do Conselho e Battle pede a Anthony que diga que se enganou e que a janela estaria aberta e só não a conseguiu abrir por ser pesada e estar perra. À porta, surpreendem Hiram Fish, um norte-americano interessado em crimes, convidado por Lorde Caterham para apreciar os quadros existentes em Chimneys.
    Certa noite, Bill é acordado por Virgínia, que lhe diz que há ladrões na Sala do Conselho. Os dois deslocam-se até lá e Bill, no meio da escuridão, luta com um desconhecido que acaba por fugir pela janela. Virgínia corre atrás dele, mas acaba por esbarrar, ao dobrar uma esquina, com Hiram Fish, que se apresenta vestido. No meio de tamanho alarido e rapidez de eventos, soa algo estranho. Quem não marca presença é Isaacstein.
    Entretanto, o superintendente Battle parte para Londres e, na estação de caminho de ferro, encontra-se com Cade, que fora investigar aspetos da vida da governanta de Chimneys, pois estava convicto de que, na noite do crime, a janela que vira iluminar-se após o tira era a do quarto dela. De regresso à mansão, o criado Tredwell informa-o da tentativa de roubo da noite anterior, em que «os ladrões» estavam a desmontar as armaduras da Sala do Conselho.
    Virgínia, Bill e Cade encontram-se na casa dos barcos: a mulher desconfia que há um esconderijo e uma escada secreta algures na propriedade e está convencida de que havia duas pessoas na Sala, tendo-se uma escapulida pela janela e outra saído pela porta no momento em que ela pulou pela abertura. Com a ausência de Battle em Londres, Cade crê que os «ladrões» voltarão a atacar nessa noite, por isso propõe que ele e Bill Eversleigh, o secretário de Lomax, se escondam na Sala do Conselho, mas Virgínia impõe a sua participação no plano. A caminho das três horas, ouvem passos no terraço, depois a janela abre-se e um homem pula por cima do parapeito. Entretanto, Bill não segura um espirro, Virgínia acende as luzes e Cade domina o intruso, um desconhecido de barba preto que se encontra hospedado no Cricketers e que fora visto rondando nas imediações. Nesse instante, na soleira da porta surge Battle, que apenas fingira ter ido a Londres. De seguida, o desconhecido apresenta-se: detetive Lemoine, da Sureté de Paris.
    O superintendente começa a fazer luz sobre os acontecimentos: um misterioso ladrão conhecido por rei Vítor, há cerca de oito anos, efetuara uma série de assaltos audaciosos em Paris, sob o nome de capitão O'Neill, associado a Angèle Mory, uma atriz do Folies Bergéres, numa época em que a capital francesa se preparava para receber a visita do rei Nicolau IV da Herzoslovákia. Os Camaradas da Mão Vermelha pagaram à atriz para seduzir o rei e o atrair a um determinado local. O monarca apaixonou-se por ela e cobriu-a de joias e ela conseguiu casar-se com ele, tornando-se a rainha Varaga da Herzoslováquia. Contudo, a organização criminosa, furiosa com a sua traição, atentou duas vezes contra a sua vida, causando tamanha tensão que acabou por redundar numa revolução que causou a morte do casal real. Sucede que, durante todo esse tempo, ela comunicava secretamente com o rei Vítor, usando o nome de uma dama inglesa pertencente à embaixada: Virgínia Revel. Após a revolução, descobriu-se que as pedras preciosas da maioria das joias da coroa tinham sido furtadas por Angèle Mory e enviadas ao seu amante, o rei Vítor. Em determinada época, o casal real da Herzoslovákia visitara a Inglaterra e fora hóspede do falecido marquês de Caterham, tendo aí coincidido com o conde Stylptitch. Uma joia muito valiosa, o Koh-i-noor, fora escondida pela rainha algures na Inglaterra. Quinze dias depois, rebentou a revolução, o rei e a rainha foram assassinados e o capitão O'Neill foi preso em Paris. Todo este caso fora abafado pelas autoridades. Cade intervém de conta que McGrath se encontrara com o conde em Paris, quando o salvara de um ataque que sofrera, que lhe confidenciara saber onde estava o Koh-i-noor e que as pessoas que o tinham atacado pertenciam ao bando do rei Vítor. O detetive francês esclarece que, após ser libertado da prisão, o famoso ladrão emigrara para os Estados Unidos e aí se instalara sob o papel de Nicolau da Herzoslováia, aproveitando-se do boato que corria, segundo o qual o verdadeiro príncipe tinha falecido no Congo alguns anos antes. No entanto, acabou por ser desmascarado e teve de fugir à pressa do país, deslocando-se para Inglaterra.
    De seguida, Lemoine explica que chegara a Chimneys no dia seguinte ao assassinato e não se identificara como policial para que quem ele investigava não se precavesse. Deslocara-se para a casa e, quando estava no terraço, apercebera-se de que havia alguém na Sala do Conselho. Então, entrara pela janela do meio, que se encontrava destrancada, e procurara observar o homem que lá se encontrava e que tinha desmantelado duas armaduras à procura de algo e, nada tendo encontrado, começara a bater no painel de madeira localizado por baixo de um quadro. Fora nesse momento que Virgínia e Bill tinham entrado em cena. Na sequência, Lemoine saltara pela janela, para a sua identidade não ser descoberta, e o intruso saíra pela porta. Terminada a narrativa dos vários intervenientes, Battle volta-se para Cade e diz-lhe que o morto que tinha sido encontrado perto de Staines, de que lhe falara recentemente, fora identificado: Giuseppe Manuelli, criado no hotel Blitz, de Londres. Cade narra-lhe então os acontecimentos que tiveram lugar na noite da quinta-feira anterior. O superintendente crê que o criado foi usado pelo rei Vítor ou pelos Camaradas da Mão Vermelha para roubar as memórias, mas, quando se apoderou das cartas por engano, decidiu chantagear Virgínia, porém aqueles para quem trabalhava desconfiaram que os estava a trair e liquidaram-no. Ao mesmo tempo, apossaram-se das cartas, que deveriam conter a localização da joia, de que estavam à procura.
    Finalizada a reunião, Anthony Cade sobe ao seu quarto e, em frente ao espelho, depara com o pacote de certas assinadas em nome de Virgínia Revel. Battle permite que os hóspedes que o desejarem possam abandonar Chimneys, no entanto pede a Lorde Caterham que os convide a ficar, sem exceção. Isaacstein é um dos que parte. Quando o carro que transporta as suas bagagens parte, Lemoine manda-o parar a pretexto de uma boleia até à vila. No entanto, quando o veículo chega à curva, cai uma das malas que transporta e o detetive surge de trás de uma volta da estrada. Rapidamente, abre-a e revolve-a até encontrar um revólver no interior de um pacote de roupa interior.
    Enquanto isso, Battle convoca o professor Winwood para decifrar as cartas assinadas em nome de Virgínia e encontradas no quarto de Cade. A sua teoria para justificar o misterioso aparecimento das missivas é a de que se trata de um estratagema do rei Vítor, que, sabendo que a Sala do Conselho está sob vigilância apertada, pretende que as autoridades se apossem delas, as decifrem e encontrem o esconderijo da joia, para depois entrar em ação. O professor decifra a carta que contém a menção a Chimneys e leva consigo as restantes para Londres, para um seu assistente as desvendar. O texto em questão reza o seguinte: «Operações executadas com sucesso, mas S. traiu-nos. Retirou pedra do esconderijo. Não está no seu quarto. Dei busca. Encontrei seguinte memorando que acho se refere assunto: RICHMOND SETE EM FRENTE OITO ESQUERDA TRÊS DIREITA.» Cade interpreta o «S.» como uma referência a Stylptich, enquanto Virgínia desvenda a alusão da Richmond: é o quadro de Holbein que se encontra na Sala do Conselho e que constitui um retrato do conde de Richmond. Pouco depois, Bundle, a filha de Lorde Caterham, interrogada, informa que há uma passagem secreta que liga o cómodo a Wyvvern Abbey, cuja entrada é o painel com dobradiças.
    Após o almoço, Battle, Bundle, Virgínia, Lemoine e Cade reúnem-se na Sala do Conselho. O grupo penetra na passagem, mas percorre apenas cem metros, pois está obstruída por material de construção. De regresso à sala, colocam-se junto ao painel de entrada: Battle dá sete passos em frente para dentro da passagem, examina o chão e encontra vestígios de um sinal feito com giz no chão. De seguida, contam oito tijolos a partir da marca em direção à esquerda e, de seguida, três para a direita. Battle percebe que o último tijolo da contagem é diferente dos demais, retira-o com a ajuda de uma faca e encontra uma cavidade, de onde o superintendente retira um cartão com pequenos botões de pérolas, um quadrado de malha grosseira e um pedaço de papel com uma fila de E maiúsculos. No chão, Lemoine encontra um fósforo.
    Mais tarde, Battle mostra a Cade uma folha de papel com uma mensagem: «Cuidado com Cade. Não é o que parece.» Pouco depois, encontra-se com Fish no Jardim das Rosas e pede-lhe um fósforo a pretexto de acender um cigarro e guarda-o. Mais tarde, confere-o e conclui que é igual ao encontrado na passagem secreta. Depois apanha boleia para Londres com Bundle. Durante o trajeto, a filha de Lorde Caterham elogia a inteligência de Virgínia e a dedicação extrema ao marido, justificando-o com o facto de ela não o amar e procurar compensar essa ausência de amor ajudando-o com a sua carreira de diplomata.
    Chegados a Londres, Cade apanha um comboio para Dover e, posteriormente, dirige-se para a casa de Hurstmere, na Estrada Langly, na qual encontra meia dúzia de homens que pertencem à Mão Vermelha. Trata-se do quartel-general do rei Vítor. Subitamente, enquanto espreita a uma janela, ouve gemidos provenientes de outro compartimento. Agarra-se a uma trepadeira, sobe, força o trinco da janela do compartimento com um instrumento apropriado e entra. Na cama, encontra um homem amarrado de pés e mãos, mas é surpreendido por Hiram Fish.
    Passadas trinta horas desde a partida de Cade, em Chimneys, Lorde Caterham, Virgínia e Bundle discutem a sua ausência, bem como a de Fish, quando são interrompidos por Lemoine, que lhes vem falar precisamente do desaparecimento do aventureiro, sobre o qual mantém algumas suspeitas, e conta que tinha apanhado um papel que aquele deixara cair, contendo o endereço de uma casa em Dover, que, como por acaso, deixara também cair esse mesmo pedaço de papel, que seria apanhado por Boris, o criado herzoslovaco, um emissário da Mão Vermelha, e entregue a Cade, que, por sua vez, o devolvera ao detetive francês. Virgínia defende Cade, dizendo que Lemoine não tinha a certeza se fora aquele que deixara cair o papel e que há outra pessoa que se ausentara de Chimneys - Fish -, no entanto o francês diz-lhe que o sujeito é um detetive da Pinkerton.
    Virgínia regressa ao seu quarto, desolada. Subitamente, ouve um ruído de saibro atirado à janela. Abre-a e depara com Boris, que diz ter sido enviado por Anthony Cade para a conduzir até o local onde ele se encontra e lança-lhe uma mensagem escrita pelo aventureiro contendo esse pedido e a explicação.
    Às 10 horas de 13 de outubro, Cade entra no hotel Harridge e pergunta pelo barão Lolopretjzyl. É conduzido ao seu quarto, onde o encontra na companhia do capitão Andrassy, e oferece-se para lhe fornecer um príncipe para liderar a Herzoslováia. Para consumar o «negócio», devem deslocar-se a Chimneys nessa noite, pelas 21 horas. Posteriormente, desloca-se a casa de Herman Isaacstein para lhe oferecer um candidato ao trono do país, em troca de um empréstimo semelhante ao que fora oferecido ao príncipe Miguel. Depois informa-o de que o revólver usado para o matar foi encontrado na mala do próprio Isaacstein. O homem fica frenético e nega o seu envolvimento no crime, enquanto Cade o aconselha a marcar presença em Chimneys nessa noite para resolver a questão.
    Por volta da hora marcada, as personagens começam a reunir-se na Sala do Conselho.

Análise da cantiga «Mort’é Dom Martim Marcos, ai Deus! Se é verdade», de Pero da Ponte

    Esta cantiga de escárnio é uma das cinquenta e três poesias atribuídas a Pero da Ponte, tendo sido catalogada entre os prantos, embora como forma burlesca e paródica do género. O seu tema consiste na crítica ao infante Dom Manuel, irmão do rei Afonso X, o Sábio, de acordo com a nota explicativa que antecede os versos.
    O infante D. Manuel nasceu em Carrión de los Condes, vila da província castelhano-leonesa de Palência, provavelmente em 1234. A sua mãe, a rainha Beatriz de Suábia, primeira esposa do rei Fernando III, o Santo, faleceu pouco depois, em 7 de novembro desse mesmo ano, em Toro, vila na província castelhano-leonesa de Zamora.
    D. Manuel, durante vários anos, foi uma figura muito importante na corte de Afonso X, que, como recompensa pelos seus serviços, lhe fez doações generosas várias em localidades da área conquistada aos árabes, nomeadamente Jerez de la Frontera, em Lorca, em Múrcia e em Sevilha. Porém, na fase final da vida, apoiou a revolta liderada pelo infante D. Sancho, seu sobrinho e futuro rei D. Sancho IV, contra o soberano D. Afonso, seu pai. Foi pai de D. Juan Manuel (1282-1348), um famoso escritor em língua castelhana que deixou, entre outras obras, um texto biográfico sobre o seu pai.
    D. Manuel faleceu em dezembro de 1283, em Peñafiel, na província de Valladolid, quando contava cerca de 50 anos. A sua figura e a sua vida foram tratadas em três Cantigas de Santa Maria, concretamente a 366, a 376 e a 382.
    De acordo com o sítio Cantigas Medievais Galego-Portuguesas (cantigas.fcsh.unl.pt/index.asp), a cantiga possui um alvo duplo, visto que a pátria é dirigida, conjuntamente a D. Martim Marcos e, de acordo com a rubrica explicativa, ao infante D. Manuel, o já referido irmão mais novo de Afonso X.
    Relativamente à sua edição, o professor Manuel Rodrigues Lapa editou-a numa única estrofe, o que pressuporia que lhe faltaria uma segunda, no entanto é comummente aceite a edição em três estrofes e uma finda, proposta pelo estudioso Saverio Panunzio.
    A cantiga abre com a alusão à possível morte de um tal Dom Martim Marcos, da qual o trovador não tem a certeza, como se conclui a partir da exclamação do primeiro verso, bem como da oração subordinada condicional «se é verdade». Por outro lado, a invocação de Deus, constituída pela interjeição «Ai» e pelo nome próprio da divindade, reforça a incredulidade e a aparente gravidade da notícia.
    Porém, se a nova for autêntica, então a morte de Martim Marcos equivale à morte (metáfora) da «torpidade» (indignidade, indecência), da «bavequia” (estupidez), da «neicidade» (tolice), da «covardia» e da «maldade», ou seja, a morte da figura referida equivale ao desaparecimento de defeitos / vícios morais.
    A segunda estrofe inicia-se com nova condicional, que põe em dúvida a notícia da morte de Martim Marcos, mas, se ela aconteceu de facto, ocorre de forma desrespeitosa («sem prez e sem bondade»), pelo que, daquela data em diante («oimais»), deve ser procurado novo líder para guiar a sociedade, no entanto essa figura será difícil de encontrar, como é evidenciado pelo uso da negativa («nom’o acharedes») e pela expressão «de Roma atá Cidade» (isto é, de Roma a Ciudad Rodrigo),que significa de um extremo a outro do país / da terra / do mundo, daí o conselho: se querem mesmo alguém que substitua o (possível) falecido, devem procurá-lo noutro local («se tal senhor queredes, alhu’lo demandade»).
    Assim, podemos concluir, pela segunda estrofe, que a morte do pouco saudoso Martim Marcos constitui apenas um pretexto para traçar o retrato de um «outro senhor», um sósia em vícios e para, em simultâneo, defender politicamente o rei, na época em conflito com o seu herdeiro, o infante D. Sancho, cuja partido, como vimos atrás, D. Manuel apoiou. Tendo em conta os dados históricos que estabelecem a cronologia desse conflito, bem como o facto de D. Manuel (na cantiga, ainda vivo) ter falecido em 1283, a composição terá sido composta entre 1277 e 1282.
    Na terceira estrofe, o sujeito poético afirma conhecer um cavaleiro que ajudaria os seus interlocutores («vos ajudari’a tolher del soidade») a deixar de ter saudades de Martim Marcos, ou seja, tratar-se-á de alguém que possui os mesmos vícios e defeitos morais da personagem referida no verso 1 (o tal «sósia em vícios»), mas cultivá-los-á de forma tão mais intensa e “perfeita” que fará esquecer Martim Marcos. A expressão «par caridade» sugere que a ajuda do «eu» será motivada por compaixão por aqueles que se viram órfãos com a sua (possível) morte.
    Nos dois versos finais da terceira estrofe, o sujeito poético parece “brincar” com o seu interlocutor, introduzindo um tom de mistério ao não identificar o cavaleiro em questão, desafiando-o a descobrir de quem se trata. Porém, fornece algumas pistas, as quais dão conta não de que o cavaleiro é, mas do que não é: rei ou conde, porém possui outro tipo de «podestade» (autoridade).
    A final que encerra a cantiga acentua a “brincadeira” do «eu» lírico com o «vós»: «que nom direi, que direi, que nom direi…». Assim, mantém a identidade do cavaleiro desconhecida, não o nomeando.
    Atente-se na tradução que Natália Correia fez da cantiga e que ajuda a compreender o seu sentido:

Morto é Dom Martim Marcos, ai Deus, e se é verdade
Sei que com ele é morta a desonestidade.
Morta é a parvoíce, morta é a vacuidade,
Morta é a poltronice e morta é a maldade.
 
Se dom Martinho é morto sem honra e sem bondade
E de outros maus costumes haveis curiosidade,
Em vão os buscareis desde Roma à cidade;
Noutro sítio vereis feita a vossa vontade.
 
Se um certo cavaleiro sei eu, por caridade,
Que vos ajudaria a matar tal saudade
Deixai-me que vos diga em nome da verdade:
Não é rei nem é conde mas outra potestade,
 
Que não direi, que direi, que não direi.

Temas da poesia lírica de Bocage

 

 

TEMAS

 

 

CARACTERÍSTICAS

 

 
 
 
 
 
A autobiografia
 
 
 
 
 
 
. origens e circunstâncias biográficas;
. natureza da sua própria obra literária;
. amores, sonhos e frustrações;
. estados de alma;
. homem vítima do e marcado pelo Destino cruel;
. homem marcado pela morte da mãe;
. homem exilado;
. amoroso incontinente e inconstante;
. vida económica muito difícil;
. encontra a paz na sepultura.
 
 
 
 
 
 
 
 
O amor
 
 
 
 
 
 
. duas tendências:
 – amor idealizado, de fundo bucólico e petrarquista, de inspiração clássica (amor platónico – ligado, por vezes, ao “locus amoenus”);
 – amor mais intenso e menos artificial, por vezes frenético e desesperado, próximo do carnal e erótico (amor-paixão):
. sentimento exagerado e não controlado pela razão;
. sentimento intenso e totalizante que faz sofrer e desesperar pela falta de correspondência ou pela infidelidade da mulher;
. ilusão breve / desilusão permanente/duradoura;
. sentimento hiperbolizado;
. sentimento que provoca o ciúme e o desejo de morte.
 

 

 

 

 

 

A mulher

 

 

 

 

 

 

. divinização da mulher (divina, meiga, doce, carinhosa, perfeita);

. ponte para o infinito, para o absoluto;

. comparada, frequentemente, à Natureza, mas sempre superior;

. vencida pelos “ais” e pelo sofrimento do sujeito poético (“Se é doce...”);

 

. indiferente ao amor do sujeito ou ausente;

. infiel e cruel;

. faz sofrer o homem e leva-o ao ciúme e ao desespero;

. em última análise, fá-lo desejar a morte para solucionar o sofrimento.

 

 

 

 

 

 

 

A Natureza

 

 

 

 

 

 

. personificada;

. “locus amoenus” (clássica e arcádica): natureza alegre, amena, suave, luminosa, harmoniosa – uma espécie de Paraíso;

. “locus horrendus” (pré-romântica): natureza escura, horrenda, medonha, aterrorizadora, triste...;

. agreste, selvagem, rude;

. reflexo do estado de alma do sujeito poético, marcado pela dor e pela frustração por não ser correspondido amorosamente ou pela mulher estar ausente;

. incapaz de equiparar-se ao sofrimento, à dor e à solidão vividas pelo sujeito poético;

. confidente, ouve os lamentos e os desabafos do sujeito poético.

 

 

 

 

 

 

 

O ciúme

 

 

 

 

 

 

 

. motivado pela desconfiança, pela ausência ou pela infidelidade da mulher amada;

. personificado, frequentemente, como um ser terrível, diabólico, um monstro devorante;

. enquadrado em cenários nocturnos, tenebrosos, lúgubres, dantescos e infernais, habitados por seres monstruosos, é um abismo que atrai e devora o homem enamorado;

. conduz o homem a um sofrimento atroz e exacerbado que o faz desejar a morte de amor que ponha fim a essa dor lancinante;

. o homem é um ser condenado a amar e a sofrer o que o Destino inexorável determinou.

 

 

 

 

 

 

A noite

 

 

 

 

 

 

. o sofrimento, a mágoa, o desencanto – motivados pela traição, pela crueldade e pela não correspondência da mulher amada – levam o sujeito poético a refugiar-se na paisagem nocturna e sombria, abrigo temporário para essa frustração amorosa;

. o homem deleita-se em estados de meditação, de devaneio e melancolia;

. por isso, busca cenários nocturnos e sepulcrais (“locus horrendus”) adequados ao seu estado de alma (sombrio e melancólico);

. espaço propício à confissão e à solidão, é frequentemente personificado e alegórico (imagem da morte).

 

 

 

 

 

A confissão e o

arrependimento

 

 

 

 

 

 

. reflexão sobre o passado:

– tempo de felicidade ilusória;

– tempo de loucura;

– tempo de uma existência intensa e vivida desregradamente;

– tempo de escravidão dos vícios e das paixões;

. reflexão sobre o presente:

– tempo de verdade;

– tempo de contrição/arrependimento perante a vida passada;

– tempo de reencontro.

 

 

 

 

 

A morte

 

 

 

 

 

. solução para os problemas e conflitos;

. destinatária preferencial nos momentos mais infelizes;

. fascínio pelo nocturno, pelo horrível e pelo macabro;

. ligada à natureza funérea – “locus horrendus” (vítima de um Destino implacável, a paisagem horrenda não o apazigua; só a morte poderá pôr termo ao sofrimento);

. consequência do amor não correspondido.

 

 

 

 

 

A liberdade

 

 

 

 

 

. condições histórico-políticas que estão na sua génese:

– Revolução Francesa (1789): ideais de liberdade, igualdade, fraternidade;

– consolidação da República Francesa (1797);

– estado de absolutismo despótico que se vivia em Portugal;

. presente de falta de liberdade, de opressão, de despotismo;

. efeitos do despotismo: ausência de liberdade, ocultamento do amor pátrio, “torcer” da vontade, fingimento/mentira;

. esta situação leva o sujeito poético a gritar pela redenção e pela salvação trazidas pela liberdade.

 

 

 

A dicotomia

razão/sentimento

 

 

 

 

 

. o sujeito poético vive angustiado, infeliz e sofredor, comandado pelo amor-paixão, pelo ciúme e pelo desejo de cenários nocturnos e de morte;

. a razão aconselha-o a seguir os seus ditames, a “fugir” ao sentimento, a fugir e a revoltar-se contra a mulher amada;

. o sujeito poético, incapaz de resistir ao poder do amor e da paixão, recusa a razão: como pode ele desejar fazer mal à mulher amada, se a ama tanto?

 

 

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

A escola do século XIX em imagens - XV


Thomas Brooks – O Novo Aluno (1854)

    O quadro de Thomas Brooks transporta-nos até à Inglaterra vitoriana. O império britânico estava no seu auge, a indústria, o comércio, a finança e a marinha britânicas dominavam o mundo, fazendo da Inglaterra e do seu vasto império a primeira potência mundial. Mas persistiam, no interior rural inglês, escolas como a que, com grande mestria e atenção ao pormenor, aqui é representada.

    À sala de aula, dirigida por um professor já idoso, chega um novo aluno. Mais velho do que a maioria dos restantes, é trazido por uma auxiliar ou criada, que descobre a cabeça do rapaz na apresentação ao professor e à turma, enquanto os pais assistem, espreitando à porta. Da parte dos novos colegas, e face ao acanhamento e alguma desconfiança do rapaz, as reacções dividem-se entre a genuína curiosidade, o esgar trocista e a completa indiferença.

    Sobre a sala de aula, facilmente identificada pela profusão de mobiliário e material escolar, ainda não é desta que nos deparamos com o famoso “modelo do autocarro”… As carteiras e bancos distribuem-se algo desordenadamente pelo espaço pouco arrumado. A diferença de idades dos alunos e a heterogeneidade da turma sugerem-nos que a pedagogia aplicada deveria estar mais próxima do que hoje chamamos diferenciação pedagógica do que da rigidez que vulgarmente se associa à escola do antigamente.

Fonte: Escola Portuguesa.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Vertentes da poesia de Bocage

    Na obra lírica de Bocage, são manifestas duas vertentes nucleares. A primeira, luminosa, etérea, em que o poeta setubalense se extasia na evocação da beleza da(s) sua(s) mulher(es) amada(s) (Marília, Anália, Anarda...), expressando, em simultâneo, a sua vida amorosa inconstante e tempestuosa:
“Eu louco, eu cego, eu mísero, eu perdido
De ti só trago cheia, oh Jónia, a mente;
Do mais e de mim ando esquecido.”
    A segunda vertente é depressiva, dolorosa, nocturna e pessimista; nela, Bocage manifesta todo o seu sofrimento, face à falta de correspondência amorosa, à indiferença, à traição, à ingratidão da(s) amada(s).
    Estes contrastes são frequentes na poesia de Bocage, plena de contrários, consequência do seu temperamento arrebatado e emotivamente descontrolado.
    A segunda vertente é dominante na sua poesia (o sofrimento, a dor, as “trevas”, a angústia), facto que o leva a desejar a morte, encarada, frequentemente, como solução para esse sofrimento: “... Refúgio me promete a amiga Morte...”. Afinal, o destino persegue-o desde a hora do seu nascimento, um destino inexorável e irreversível, contra o qual o poeta nada pode, e, como se isso não bastasse, o ciúme arruina-o, acentuando-lhe o estado depressivo e sofredor: “... Em sanguíneo carácter foi marcado
Pelos Destinos meu primeiro instante”.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Análise do poema "Já Bocage não sou", de Bocage

    Segundo a tradição, este soneto terá sido composto no momento da agonia final de Bocage. De qualquer forma, seja ou não verdade esta suposição, não restam grandes dúvidas acerca da fase da vida em que o poeta escrever o soneto: fim da vida, aproximação da morte [“À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento.”; “(...) a língua quase fria”].
 
 
n Assunto: reconhecimento da ausência de mérito/valor dos seus textos (em prosa e em verso) e o arrependimento perante a vida inútil que viveu.

 
n Tema: arrependimento/autocrítica do sujeito poético relativamente à sua existência.
 
 
n Estrutura interna
 
1.ª parte (vv. 1-4) – Mostrando-se consciente da proximidade da morte, o sujeito poético apresenta-se desalentado e decepcionado perante si próprio, desejando que o seu sofrimento e remorso lhe atenuem o castigo de que irá ser vítima. É como que a síntese das restantes estrofes.
    Repare-se na expressão egotista (uso continuado da 1.ª pessoa), aqui reforçada pela presença do nome próprio do poeta. Nesta estrofe e, de um modo geral, dentro das restantes, as formas verbais partem do presente para o passado e, depois, para o futuro, demarcando assim três momentos: o arrependimento de agora sucede à ilusão de ontem, e justifica o desejo de uma morte a pensar na eternidade. O passado e o presente são interpretados e projectados no futuro: depois da morte, tudo acabará, e do engenho poético (estro) que o celebrizou nada restará, a não ser pó e vento (vv. 1-2). Neste contexto, o sujeito poético formula um desejo estruturado com base numa metáfora, numa hipérbole e num oximoro: “O meu tormento / Leve me torne sempre a terra dura.” (vv. 3-4), ou seja, o tormento do sujeito poético torna leve a terra da sepultura, quer dizer, o seu desespero será atenuado após a morte – ou com a morte – uma vez que já padeceu de múltiplos sacrifícios durante a sua existência.
 
2.ª parte (vv. 5-14) – O sujeito poético desenvolve o seu pensamento, revela uma grande capacidade de auto-análise e autocrítica, acentua o seu arrependimento e a vontade de remediar (se possível) os maus efeitos produzidos/causados pelos seus textos.
    O sujeito poético, na 2.ª quadra, apercebe-se de que a sua inspiração poética o fez cometer erros, de que fez uma vã figura, reconhecendo o uso negativo que fez da inspiração poética e a falta de racionalidade que lhe custou o desgosto em que se encontra agora. É isso que traduz a apóstrofe e a exclamação “Musa!”, ou seja, uma reflexão e confissão do sujeito lírico sobre a utilização dada à imaginação e às palavras poéticas, daí que o apelo feito, em jeito de desabafo, à divindade que possibilita tal poesia consiste numa espécie de pedido de desculpas ou comiseração. É a função morigeradora da morte.
    No 1.º terceto surge o arrependimento do sujeito poético e a vontade de poder alterar o passado. Ou seja, apercebendo-se da nulidade da sua existência/actividade poética (vv. 1-2, 5), admitindo e arrependendo-se dos seus erros (vv. 9, 12-13), o sujeito poético deseja alterar o rumo dos acontecimentos futuros, alertando poetas novos (“mocidade”, v. 10) para o carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram (“som fantástico”, v. 11).
    Na derradeira estrofe, o sujeito poético autonomeia-se “Outro Aretino” (Aretino – 1492-1556 – foi um poeta satírico italiano de vida boémia) e sente remorsos por ter produzido poesias satíricas, imorais. Daí que se dirija aos leitores (“gente ímpia”, v. 13), a quem apelida de ingénuos por acreditarem nas ilusões da poesia, ou seja, ele confessa-se perante o público, arrepende-se e, de forma a ser “absolvido” pelos leitores, pede que destruam os seus textos, que o esqueçam, pois, já que a morte que se aproxima irá pôr fim aos seus devaneios poéticos, pretendendo não deixar lembranças negativas naqueles que o conhecem – deseja que a morte física abranja os seus textos igualmente, e que não perdure a imagem desencantada e mesmo deplorável daquele que foi “Outro Aretino” (v. 12).
    Em suma, o sujeito poético encontra-se moribundo, prestes a morrer (vv. 1-4) e foi a partir desta tomada de consciência do momento que atravessava que efectuou a retrospectiva da sua vida, apercebendo-se da nulidade da sua existência/actividade poética (vv. 1-2, 5), admitindo e arrependendo-se dos seus erros (vv. 9, 12-13), desejando alterar o rumo dos acontecimentos futuros, alertando poetas novas (“mocidade”, v. 10) para o carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram (“som fantástico”, v. 11), mas que, quando é usada de forma imoral (“Outro Aretino fui...”, v. 12), faz sentir remorsos a quem a ela recorre. É, pois, na fase terminal da sua vida que o sujeito de enunciação envida esforços no sentido de não deixar rancor nas pessoas, preferindo o esquecimento, a destruição dos seus versos (v. 14) à recordação negativa.

 
n Estado de espírito do sujeito poético
 
    Neste soneto, o sujeito de enunciação tece uma autocrítica, sobressaindo a auto-recriminação e o desconforto sentidos pelo EU lírico relativamente ao desrespeito manifestado perante outrem (“Eu aos Céus ultrajei!”, v. 3; “A santidade / Manchei!...”, vv. 12-13); a humildade e a consciência de que a sua existência poética teve um efeito nulo, inútil por obedecer a impulsos irracionais (“... vã figura / Em prosa e verso fez meu louco intento”, vv. 5-6); o remorso e a tentativa de contribuir com a sua experiência para modificar comportamentos semelhantes ao seu (vv. 10-11); a resignação, a submissão perante o público, a modéstia ao propor o esquecimento (v. 14), a anulação da sua pessoa, tal como fora exposto logo no verso 1: “Já Bocage não sou”.
    Outros sentimentos do sujeito são a desilusão do momento presente, o arrependimento dos seus actos passados, a falta de segurança e confiança, o desânimo, o desalento e o remorso por não ter sido mais lúcido, mais racional.
 
 
n Recursos poético-estilísticos
 
1. Nível fónico

    O poema é composto por duas quadras e dois tercetos (soneto), cujo esquema rimático é ABBA/ABBBA/CDC/DCD, verificando-se rima interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos. Todas as rimas são graves e consoantes; nos versos 5 e 8, 9 e 11 é rica (“figura”/”pura”), nos restantes é pobre (“escura”/”dura”). O transporte existe nos versos 1-2, 3-4, 5-6, 9-10, 12-13. A métrica é o verso decassílabo.
 
 
2. Nível morfossintáctico
 
    Existe grande abundância de vocábulos de cariz negativo no poema: cova, escura, desfeito, ultrajei, tormento, dura, , louco, fria, manchei, ímpia, rasga. Esta abundância contribui para evidenciar a autoconsciência que o sujeito poético tem de si e dos trabalhos que produziu, o temor que sente relativamente ao futuro – castigo divino – e o apelo que dirige aos leitores no sentido de destruírem os seus textos e, dessa forma, fazer desaparecer os erros/malefícios provocados pelos seus textos.
    A partir da análise das pessoas verbais e dos pronomes pessoais e determinantes na 1.ª pessoa gramatical (meu, vv. 2, 3, 6; me, vv. 4, 9, 13; meus, v. 14), conclui-se que o sujeito poético elaborou uma auto-análise, na medida em que, além dos pronomes e determinantes já referidos, predomina a 1.ª pessoa verbal do singular (6 ocorrências) em frases onde se refere a si próprio, mencionando também aspectos exteriores à sua vida, mas que são parte integrante da sua personalidade e actividades (6 ocorrências). Quanto aos tempos verbais, alternam o presente, o passado e o futuro: o sujeito poético mostra-se consciente quanto à insensatez, irracionalidade e efeitos prejudiciais causados pelos seus versos (vv. 3, 6-9, 12-13) – passado; assume a culpa, os seus erros, arrependendo-se (vv. 5, 9) – presente; reconhece o fim do seu trabalho (v. 2), teme o castigo (v. 4) – futuro. Por outro lado, o uso do imperativo tem como finalidade alterar o que for possível no futuro: a crença na utopia da poesia a que deseja pôr fim (v. 10) e a sua imagem negativa que deseja ver apagada (v. 14), através da destruição dos seus textos.
    Tratando-se de um poema com o qual se pretende fazer uma caracterização, neste caso, a autocaracterização do sujeito poético, é natural a variedade de adjectivos que contribuem e reforçam essa caracterização. A sua colocação nas frases pode tornar o efeito mais objectivo (pospostos) ou mais subjectivo (antepostos). No texto verifica-se a anteposição dos adjectivos nas afirmações em que o sujeito poético se refere a si, à sua imagem (v. 5), à sua audácia (v. 6), à sua tentativa de alertar os outros (v. 10); a posposição dos adjectivos surge quando o sujeito poético faz referências mais objectivas e a aspectos exteriores a si, à sua sepultura (vv. 1 e 4), à razão (v. 8), à ilusão prematura dos novos poetas (v. 11) e aos leitores (v. 14).
    No que diz respeito à pontuação, o predomínio das reticências põe em relevo o carácter hesitante do sujeito poético, ao constatar a desilusão do momento presente (1.ª estrofe), o arrependimento dos seus actos (2.ª e 4.ª estrofes), denotando-se no sujeito poético a falta de segurança e de confiança, características de quem cometeu actos impróprios, injustos e os assume perante os outros. As exclamações reforçam a função das reticências, na medida em que transmitem o estado de espírito negativos do sujeito lírico: desconforto e desânimo em relação a si próprio, remorso por não ter sido mais lúcido e racional.
    A interjeição Oh (v. 13) contribui para acentuar a emotividade das palavras transmitidas, salientando-se a pena, o lamento, a desilusão relativamente ao seu passado.
    Ã convulsão interior do sujeito poético é transmitida ainda com o auxílio de outros procedimentos formais e estilísticos: a bipartição de alguns versos (1, 3, 12 e 14), responsável pela criação de uma pausa no seu interior, justificando o encavalgamento da segunda parte com o verso seguinte; a ênfase final no sentimento de fé numa vida transcendente, que é expressa com a repetição da forma do verbo crer: se antes o tomaram como modelo de poeta, devem agora recebê-lo como paradigma do arrependimento. Note-se ainda como a palavra ímpia(v. 13), acentuada como grava (impia), rima com fria e corria (vv. 9 e 11), através do processo de mudança de acento (diástole).
    O hipérbato do verso 1 (“Já Bocage não sou!...”) reforça o desânimo e a desilusão do sujeito poético ao anular a sua própria pessoa, deixando evidente o que fora em tempos – note-se a colocação do nome no interior de um segmento.

 
3. Nível semântico
 
    O eufemismo e o hipérbato dos versos 1 e 2 (“À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento...”) denotam o carácter moribundo do sujeito poético (“cova escura”), o qual vai contribuir para o tom confessional do poema. Esta sugestão de morte aparece noutra sugestão eufemística presente no verso 9: “... a língua quase fria...”.
    A metáfora e o oximoro dos versos 3 e 4 (“O meu tormento / Leve me torne sempre a terra dura.”) traduzem um desejo do sujeito lírico, ou seja, que o seu tormento torne leve a terra da sepultura, que o seu desespero seja atenuado com e após a morte, uma vez que já padeceu de múltiplos sacrifícios durante a sua existência. A impossibilidade de concretização deste pedido acentua o seu estado de espírito de tristeza, mágoa e dor.
    A apóstrofe “Musa!” (v. 7) expressa uma tentativa de estabelecer contacto com aquela divindade que permite a existência de inspiração poética, em forma de desculpabilização pelo mau uso que fez daquele dom. Quer dizer, com esta apóstrofe o sujeito poético dirige-se, neste momento da sua reflexão e auto-análise, à própria poesia de que se serviu para as suas loucuras e imoralidades, lamentando-se do uso negativo que fez da sua inspiração poética e reconhecendo a falta de racionalidade que lhe custou o desgosto em que se encontra agora. O poema trata de uma reflexão e confissão do sujeito lírico sobre a utilização dada à imaginação e às palavras poéticas, daí que o apelo feito, em jeito de desabafo, à divindade que possibilita tal poesia consiste como que num pedido de desculpas ou comiseração (note-se cumulativamente o emprego da personificação).
    A partir da metáfora do verso 8 (“Se um raio de razão seguisse, pura!”), equipara-se a razão ao Sol por ser aquilo que pode esclarecer a mente do sujeito lírico e torná-la lúcida e sensata, tal como o Sol ilumina os dias e o espaço que habitamos.
    Na expressão “... a língua quase fria / Brade em alto pregão à mocidade...” (vv. 9-10), toma-se a parte do corpo que tem a capacidade de comunicar – “língua” – pelo todo a que pertence – o sujeito poético – como forma de transmitir a intenção deste em expressar aos outros a sua experiência – estamos perante uma sinédoque. Por outro lado, o desespero do sujeito é tão grande que conta, nos momentos que antecedem a sua morte, poder modificar as atitudes daqueles que ouvem/lêem, gritando e alertando poetas novos para o carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram, mas que, quando é usada de forma imoral, faz sentir remorsos a quem a ela recorre.
    Por meio da apóstrofe do verso 13 (“... gente ímpia...”) o sujeito poético dirige-se aos leitores, a quem apelida de ingénuos por acreditarem nas ilusões da poesia. Confessa-se perante o público, arrepende-se e, de forma a ser “absolvido” pelos leitores, sugere que destruam os seus textos, que o esqueçam, pois, já que a morte que se aproxima irá pôr fim aos seus devaneios poéticos, pretende não deixar lembranças negativas naqueles que o conhecem – deseja que a morte física abranja também os seus textos e que não perdure a imagem desencantada e deplorável daquele que foi “Outro Aretino”.
    A metáfora dos versos 12 e 13 (“A santidade / Manchei...”) salienta o efeito negativo ou pejorativo das palavras/poesia do sujeito poético, contrastando com a pureza e idoneidade conferida pelo primeiro termo.
 
 
n Características

domingo, 25 de agosto de 2024

A escola do século XIX em imagens - XIV


Nikolai Bogdanov-Belsky – À porta da escola (1897)

    Quando pintou este quadro, Bogdanov-Belsky era já um pintor conceituado na Rússia, embora estivesse na altura a viver em Paris, cidade onde completou a sua formação artística. Mas nunca esqueceu as suas origens humildes: nascido numa família de camponeses pobres e vivendo com dificuldades – uma realidade muito comum na Rússia czarista – o pintor conservou sempre um especial carinho pelos camponeses, que se exprime frequentemente nas suas pinturas.

    Nesta pintura, vemos em destaque um rapaz do campo que, num misto de curiosidade, acanhamento e vontade de aprender, observa o interior da sala de aula onde já se encontram o professor e os colegas., Não lhe vislumbramos o rosto, mas podemos apreciar o contraste entre as roupas grosseiras e esfarrapadas que veste e o interior organizado da sala de aula, com os alunos nas suas carteiras, o quadro preto à sua frente, mapas e quadros na parede. Nikolai Bogdanov-Belsky, um pintor formado no Realismo, dá aqui os seus primeiros passos no Impressionismo, o estilo então preponderante nas escolas de arte parisienses que frequentou. Uma influência que se nota facilmente, por exemplo, no cuidado tratamento da luz que se projecta no interior da sala.

    Este retrato do novo aluno à porta da escola não só nos transporta ao ambiente de uma escola rural dos finais do século XIX como adquire até um cunho autobiográfico: o artista revê-se neste humilde rapaz, à partida predestinado às lides do campo, mas com enorme vontade de aprender muitas mais coisas do que as que o esquálido mundo em que vive tem para lhe ensinar. E é a escola que lhe abrirá novos e deslumbrantes horizontes. Isto é o exacto oposto do discurso cretino dos detractores da “escola do século XIX”: a escola não existia nesse tempo, como nos querem convencer, para formatar alunos destinados às profissões mecânicas. Pelo contrário, foi graças à instrução escolar que milhares e milhares de estudantes pobres, mas aplicados e talentosos, puderam escapar da sua condição de partida e daquilo que seria o seu destino quase inevitável: o trabalho nos campos, nas fábricas ou nas minas.

Fonte: Escola Portuguesa.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Caracterização de Ofélia

    Ofélia é uma de duas personagens femininas de Hamlet, mas a trama que a envolve está intimamente relacionada com três figuras masculinas: Polónio, seu pai, Laertes, seu irmão, e Hamlet, o seu interesse amoroso.
    Ofélia é uma mulher dinamarquesa nobre, jovem e bela, doce e inocente, honesta, gentil, sensível e inteligente, mas controlada e manipulada por forças que lhe são superiores, nomeadamente os homens da sua vida.
    A sua relação com Hamlet é complexa. No início da peça, aparentemente os dois compartilham um afeto genuíno (por exemplo, Ofélia refere ter recebido cartas do príncipe, nas quais este expressava o seu amor por ela), mas o relacionamento é ambíguo. Porém, desde logo se percebe que a jovem depende das figuras masculinas para lhe dizerem como se comportar e o que fazer. De facto, o pai e o irmão advertem-na para não confiar nas expressões de amor de Hamlet, sugerindo que o sentimento dele pode não ser sincero e que ela pode ser desonrada) e, mais do que isso, Polónio usa-a para espiar o príncipe e tenta descobrir a origem da sua loucura e, em última análise, força-a a devolver as cartas de Hamlet e a renunciar ao seu afeto. Ofélia, obediente, corta os laços com ele, o que desperta a fúria do príncipe, que começa a trata-la de forma cruel e desconcertante, o que pode ser lido como um reflexo da própria dor de Hamlet, mas também como uma estratégia tendente a afastá-la ou a protegê-la como parte do seu esquema para parecer louco. Exemplificativa de tudo isto é a sugestão para que se torne freira. A morte de Polónio, seu progenitor, às mãos de Hamlet sela o destino trágico do relacionamento entre ambos e da própria Ofélia. De facto, esta, já num estado de fragilidade emocional devido ao comportamento errático e inconsistente do príncipe, fica devastada pela morte do pai, o que a leva à loucura e, posteriormente, à morte em circunstâncias ambíguas. A reação de Hamlet ao passamento da jovem, de arrependimento e dor, indica que os seus sentimentos por ela eram genuínos.
    A relação entre Ofélia e Polónio é marcada pela obediência da filha relativamente ao pai e pelo controle deste sobre ela, o que traduz uma grande desigualdade de poder, característico de uma sociedade patriarcal e machista. De facto, a jovem é uma filha obediente, respeitosa e submissa, seguindo as ordens e os conselhos do pai sem os questionar. Por seu turno, Polónio procura controlar a vida de Ofélia, nomeadamente a amorosa, essencialmente porque desconfia das reais intenções de Hamlet relativamente à filha e, porque acredita que o interesse não é sério, instrui-a a cortar relações com ele. No fundo, isto significa que Polónio a usa como um peão na sua demanda de poder e influência na corte. Exemplificativo desta ideia é o modo como a usa para espiar o príncipe, o que, em última análise, a coloca numa situação de vulnerabilidade e perigosa. Em todo o trajeto, nunca este pai parece ter em consideração os sentimentos e os interesses da sua filha, antes a manipula e usa para atingir os seus objetivos, sem se preocupar com o impacto emocional que pode ter sobre ela. Exemplifica isso o facto de a usar para testar a sinceridade do amor e as intenções de Hamlet, não considerando como esse plano poderia afetá-la emocionalmente. No entanto, nada disto afeta o amor de Ofélia pelo pai, daí o desamparo e a dor que sente aquando da sua morte, que a deixa devastada e desamparada.
    Relativamente a Laertes, existe entre ambos um amor filial e uma afeição sinceros. O irmão mostra sempre grande cuidado e preocupação com ela, procurado protegê-la como irmão mais velho, aconselhando-a a ser cautelosa relativamente aos avanços amorosos de Hamlet. No fundo, Laertes reflete a mentalidade da época, que associava a dignidade e a honra da mulher ao seu comportamento e castidade. Em simultâneo, essa postura traduz uma atitude paternalista sobre a figura feminina, que necessita de alguém que a guie e proteja dos próprios sentimentos e das intenções dos homens que a rodeiam.
    Por outro lado, embora não de forma tão intensa, também Laertes exerce controle sobre a vida de Ofélia, influenciando e condicionando as suas decisões, o que significa que, apesar de amada, vive cercada por figuras masculinas que limitam a sua autonomia. Ela, por sua vez, respeita e ouve os conselhos dele, que confia que a irmã seguirá as suas recomendações, o que configura uma confiança mútua entre ambos. Assim sendo, não é de estranhar que Laertes, após a sua morte, seja consumido pela culpa e pela dor, pois sente-se culpado por não ter estado presente para a proteger, o que o leva a procurar vingar-se de Hamlet, por o considerar culpado do desenlace trágico da irmã.
    Ofélia vê-se envolvida em intrigas políticas e é manipulada por figuras de poder, não obstante manter uma relação distante e formal com o casal real, que olha para a jovem como um instrumento para espiar Hamlet, desconsiderando os seus sentimentos e o seu bem-estar. Curiosamente, ou não, embora esteja próxima do poder e da corte, Ofélia não possui qualquer influência nela, antes vive subordinada à autoridade política. No fundo e em suma, ela é uma vítima do poder: não exerce qualquer influência sobre os acontecimentos e, pelo contrário, é manipulada pelas forças políticas que a envolvem. Enquanto jovem mulher na corte, ela é ensinada a ser obediente e submissa, quer pelo pai, quer pela própria corte. É possível que a jovem se sinta culpada pela morte do pai, ainda que indiretamente, pois foi a sua relação com Hamlet que precipitou os eventos trágicos.
    Ofélia possui uma visão idealizada e romântica do amor, exprimindo um apelo genuíno por Hamlet e acredita nas suas promessas amorosas. O seu amor por ele é puro e inocente, refletindo a sua inocência e a sua sensibilidade, mas acaba por ser colocado à prova pela manipulação e pela desconfiança que pairam sobre ele. Por outro lado, a jovem é ensinada a valorizar a castidade e a pureza, como a sociedade esperava de uma jovem nobre. O sexo é encarado por ela como algo que deve estar conectado à honra pessoal e a mulher deve preservar a sua virgindade e castidade. No final, a jovem vive uma grande confusão emocional perante a sucessão de acontecimentos negativos que marcam a sua vida, começando pela forma como Hamlet a trata a partir de certo momento e que faz com que o amor se torne em fonte de sofrimento. Todo este caldo de cultura faz com que Ofélia nunca tenha oportunidade de expressar a sua sexualidade ou o seu amor de forma plena, pois é constantemente condicionada pelos homens da sua vida, que a oprimem e levam ao silenciamento dos seus desejos e sentimentos.
    Em suma, Ofélia é uma jovem nobre, inocente, pura e obediente que contrasta com a corrupção que caracteriza a corta da Dinamarca e que, no fundo, destrói as referidas pureza e inocência, esmagadas pelo mundo em que vive, prenhe de violência, traição e manipulação. Por outro lado, ela é vítima de uma sociedade patriarcal que controla e oprime as mulheres, determinando o seu comportamento e escolhas. Além disso, a sua loucura simboliza o modo como aquela sociedade marginaliza aqueles que se desviam do caminho esperado, bem como a fragilidade da mente humana perante a vivência de traumas e de pressões insuportáveis.
    Em vários momentos da peça, Ofélia canta canções sobre flores e a própria morte ocorre no contexto do afogamento num rio, no meio de grinaldas de flores que tinha juntado, o que representa a sua ligação à natureza. Note-se que várias das flores a que está associada representam as suas emoções e as relações com outras personagens. Por exemplo, o alecrim remete para a lembrança, enquanto a violeta, a fidelidade.
    A sua morte, para a qual parece fadada desde o início da obra, é ambígua, pois é sugerido que ela se afogou num rio de forma acidental, mas também existem indícios de que se trata de suicídio. De facto, a rainha narra a morte de forma poética, porém a imagem de que ela era uma jovem desesperada, incapaz de suportar o seu infortúnio, que se deixou levar pela água indicia que, no seu estado de insanidade, desistiu de lutar. Por outro lado, tratando-se efetivamente de um suicídio, tal pode significar que, nos seus derradeiros momentos, Ofélia ganhou uma espécie de autonomia de que nunca usufruiu ao longo da vida.

Caracterização de Gertrudes

    Gertrudes é a rainha da Dinamarca, esposa de Cláudio, que desposou recentemente, e viúva do seu irmão, o rei Hamlet, com quem teve um filho, o protagonista da peça, homónimo do pai.
    Gertrudes é uma personagem complexa e intrigante, pois são mais as perguntas que o texto levanta sobre ela do que as respostas. A rainha amava o primeiro marido? Ama o segundo? Por que razão desposou Cláudio: por amor ou apenas para conservar o seu status e a sua posição social e política? Estava envolvida amorosamente com Cláudio ainda em vida do primeiro marido? Sabia, ou pelo menos, suspeitava das ações de Cláudio? Acredita em Hamlet quando este afirma que está louco ou finge acreditar simplesmente para se proteger? Trai a confiança do filho intencionalmente para agradar ao marido ou crê estar a proteger o segredo do jovem?
    Fisicamente, não há grandes dados sobre Gertrudes. Dada a idade de Hamlet, tratar-se-á de uma mulher de meia-idade, provavelmente na faixa dos 40, 50 anos, certamente com uma aparência majestosa, nobre, elegante, graciosa e nobre. Ou seja, a sua fisionomia refletirá a sua condição de rainha e a sua posição de poder, envergando trajes luxuosos e joias de acordo com o seu estatuto social.
    Psicologicamente, a rainha é uma mulher vulnerável, superficial, frágil e dependente que procura afeto, estabilidade e proteção num ambiente corrupto e instável. Além disso, evidencia uma certa tendência para usar os homens para satisfazer o seu instinto de autopreservação, o que, naturalmente, a coloca na dependência das figuras femininas da sua vida. De facto, enquanto rainha da Dinamarca, a sua segurança a todos os níveis e a sua posição social dependem da ligação a um homem poderoso, uma realidade que poderá explicar o seu casamento célere com Cláudio, após a morte do primeiro marido. Outra hipótese poderá ter a ver com o seu receio de ficar sozinha. Em simultâneo, é alguém que parece procurar evitar os conflitos e manter uma imagem (aparente) de normalidade na corte. Além disso, mostra-se sempre incapaz de compreender plenamente os sentimentos de Hamlet, o que traduz uma certa falta de empatia relativamente aos que a rodeiam, ou então uma negação consciente para manter a sua paz interior.
    Algumas ações e a sua morte no final da peça aproximam-na do estatuto de vilã. Por exemplo, o facto de se casar com Cláudio, o irmão do falecido marido, pouco depois da morte deste, põe em causa a sua lealdade e a sua moralidade. Esta perspetiva parece ganhar sustentação através da acusação do filho, segundo o qual padece de luxúria e fraqueza moral, sugerindo que cedeu às pressões e à tentação de Cláudio. Assim sendo, porque age ela dessa forma? Quase certamente, porque deseja manter a sua posição social e política e assegurar uma vida protegida e confortável, mesmo que para tal tenha de descurar questões como a justiça e a verdade.
    Por outro lado, enquanto rainha, Gertrudes encontra-se no olho do furacão, no centro do poder político e das maquinações e jogadas políticas que o seu exercício implica. Essa sua posição obriga-o a sustentar uma fachada de felicidade e dignidade, sobretudo nos tempos de mudança e incerteza que se vivem na Dinamarca. Em contrapartida, a sua postura coloca-a numa circunstância que a expõe e torna vulnerável às críticas e à desconfiança, especialmente no que respeita à sua lealdade ao rei Hamlet.
    A sua relação com Cláudio constitui, de facto, uma das facetas controversas da peça, desde logo porque ele é o irmão do falecido monarca e tio do príncipe Hamlet. Depois, o antigo soberano morreu em circunstâncias suspeitas e, por último, o matrimónio é célere. O filho considera essa decisão cruel e calculista, porém há que considerar que uma mulher na sua posição, naquela sociedade, não dispõe de grandes alternativas. Quando Hamlet a confronta sobre o passo que deu, Gertrudes admite que refletir sobre a sua decisão de casar com Cláudio, ex-cunhado, é algo demasiado doloroso para pensar. Deste modo, não se sabendo se ela tem consciência do papel do atual marido na morte do anterior, parece preferir não pensar e não aprofundar o assunto. Receito das consequências que daí poderão advir? Medo da descoberta de uma verdade dolorosa? No fundo, de acordo com uma certa perspetiva, o segundo enlace de Gertrudes terá sido uma opção pragmática. Seja como for, a ambiguidade rodeia este relacionamento, pois efetiva-se por amor, por conveniência ou por uma conjugação de ambos.
    Em suma, Gertrudes é uma personagem controversa e ambígua e alguém que não quer ou não é capaz de refletir criticamente sobre si e sobre o contexto em que se insere, parecendo antes atuar de forma instintiva, como é o caso do momento em que corre para Cláudio após o seu diálogo tumultuoso com Hamlet.
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