Português: Análise da cantiga «Mort’é Dom Martim Marcos, ai Deus! Se é verdade», de Pero da Ponte

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Análise da cantiga «Mort’é Dom Martim Marcos, ai Deus! Se é verdade», de Pero da Ponte

    Esta cantiga de escárnio é uma das cinquenta e três poesias atribuídas a Pero da Ponte, tendo sido catalogada entre os prantos, embora como forma burlesca e paródica do género. O seu tema consiste na crítica ao infante Dom Manuel, irmão do rei Afonso X, o Sábio, de acordo com a nota explicativa que antecede os versos.
    O infante D. Manuel nasceu em Carrión de los Condes, vila da província castelhano-leonesa de Palência, provavelmente em 1234. A sua mãe, a rainha Beatriz de Suábia, primeira esposa do rei Fernando III, o Santo, faleceu pouco depois, em 7 de novembro desse mesmo ano, em Toro, vila na província castelhano-leonesa de Zamora.
    D. Manuel, durante vários anos, foi uma figura muito importante na corte de Afonso X, que, como recompensa pelos seus serviços, lhe fez doações generosas várias em localidades da área conquistada aos árabes, nomeadamente Jerez de la Frontera, em Lorca, em Múrcia e em Sevilha. Porém, na fase final da vida, apoiou a revolta liderada pelo infante D. Sancho, seu sobrinho e futuro rei D. Sancho IV, contra o soberano D. Afonso, seu pai. Foi pai de D. Juan Manuel (1282-1348), um famoso escritor em língua castelhana que deixou, entre outras obras, um texto biográfico sobre o seu pai.
    D. Manuel faleceu em dezembro de 1283, em Peñafiel, na província de Valladolid, quando contava cerca de 50 anos. A sua figura e a sua vida foram tratadas em três Cantigas de Santa Maria, concretamente a 366, a 376 e a 382.
    De acordo com o sítio Cantigas Medievais Galego-Portuguesas (cantigas.fcsh.unl.pt/index.asp), a cantiga possui um alvo duplo, visto que a pátria é dirigida, conjuntamente a D. Martim Marcos e, de acordo com a rubrica explicativa, ao infante D. Manuel, o já referido irmão mais novo de Afonso X.
    Relativamente à sua edição, o professor Manuel Rodrigues Lapa editou-a numa única estrofe, o que pressuporia que lhe faltaria uma segunda, no entanto é comummente aceite a edição em três estrofes e uma finda, proposta pelo estudioso Saverio Panunzio.
    A cantiga abre com a alusão à possível morte de um tal Dom Martim Marcos, da qual o trovador não tem a certeza, como se conclui a partir da exclamação do primeiro verso, bem como da oração subordinada condicional «se é verdade». Por outro lado, a invocação de Deus, constituída pela interjeição «Ai» e pelo nome próprio da divindade, reforça a incredulidade e a aparente gravidade da notícia.
    Porém, se a nova for autêntica, então a morte de Martim Marcos equivale à morte (metáfora) da «torpidade» (indignidade, indecência), da «bavequia” (estupidez), da «neicidade» (tolice), da «covardia» e da «maldade», ou seja, a morte da figura referida equivale ao desaparecimento de defeitos / vícios morais.
    A segunda estrofe inicia-se com nova condicional, que põe em dúvida a notícia da morte de Martim Marcos, mas, se ela aconteceu de facto, ocorre de forma desrespeitosa («sem prez e sem bondade»), pelo que, daquela data em diante («oimais»), deve ser procurado novo líder para guiar a sociedade, no entanto essa figura será difícil de encontrar, como é evidenciado pelo uso da negativa («nom’o acharedes») e pela expressão «de Roma atá Cidade» (isto é, de Roma a Ciudad Rodrigo),que significa de um extremo a outro do país / da terra / do mundo, daí o conselho: se querem mesmo alguém que substitua o (possível) falecido, devem procurá-lo noutro local («se tal senhor queredes, alhu’lo demandade»).
    Assim, podemos concluir, pela segunda estrofe, que a morte do pouco saudoso Martim Marcos constitui apenas um pretexto para traçar o retrato de um «outro senhor», um sósia em vícios e para, em simultâneo, defender politicamente o rei, na época em conflito com o seu herdeiro, o infante D. Sancho, cuja partido, como vimos atrás, D. Manuel apoiou. Tendo em conta os dados históricos que estabelecem a cronologia desse conflito, bem como o facto de D. Manuel (na cantiga, ainda vivo) ter falecido em 1283, a composição terá sido composta entre 1277 e 1282.
    Na terceira estrofe, o sujeito poético afirma conhecer um cavaleiro que ajudaria os seus interlocutores («vos ajudari’a tolher del soidade») a deixar de ter saudades de Martim Marcos, ou seja, tratar-se-á de alguém que possui os mesmos vícios e defeitos morais da personagem referida no verso 1 (o tal «sósia em vícios»), mas cultivá-los-á de forma tão mais intensa e “perfeita” que fará esquecer Martim Marcos. A expressão «par caridade» sugere que a ajuda do «eu» será motivada por compaixão por aqueles que se viram órfãos com a sua (possível) morte.
    Nos dois versos finais da terceira estrofe, o sujeito poético parece “brincar” com o seu interlocutor, introduzindo um tom de mistério ao não identificar o cavaleiro em questão, desafiando-o a descobrir de quem se trata. Porém, fornece algumas pistas, as quais dão conta não de que o cavaleiro é, mas do que não é: rei ou conde, porém possui outro tipo de «podestade» (autoridade).
    A final que encerra a cantiga acentua a “brincadeira” do «eu» lírico com o «vós»: «que nom direi, que direi, que nom direi…». Assim, mantém a identidade do cavaleiro desconhecida, não o nomeando.
    Atente-se na tradução que Natália Correia fez da cantiga e que ajuda a compreender o seu sentido:

Morto é Dom Martim Marcos, ai Deus, e se é verdade
Sei que com ele é morta a desonestidade.
Morta é a parvoíce, morta é a vacuidade,
Morta é a poltronice e morta é a maldade.
 
Se dom Martinho é morto sem honra e sem bondade
E de outros maus costumes haveis curiosidade,
Em vão os buscareis desde Roma à cidade;
Noutro sítio vereis feita a vossa vontade.
 
Se um certo cavaleiro sei eu, por caridade,
Que vos ajudaria a matar tal saudade
Deixai-me que vos diga em nome da verdade:
Não é rei nem é conde mas outra potestade,
 
Que não direi, que direi, que não direi.

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