O poema Ao Volante do Chevrolet pela Estrada de Sintra, escrito em 1928, foi atribuido por Fernando Pessoa ao seu heterónimo e alter-ego, o engenheiro naval Álvaro de Campos, cujo entusiasmo pela maquinaria moderna e a excitação nervosa por ela proporcionada está patente no célebre poema Ode Triunfal, publicado na revista Orfeu em 1914.
O carro a que alude o título deste poema destinava-se a competições desportivas e herdou o nome do seu criador, o suiço Chevrolet, que se notabilizou ao volante nos anos 20.
No poema, o Chevrolet é inicialmente conduzido «quase devagar», numa estrada deserta entre Lisboa e Sintra e numa noite luarenta que propicia o sonhar acordado («Ao luar e ao sonho»); a lua, como recetora da luz solar que é, surge habitualmente associada à passividade e dependência humanas, em antagonismo com a capacidade criativa do sol que, graças ao facto de emitir luz própria, proporciona uma apreensão clara e objetiva da realidade, tendo sido, por isso, associado à inteligência racional; opostamente, a lua é símbolo daquilo que não se percebe com nitidez e parece confuso e ilógico, como é a misteriosa psique humana; por isso, a lua está associada à introspeção, intuição, imaginação, mistério, devaneio e sonho.
O luar acompanha a viagem do sujeito poético desde o início até ao fim e indicia, desde o segundo verso, a propensão para a divagação e sonhar acordado do inquieto condutor do Chevrolet, a inconstância que o levará a não se sentir bem em sítio nenhum («Mas quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa»), o desejo de mergulhar no seu mundo subconsciente, na sua própria noite interior, possivelmente para encontrar uma solução ou saída para o cansaço de viver alicerçado na incapacidade de descobrir o sentido da sua própria existência. Neste poema, tal como acontece em Ode Triunfal, a máquina, por muito moderna que seja, por muito libertadora que pareça ser e por muito que entusiasme o sujeito poético ávido de progresso e modernidade, não passa de objeto criador de um bem-estar efémero que deixa de fora as necessidades do coração, da alma, enfim, disso que sabemos que existe dentro de nós e que nos torna insatisfeitos connosco e com a vida, tenhamos ou não um “Chrevolet” à porta das nossas casas.
No início desta viagem, não é o automóvel moderno, nem o prazer da sua condução que são alvo da atenção do condutor, mas as circunstâncias que envolvem o ato de conduzir: a escuridão da noite iluminada pelo luar, a solidão que sente no interior do carro («Sozinho guio») e que observa no exterior («na estrada deserta»); a condução em ritmo lento («guio quase devagar»), o estado de nervosismo e ansiedade que o afetam («sempre esta inquietação, (…)/ Esta angústia excessiva do espírito»), o desejo de fugir a esta inquietude para encontrar um equilíbrio qualquer num lugar qualquer («Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,/ Mas quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa»). A repetição do advérbio «sempre» acentua a constância do mal-estar e fornece uma explicação para a urgência da libertação; assim, a escolha do Chevrolet não foi arbitrária; o problema é que a solução para a incapacidade de viver terá que vir de dentro do sujeito que a sente, e não de fora.
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação, sem propósito, sem nexo, sem consequência,
sempre, sempre, sempre,
esta angústia do espírito por coisa nenhuma,
na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…
Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestararm, ai de mim!, eu próprio sou!
À esquerda o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
é agora uma coisa onde estou fechado,
que só posso conduzir se nele estiver fechado,
que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
no pavimento térreo,
sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
e ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
e, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
acelero…
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
à porta do casebre,
o meu coração vazio,
o meu coração insatisfeito,
o meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.
Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim….
Poesias de Álvaro de Campos, Colecção Poesia, Edições Ática
O condutor do Chevrolet sente necessidade de se libertar da «angústia excessiva do espírito» e da inquietação; ambas o minam interiormente, sobretudo porque não tem uma explicação lógica, compreensível para elas, já que as sente «por coisa nenhuma», «sem propósito, sem nexo, sem consequência» e é essa falha da inteligência racional em conseguir explicar aquilo que no seu íntimo é gerador da destruição da sua individualidade e que o transforma num passageiro sem rumo no mundo, que vai desencadear a «saída» de Lisboa em direção a Sintra, uma viagem imaginária que terá lugar dentro de si mesmo.
O desconforto permanente ao ponto de se tornar obsessivo («Sempre, sempre, sempre»), cria nele a ansiedade de manter o carro em movimento ou de «seguir» sem parar («Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,/ Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?») como se parar significasse morrer, encarar um mundo que talvez seja ainda mais misterioso, obscuro e aterrador que o seu, aquele de que quer fugir e, ao imaginar-se condutor de um automóvel, cria condições para se observar e analisar com um certo distanciamento.
O Chevrolet, que no início se deslocava em marcha lenta, agora «Galga» a estrada: «Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram»; o automóvel circula velozmente na estrada , mas o sujeito poético pára mentalmente a refletir sobre «as coisas que lhe emprestaram», «coisas» essas que não sendo suas, foram adotadas por ele e feitas suas pela razão de que não sabe o que é ser ele próprio; esses “empréstimos” dos quais se queixa («Quanto do que me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!») contribuem para lhe dar uma identidade, ainda que falsa porque ele não é os outros; por outro lado, essas máscaras que lhe «emprestaram» e que ele usa como se lhe pertencessem, obscurecem a sua verdadeira identidade e dificultam-lhe o acesso à perceção da sua singularidade entre as massas humanas que, pela razão de que se mascaram diariamente, vivem naturalmente dependentes do jogo das aparências; o condutor do Chevrolet «emprestado» denuncia-as porque, vivendo constantemente debruçado sobre si próprio, sabe que também ele é uma sobreposição de máscaras e que a sua verdadeira identidade é apenas essa, o que aliás confessa: «Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!»
A diferença relativamente aos outros é a de que tem uma consciência aguda e dolorosa de que está vedado ao Homem aceder ao seu “verdadeiro” Eu, pelo menos pela via consciente.
O automóvel é visto como símbolo, mas o condutor ironiza sobre a “promoção” de um Chevrolet a símbolo: «Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita». A ironia deve-se ao facto de o automóvel ser símbolo do progresso tecnológico proporcionador de uma libertação que, na realidade, é aparente, fugidia e até “grosseira” na medida em que essa libertação se faz através de um objeto mecânico; o condutor do automóvel último-modelo constata que este não o liberta da opressão que sente, pelo contrário, transforma-se numa prisão em movimento que obedece ao condutor- prisioneiro em que se tornou o sujeito poético:
«O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,/ É agora uma coisa onde estou fechado».
Alcançar a verdadeira liberdade seria conseguir as respostas para a sua inquietação e o carro, como «coisa» que é, não as pode dar, limita-se a levar “mecanicamente” o desassossegado passageiro deixando intacto o seu desassossego.
O condutor do Chevrolet decide «virar à direita» e deixar para trás «o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada.»; a viragem «à direita» opõe-se ao que fica à esquerda, a direção escolhida pelo condutor. Imaginando uma cruz, a direita e a esquerda poderiam representar os braços ou o eixo horizontal dessa cruz, símbolo da dimensão terrena do ser humano e das encruzilhadas com que se depara na vida, o qual intersecta o eixo vertical, símbolo da dimensão espiritual humana. Noutra perspetiva, a realidade situada à esquerda simboliza a vida passada que o sujeito poético decidiu «deixar para trás», optando por virar à direita, isto é, por encarar o futuro: «Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.»
Mas, à direita, encontra «o campo aberto, com a lua ao longe», isto é, um vazio porque o futuro aguarda concretização; «o campo aberto» sugere que há inúmeras possibilidades que poderão ser realizadas, mas também pode sugerir que o condutor do automóvel não enxerga nada nesse futuro à exceção da «lua ao longe», único sinal de “vida” no «campo aberto»; no futuro terá, como no presente, a companhia do sonho e da imaginação, ambos estéreis quanto à capacidade de engendrarem uma nova vida, uma mudança, uma saída para o drama da eterna busca do Eu pelo Eu. De qualquer modo, o futuro resulta do passado e se no passado há também um vazio, o futuro perspetiva-se sombrio.
O casebre, situado à esquerda, simboliza o seu mundo interior, a incapacidade de sentir devido ao excesso de racionalidade, a ausência de uma família e de laços afetivos, a fragilidade psicológica do próprio sujeito poético, a falta de unidade que reina no seu íntimo, o desgaste psicológico sofrido ao longo do tempo decorrente de uma existência ao acaso e à mercê de todas as intempéries da vida e por isso a felicidade é uma espécie de atributo dos outros e nunca dele próprio:
«A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha»
A única felicidade a que tem acesso é por via “indireta”, imaginando o olhar sonhador e cobiçoso dos habitantes do «casebre» ao vê-lo conduzir o Chevrolet: «Aquele é que é feliz.» Mas ninguém é feliz, nem o condutor que imagina a felicidade como algo que acontece aos outros, nem os habitantes do casebre que desconhecem que o automóvel é emprestado e que confundem a felicidade com a posse de bens materiais.
Os habitantes do «casebre», a rapariga casadoira e a criança, dão pela presença do condutor do automóvel através do barulho do motor e limitam-se a seguir com olhar o sujeito poético. A visão é o mais “frio” dos nossos sentidos visto que não precisa de proximidade física e o facto sugere a superficialidade das relações humanas e o interesse individual como motivação das mesmas; para a rapariga, o condutor poderá ser o «príncipe de todo o coração de rapariga», mas apenas porque conduz um Chevrolet.
Lúcido, o condutor interroga-se: «Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?». A resposta está à vista e por isso conduz agora o automóvel «desconsoladamente» na direção do «campo aberto», um deserto no qual se sente solitário, perdido e pessimista quanto ao futuro.
«E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,/ acelero…/ Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,/ À porta do casebre, (…)». O sujeito poético não pode entrar no «casebre» porque o inconsciente é inatingível, mas o que dele chega até à sua consciência é a «porta», a via de acesso a esse mundo labiríntico que o perturba e que é o mundo das emoções que a sua propensão para tudo racionalizar não deixa sentir; por isso, por mais que «acelere», o seu coração ou sede dos sentimentos, ficou encalhado no «monte de pedras» de se afastou «ao vê-lo sem vê-lo», porque o pensar se sobrepõe ao sentir. Devido a esta excessiva racionalidade, não entrevê uma solução para o drama de viver e o poema termina num tom de desalento mais vincado que nas estrofes anteriores. A repetição anafórica da última estrofe sugere que a vida do condutor do Chevrolet se desenrola num movimento circular, é uma sucessão ininterrupta de momentos de cansaço, de angústia, de experiência de vazio interior, de solidão, sensações e sentimentos dos quais se tenta evadir, sempre sem sucesso.
«Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,/ Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim.»
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