1. Caracterização social
- Origem humilde: João Romão é um português imigrante no
Brasil que chega sem grandes posses ou prestígio social.
- Ascensão pela ambição: Representa o imigrante trabalhador e
ambicioso que, por através do esforço e da exploração do seu semelhante, procura
ascender social e economicamente.
2. Características Psicológicas
- Ambição desmedida: João Romão é movido por uma obsessão em
enriquecer a qualquer custo, colocando o lucro acima de valores éticos.
Ele é descrito como alguém que trabalha incansavelmente, quase de forma
irracional e desumana. Não descansa, economiza cada centavo e dedica toda
a sua energia ao objetivo de enriquecer. A sua comparação a um animal de
carga ou a um escravo enfatiza a sua entrega física ao trabalho,
desprezando o tempo para o lazer ou para o amor.
- Avarento e materialista: Ele é descrito como extremamente avarento,
economizando até nos mínimos detalhes para acumular riqueza. Romão é
comparado a um animal faminto por causa da sua avareza. A sua obsessão
pela riqueza, pelo dinheiro e pela acumulação de bens reflete uma obsessão
instintiva, quase visceral. Há um momento em que o narrador o descreve
como alguém que «comia restos de comida» e guardava tudo o que podia,
recusando-se a gastar dinheiro com qualquer coisa que fosse além do
indispensável. Esta postura de «acumulador» faz lembrar o instinto de
certos animais que acumulam recursos, precavendo-se para tempos de
necessidade (basta recordar a fábula da formiga e da cigarra).
- Frieza e pragmatismo: A sua capacidade de tomar decisões é quase
sempre guiada por interesses financeiros, sem considerar o impacto
emocional ou moral. Esta personagem é ocasionalmente descrita como
«selvagem», sugerindo a sua falta de civilidade, de humanidade e de
domínio da razão. A justificação para isto encontra-se no facto de nortear
a sua existência por instintos primários de sobrevivência e prosperidade
material, como se se tratasse de um animal no topo da cadeia alimentar,
indiferente aos que lhe se situam abaixo de si.
3. Características Físicas
- Descrição modesta: A aparência física de João Romão não é
especialmente destacada na obra, refletindo a sua origem humilde e o facto
de o foco do narrador se centrar nas suas ações e atitudes. Não obstante,
é destacado como alguém simples e descuidado com a sua aparência. Tal
explica-se pelo facto de a sua prioridade exclusiva ser o trabalho e a
acumulação de riqueza, o que leva a que negligencie por completo questões
como a higiene, o vestuário, entre outras. Este descuido e falta de
cuidado consigo mesmo e vaidade traduz o seu apego extremo ao dinheiro e a
sua avareza, visto que evita qualquer tipo de dispêndio financeiro,
inclusive consigo mesmo. A adjetivação como «magro» e «encardido» é
exemplificativa destes traços.
- Figura vulgar: A sua simplicidade física contrasta com a
ambição grandiosa.
- Magreza e vigor: João Romão é
frequentemente descrito como magro, o que é consequência direta de sua
vida austera e extenuante. Ele trabalha incessantemente, muitas vezes
privando-se de uma alimentação adequada, não por falta de recursos, mas
por sua obsessão em economizar. Apesar de magro, possui
força e vigor físico, típicos de alguém que está habituado ao trabalho
manual. Essa força é uma marca da sua origem humilde e do esforço físico
que emprega para acumular riqueza.
- Resistência física: João Romão é uma figura quase
incansável: trabalha dia e noite, cuidando d sua venda e da construção do
cortiço, o que evidencia uma capacidade física impressionante, mas também
o coloca como alguém "animalizado", regido pela sobrevivência.
- Vestuário: As roupas de João Romão
são práticas, simples, baratas e muitas vezes remendadas, dado o seu
desgaste, refletindo a sua avareza e o desinteresse em exibir status
social. Mesmo quando começa a acumular riqueza, mantém o hábito de se vestir
como um homem pobre, o que simboliza o seu apego à austeridade. Por outro
lado, estes dados mostram igualmente que, apesar de enriquecer, João Romão
ainda carrega traços das suas origens humildes e não procura ostentar o
que possui, pelo menos até ascender socialmente.
- Simbolismo: o retrato físico de João
Romão reflete a sua personalidade mesquinha, bem como a sua obsessão pelo
trabalho e falta de sofisticação. Essa descrição, enquadrada no contexto
do Naturalismo, reforça a crítica social de Aluísio Azevedo,
mostrando como o meio e os valores materialistas moldam o ser humano.
4. Trajetória e Conflitos
- Início como comerciante: João Romão começa a sua trajetória como
dono de uma pequena venda (mercearia), onde já demonstra a sua ganância e o
caráter manipulador. João Romão começa como dono de uma pequena venda
(mercearia), situada num terreno próximo, no qual posteriormente erguerá o
cortiço. Esse espaço humilde é o ponto de partida da sua jornada para a
acumulação de riqueza. A sua dedicação exclusiva ao trabalho é evidente: ele
próprio faz todo o trabalho: atende os fregueses, administra as finanças e
limpa o espaço, numa dedicação obsessiva que reflete a sua determinação de
economizar e enriquecer a qualquer custo, evitando contratar ajuda para
poupar despesas. João Romão vive em condições precárias, economizando de
forma quase desumana para acumular capital, pelo que não é surpreendente
que seja descrito como alguém que:
§ Come restos de comida que encontra na venda.
§ Dorme no chão, ao lado do balcão, sem gastar com móveis ou conforto.
§ Usa roupas simples e remendadas, recusando-se a investir em itens desnecessários.
Esta
avareza é uma marca da sua personalidade e um reflexo da sua visão
utilitarista, na qual cada centavo é poupado e investido para expandir os
negócios. João Romão trabalha desde o amanhecer até altas horas da noite,
movido pela ambição de enriquecer, sendo descrito como alguém que não se
permite descanso ou lazer, dedicando toda a energia ao progresso financeiro. A
rotina incansável é um dos primeiros sinais de sua transformação quase
animalesca, guiada por um instinto de sobrevivência e pelo desejo de ascensão
social.
Um marco
importante do seu início como comerciante é a relação com Bertoleza, uma
escrava fugida que se torna sua parceira de trabalho e vida. João Romão engana-a
desde o início, pois promete ajudá-la a comprar a alforria, mas, na realidade,
utiliza a sua força de trabalho para economizar custos e expandir os negócios.
Deste modo, Bertoleza trabalha incansavelmente na venda, cozinhando, limpando e
auxiliando João Romão, tornando-se essencial para a acumulação de seus
primeiros lucros. A exploração desta figura feminina é um exemplo claro do
caráter explorador e antiético de João Romão desde o início da sua trajetória.
O início da
personagem como comerciante reflete a sua essência: ele é o símbolo do homem
que se faz sozinho, mas à custa de trabalho incessante, economia obsessiva e
exploração dos outros. A pequena venda é o núcleo da sua trajetória, marcando o
ponto de partida para a sua ascensão.
O início de
João Romão como comerciante em O Cortiço ilustra como ele utiliza as
ferramentas disponíveis – trabalho duro, avareza e exploração – para superar a sua
condição de pobreza. Esse momento é essencial para compreender a sua
personalidade: é um homem pragmático, inescrupuloso e completamente focado na
acumulação de riqueza, mesmo que isso signifique sacrificar a dignidade própria
e alheia.
- Construção do cortiço: Com o tempo, ele expande os seus negócios,
investindo na construção de um cortiço, símbolo da sua ascensão económica
e da degradação social ao seu redor. O empreendimento reflete não apenas o
seu caráter, mas também o seu papel simbólico na narrativa. O cortiço é
uma extensão da personalidade do protagonista e materializa os seus
valores, ambições e métodos.
Desde logo,
convém notar que a construção do convento mostra que a personagem principal de O
Cortiço possui uma visão de longo prazo. De facto, João Romão percebe o potencial económico do terreno baldio que existe ao
lado da sua venda, inicialmente utilizado como depósito de lixo. Imagina o
local como uma oportunidade de gerar lucro por meio da construção e posterior
aluguer de habitações populares, dando origem ao cortiço. Deste modo, dedica-se
obsessivamente à construção do empreendimento (ele próprio conduzia pedras,
areia e tijolos, como se fosse um operário), atuando diretamente nas obras.
Trabalha dia e noite, economizando ao máximo e utilizando materiais baratos
para erguer as moradias.
Por outro
lado, a construção do cortiço reflete a sua avareza extrema. Ele economiza em
tudo, incluindo no ser humano: emprega Bertoleza como força de trabalho
gratuita, aproveitando-se da sua condição de escrava fugida; usa materiais
baratos e mão de obra simples para economizar ao máximo, indiferente às
condições precárias que isso criará para os futuros moradores.
Face ao
exposto, podemos concluir que o cortiço é uma metáfora da própria ambição e do
caráter de João Romão, caracterizando-se pela desorganização e instinto de
sobrevivência (tal como o protagonista é movido por instintos básicos de
acumulação, o cortiço também se torna um espaço caótico, onde a luta pela
sobrevivência prevalece), pela animalização (o cortiço é descrito como um
"formigueiro humano" ou uma "colmeia", metáforas que
evidenciam a degradação dos seus habitantes; João Romão, como criador desse ambiente,
é implicitamente comparado a um animal predador, que manipula e explora os mais
fracos para prosperar) e pelo foco no lucro (a forma como administra o cortiço
reflete a sua frieza e o seu pragmatismo: não se importa com o bem-estar dos
moradores, apenas com as rendas que recebe).
- Exploração da mão de obra: Romão explora trabalhadores, como
Bertoleza, e aproveita-se da vulnerabilidade alheia para enriquecer, desde
logo porque perceciona o cortiço como não um espaço de convivência humana,
mas como uma máquina fazedora de dinheiro, não se eximindo a explorar os
moradores, cobrando rendas elevadas e a pessoas que vivem em situação de
miséria.
- Relação com Bertoleza: Ele engana Bertoleza, uma escrava fugida
que trabalha para si em regime quase de escravidão, prometendo ajudá-la a
comprar a alforria, promessa que nunca cumprirá.
- Conflito social: João Romão representa o confronto entre o
capital e as classes trabalhadoras, sendo um retrato crítico do
capitalismo nascente no Brasil na época.
5. Relação com a temática do Naturalismo
- Instinto e Determinismo Social: A personagem é retratada como guiada por
instintos de sobrevivência e ambição, características marcantes do
determinismo social e biológico.
- Animalização e degradação: A sua busca incessante pelo lucro é muitas
vezes associada a comportamentos animalescos, refletindo a visão
naturalista de que o ambiente molda o comportamento humano.
- Crítica social: João Romão personifica a exploração
capitalista e a desigualdade, sendo um reflexo das transformações sociais
e econômicas do Brasil no século XIX.
6. Relação com outras personagens
- Bertoleza: A sua
relação com ela é marcada pela exploração e hipocrisia, já que a utiliza
como mão de obra gratuita e, no final, trai-a ao denunciá-la como escrava
fugida. Romão explora-a de forma brutal, reduzindo-a a uma espécie de
máquina de trabalho, tratando-a como um mero objeto, o que reflete o seu
comportamento e a sua ação desumanizados. Estes traços acentuam-se quando
percebe que Bertoleza se tornou um obstáculo ao seu desejo de ascensão
social, acabando por a trair e entregando-a às autoridades como escrava fugitiva,
sem qualquer remorso, consideração humana ou princípio ético. A frieza com
que age evidencia o seu instinto quase predatório, característico de quem
não olha a meios para atingir os seus fins, afastando do seu trajeto todos
os obstáculos para sobreviver ou prosperar.
- Miranda: João
Romão inveja Miranda, um comerciante que representa o "burguês"
estabelecido. A relação entre os dois simboliza a rivalidade entre
diferentes estratos sociais. As duas figuras representam diferentes
facetas da sociedade brasileira do século XIX: o primeiro é o tipo do
imigrante português ambicioso que procura ascender socialmente através do
trabalho da exploração dos mais
fracos, enquanto o segundo é o símbolo do burguês e do privilégio. De
facto, o protagonista é o típico self-made man, o indivíduo que sai
da pobreza e enriquece através do seu trabalho, da sua ambição e do seu
pragmatismo, bem como à custa da avareza e da exploração. Por outro lado,
Romão representa o tipo social do novo rico que se torna rico, todavia não
possui a sofisticação da elite tradicional. Por seu turno, Miranda é o
burguês conservador, o sujeito que, ao nascer, já detém uma posição de
privilégio económico e social. Ele simboliza a elite local, que adota
comportamentos refinados, mas, em contraste, caracterizados pela hipocrisia
e pela superficialidade. João Romão, em simultâneo, admira e inveja
Miranda, vendo nele o modelo de prestígio e respeitabilidade que almeja.
Os dois são
vizinhos e as suas propriedades refletem as suas posições sociais. Assim, o
cortiço é um espaço de miséria que contrasta com a casa bem organizada e a loja
respeitável de Miranda, que despreza o cortiço e o vê como uma ameaça ao «bom
tom» da vizinhança, enquanto o protagonista vislumbra no seu empreendimento a
possibilidade de ascensão económica. Neste contexto, Romão sente-se inferior em
comparação com a posição social do oponente e ambiciona igualar-se a ele, quer
económica quer socialmente. O seu projeto de se equiparar e até superar Miranda
passa por comprar propriedades e se casar com Zulmira, a sua filha, mesmo sem a
amar, pois vê no casamento uma oportunidade única de ascender socialmente e se
distanciar do estigma de «dono do cortiço». Este comportamento evidencia a sua
visão pragmática das relações humanas, sociais, sempre orientada para o lucro,
o dinheiro, a riqueza.
Curiosamente,
no início da obra, o protagonista comporta-se de forma quase subserviente em
relação a Miranda, tratando-o com deferência e respeito, o que mostra que o
reconhece como superior socialmente, daí que não seja de admirar que o procure
imitar. Porém, à medida que vai enriquecendo, torna-se mais competitivo,
passando a olhar para Miranda como um obstáculo e/ou um rival. Por seu turno,
este olha para o protagonista apenas como um vizinho incómodo e vulgar que,
conjuntamente com o cortiço, representa uma ameaça à sua posição e reputação.
Ao longo da obra, conserva sempre uma postura de superioridade relativamente ao
vizinho, nunca o vendo como seu igual, mesmo quando tenta imiscuir-se na elite.
O casamento
com Zulmira é um momento fundamental da relação entre João Romão e Miranda. Para
este último, o matrimónio é uma forma de resolver problemas financeiros, em
virtude de a sua situação económica estar em declínio, e manter aparências. Por
sua vez, o protagonista olha para o casamento como a oportunidade ideal para
ascender socialmente, permitindo-lhe alcançar o lugar que tanto ambiciona no
seio da sociedade burguesa. Além disso, essa união matrimonial espelha a
hipocrisia das relações sociais e a fragilidade das diferenças entre as classes
sociais.
Já o
cortiço, o grande empreendimento de João Romão, é o principal foco de conflito
entre as duas personagens: para o protagonista, ele simboliza a sua conquista e
riqueza, enquanto para Miranda constitui um símbolo de degradação, um espaço
que mancha a reputação da vizinhança. O seu desprezo pelo cortiço e pelos seus
moradores evidencia a visão elitista, enquanto a defesa que Romão faz do
empreendimento reflete o seu orgulho como criador e explorador. No fundo, o que
está aqui em causa é um conflito social: de um lado, temos Romão a representar
a ascensão do capitalismo selvagem e das classes emergentes que, embora
economicamente poderosa, lutam por reconhecimento social; do outro, encontramos
Miranda, símbolo da elite tradicional, a qual procura preservar os seus
privilégios e evitar misturar-se com os «novos ricos».
- Habitantes do cortiço: Embora João Romão seja o criador e
explorador do cortiço, distancia-se das pessoas que nele vivem, mostrando a
sua aspiração por um status social superior. Ele tem do cortiço uma
visão utilitarista, olhando para os moradores como meras fontes de
rendimento: cobra rendas elevadas, tendo em conta as condições decrépitas
das habitações, e não investe no restauro ou manutenção do espaço. De
facto, os habitantes são pessoas de baixos rendimentos, vivendo vários
deles em situação de miséria, e o protagonista aproveita-se desse facto
para manter as rendas, tendo plena consciência de que muitos não têm outra
opção para morar. Por outro lado, estes dados mostram que Romão é
indiferente às condições precárias de vida dos moradores do cortiço, que
têm de conviver com a sobrelotação do espaço, a falta de higiene e
salubridade e a degradação, confrontados com a total indiferença do
protagonista relativamente ao impacto que essas condições têm na saúde e
dignidade das pessoas. A sua única preocupação é evitar despesas que
afetem o seu rendimento, mesmo que isso signifique abandonar os habitantes
à sua sorte e miséria.
João Romão
controla o cortiço e os moradores por completo, exercendo o seu poder através
da cobrança de rendas e da manipulação das suas condições de vida.
Curiosamente, o protagonista possui origens humildes, como os habitantes do
cortiço que erigiu. Não obstante, ele distancia-se deles, vendo-se superior a
eles. Ele procura ascender socialmente e rejeita qualquer associação às pessoas
que vivem no espaço que administra. Nesse contexto, Bertoleza simboliza a
exploração de João Romão: ela trabalha incansavelmente, acredita que está a
juntar dinheiro para comprar a sua alforria, contudo o protagonista nunca teve
a intenção de cumprir sua promessa.
Deste modo, quando Bertoleza se torna um problema para os seus planos de
ascensão social, não hesita em a entregar às autoridades como escrava fugida, o
que desagua no suicídio dela.
O cortiço é
descrito como um organismo vivo, um «formigueiro humano» ou uma «colmeia»,
repleto de pessoas que lutam pela sua sobrevivência no meio da miséria que os
afoga. Romão é o criador do empreendimento, sendo o responsável direto pelas
condições que promovem a degradação social e moral. A relação entre ambos
reflete a dinâmica do capitalismo selvagem, em que o lucro de um depende da
exploração de muitos. Por outro lado, os moradores do espaço são frequentemente
comparados a animais, tendo em conta as condições desumanas em que vivem. Essa
animalização dos moradores é um reflexo da própria animalidade de João Romão,
que, qual animal, age por instinto.
Além disso,
o protagonista evita a todo o custo qualquer envolvimento direto com os
problemas e conflitos que estalam no cortiço. A violência, as lutas e os
escândalos são o pão nosso de cada dia, porém Romão nunca se envolve nem
interfere, desde que esses acontecimentos não afetem o pagamento das rendas,
mantendo, pois, uma constante postura de distanciamento e superioridade, como
se não tivesse qualquer responsabilidade pelas condições que fomentam esses
conflitos. Como já foi referido anteriormente, Romão, apesar das suas origens
humildes, não demonstra qualquer solidariedade com os habitantes do cortiço;
pelo contrário, ele afasta-se cada vez mais das suas origens sociais,
procurando associar-se à elite burguesa e desprezando os habitantes do espaço
que ele próprio criou. Este distanciamento reflete a sua alienação social e
moral, evidenciando o vazio que a sua ambição acarreta: enriqueceu à custa de
outros, contudo permanece isolado e desumanizado.
Simbolicamente,
a relação entre João Romão e os habitantes do cortiço configura uma crítica à
exploração das camadas mais desfavorecidas pela ambição desmedida e pelo
capitalismo selvagem emergente. Deste modo, o narrador denuncia as
desigualdades sociais e as condições de vida degradantes resultantes da
indiferença, da ambição desmedida e da procura desenfreada da riqueza. João
Romão representa o capitalista que vê as pessoas como meio para alcançar os
seus objetivos.
7. Símbolos Associados a João Romão
- O Cortiço: João
Romão é o criador e principal beneficiário do cortiço, que funciona como
uma extensão de sua personalidade: degradado, explorador e movido pela
ambição. O empreendimento simboliza o capitalismo emergente na sociedade
brasileira do século XIX, sendo que o protagonista personifica esse
sistema.
- Figura do explorador capitalista: Simboliza a ascensão do capitalismo no
Brasil, com todas as suas contradições e desigualdades. Romão acumula
riqueza à custa da exploração dos mais desfavorecidos que habitam no
cortiço, aumentando, assim, as desigualdades sociais. Para ele, os
moradores não passam de meras ferramentas usadas para aumentar o seu
património e, de forma desumana e indiferente, não hesita em explorar a
sua pobreza.
8. Transformação ao Longo da Narrativa
- Mudança superficial: Embora João Romão alcance seu objetivo de
ascender socialmente, comprando propriedades e estabelecendo-se como
"respeitável", ele nunca abandona a sua essência exploradora e
gananciosa. Ao longo da obra, vai-se transformando, evoluindo de um
comerciante simples e humilde para um trabalhador obcecado e infatigável,
um capitalista ganancioso, desumano e explorador que procura
desesperadamente a ascensão social.
No início,
o protagonista é apresentado como alguém de origens humildes, um imigrante
português simples e pobre que inicia a sua jornada rumo à riqueza e a outro
estatuto social como dono de uma pequena venda. Nesta fase, apresenta-se como
alguém trabalhador, avaro e obcecado pelo dinheiro e pela acumulação de
riqueza, mostrando-se disposto a sacrificar o conforto, a ética e a humanidade
para poupar o vil metal, daí não ser de estranhar que o vejamos a comer restos
ou a dormir no chão, tudo para economizar até ao último cêntimo, usando como
referência o atual euro. Nesta fase da sua vida, usa Bertoleza como mão de obra
gratuita, prometendo-lhe uma alforria que jamais tem a intenção de cumprir.
Posteriormente,
Romão começa a investir no terreno localizado ao lado da sua venda, até o
transformar num espaço de moradias populares: o cortiço. Esse empreendimento
reflete os traços de caráter que já se adivinhavam na fase inicial: usa
materiais e mão de obra barata durante a construção, ignorando os reflexos que
tal terá nos moradores. Em última análise, o cortiço torna-se uma fonte
constante de lucro, consolidando o seu estatuto de homem de negócios, mas
sempre à custa da exploração do seu semelhante. Neste contexto, apesar dessa
riqueza que o cortiço lhe proporciona, distancia-se, emocional e socialmente,
dos seus habitantes, vendo-os somente como meras fontes de rendimento.
À medida
que o empreendimento cresce e se consolida, com o aumento dos alugueres, João
Romão acumula riqueza. Nessa acumulação constante, compra outras terras e
propriedades, diversificando os seus negócios e investimentos e consolidando a
sua fortuna. Em simultâneo, cresce igualmente a indiferença e a insensibilidade
perante o sofrimento e as necessidades humanas, não revelando qualquer empatia
pelos moradores do cortiço, nem por Bertoleza, que tanto o ajudou na sua
ascensão social. Neste passo da narrativa, Romão está totalmente consumido pela
ganância, agindo de forma desumana, cruel e calculista, traindo Bertoleza ao
entrega-la às autoridades como escrava fugitiva, a partir do momento em que se
torna um obstáculo aos seus planos.
- Busca por status: No final, tenta inserir-se na elite,
casando com Zulmira, filha de Miranda, mas essa tentativa de ascensão
revela a sua alienação e o desejo de reconhecimento social. Como sucede
frequentemente com estas personagens, a riqueza não garante só por si a
ascensão social e a aceitação pelas camadas mais altas da sociedade. João
Romão percebe também isso, tendo de lidar com o desprezo que a burguesia
lhe dedica. Para superar este facto, deseja casar-se com Zulmira, filha do
vizinho burguês, Miranda, não por amor, mas como estratégia para se
integrar na elite. Quando o consegue, esforça-se ao máximo para se adaptar
aos padrões burgueses, abandonando algumas atitudes de avareza e
procurando mostrar-se uma pessoa respeitável, no entanto, na realidade,
essa mudança é apenas superficial, pois, na essência, continua a ser uma
figura mesquinha e ganancioso.
Quando o
final do romance nos bate à porta, constatamos que o protagonista atingiu os
seus objetivos, tanto o do enriquecimento como a ascensão social, mas fê-lo
graças a uma postura de alienação e desumanização que atinge o clímax no mento
em que trai Bertoleza e a denuncia às autoridades para se casar com Zulmira. O
suicídio desta personagem constitui uma espécie de preço moral que Romão tem de
pagar pelo seu trajeto alienante. Deste modo, no desfecho de O Cortiço,
João Romão não passa de um homem muito rico, mas totalmente desumanizado e sem
qualquer vínculo afetivo com os outros, símbolo do capitalista que tudo
sacrifica pelo lucro, mas permanece moralmente pobre.
9. Representatividade no contexto do
Naturalismo
- Representante do capitalismo selvagem:
·
João Romão
simboliza o modelo capitalista emergente no Brasil, no século XIX, em que o
lucro e a acumulação de riqueza se sobrepõem a qualquer valor ético ou humano.
·
Exploração como
base do sucesso: Ele usa o trabalho
de Bertoleza como mão de obra gratuita e explora os moradores do cortiço,
cobrando rendas elevadas em condições precárias.
·
Acumulação e
desigualdade: João Romão representa a figura do
empreendedor que enriquece à custa da exploração de classes sociais mais
vulneráveis, ilustrando as desigualdades inerentes ao capitalismo.
- Símbolo do imigrante no Brasil:
·
Como português
imigrante, João Romão reflete o papel histórico de muitos imigrantes no Brasil,
que chegaram à procura de melhores condições de vida e acabaram a desempenhar
papéis de comerciantes, pequenos proprietários e empreendedores.
·
Ascensão económica: Ele personifica o estereótipo do "imigrante trabalhador"
que, através de muito esforço e poupança, consegue enriquecer.
·
Contraste cultural: A sua ambição e frieza contrastam, frequentemente, com valores mais
"tradicionais" e "moralistas" da sociedade brasileira da
época, como os representados por Miranda.
- Símbolo do novo-rico:
·
João Romão é
representativo da figura do "novo-rico", que acumula riqueza
material, mas luta por reconhecimento social.
·
Ele aspira a integrar
a elite tradicional (representada por Miranda) e utiliza o casamento com
Zulmira como estratégia para obter prestígio, mas a sua origem humilde e os métodos
desumanos de enriquecimento que emprega continuam a constituir barreiras à sua
plena aceitação.
- Metáfora da desumanização e da animalização;
·
A evolução de João
Romão reflete o processo de desumanização provocado pela ambição desmedida. Ele
é frequentemente descrito de forma animalesca, guiado por instintos básicos,
como sobrevivência, acumulação de riqueza e poder.
·
Animalização
naturalista: Esta característica reforça a visão
naturalista segundo a qual os seres humanos são moldados pelos seus instintos e
pelo ambiente social. João Romão é uma criatura do seu meio, explorando e sendo
explorado pelas dinâmicas sociais e económicas.
- Espelho da ascensão social e das suas contradições:
·
João Romão é um
exemplo de como a ascensão social pode ser conquistada por meio de trabalho
duro, mas também por exploração e desumanização.
·
Ambiguidade moral: Ele é, ao mesmo tempo, admirado pela sua perseverança e criticado pelos
seus métodos antiéticos.
·
Falta de integração: Mesmo ao alcançar a riqueza e o status ambicionados, João
Romão nunca se encaixa completamente na elite, o que evidencia a dificuldade de
transição entre as classes sociais no contexto da sociedade brasileira da época.
- Crítica ao materialismo:
· João Romão é um
símbolo da obsessão pelo materialismo. A sua procura incessante por riqueza
leva à perda da humanidade e à destruição de relações interpessoais, como a
traição de Bertoleza exemplifica.
· Vazio moral: Apesar de alcançar sucesso financeiro, João Romão, no final do romance,
está só e isolado, desprovido de vínculos afetivos e sem qualquer satisfação
emocional ou ética.
- Símbolo da luta pela sobrevivência: João Romão é um exemplo clássico da
influência do meio sobre o indivíduo, tema central do Naturalismo.
- Figura antiética: Embora sua trajetória pareça de sucesso, a
crítica do autor expõe os custos humanos e sociais dessa ascensão.
João Romão é uma figura central em O Cortiço, representando a ganância e a exploração na sociedade brasileira do século XIX, e serve como uma crítica contundente à desigualdade social e à moralidade da época.