Português: 09/01/2024 - 10/01/2024

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Análise da cantiga "A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit’anda"

    Esta cantiga satírica de mestria, da autoria de Aires Peres Vuitorom, é constituída por 42 versos, inicialmente ditados em versos curtos de sete sílabas, de acordo com a disposição dos manuscritos, no entanto Carolina Michaelis deu-lhe a forma de versos longos de quinze sílabas, mantendo, porém, um espaço ao meio do verso, correspondente à cesura, editando o poema duas colunas.
    A rubrica da composição poética classifica-a como uma cantiga de maldizer e contextualiza-a na época em que ocorreu a guerra civil (provavelmente foi composta na sua fase final) que opôs os irmãos D. Sancho II e D. Afonso, ou seja, cerca de 1247, ou talvez um pouco antes, provavelmente no círculo do Infante Afonso de Castela (o futuro Afonso X), que interveio no conflito em defesa de D. Sancho, tendo vindo em seu socorro, entrando com as suas tropas pela Beira. Concretamente, a rubrica identifica o objeto da sátira: um violento libelo contra os alcaides que entregaram os seus castelos ao Conde de Bolonha, o futuro Afonso II de Portugal, e a defesa do alcaide de Celorico, que se manteve fiel a D. Sancho II.
    O el-rei Dom Afonso referido na rubrica é o futuro Afonso III, segundo filho de Afonso II de Portugal e de D. Urraca de Castela, nascido entre 1211 e 1217. Como o legítimo herdeiro do trono era o seu irmão, D. Sancho, aquele decidiu viajar para França e colocar-se ao serviço de Luís IX (filho de Branca de Castela, sua tia) em 1234. Aí, Afonso destacou-se no campo militar, nomeadamente na batalha de Saintes, contra o rei inglês Henrique III. Ainda em França, casou com uma obre chamada Matilde, a viúva herdeira do condado de Bolonha (Boulogne-sur-Mer). Graças ao prestígio alcançado na corte francesa, para além da sua posição na linha sucessória, D. Afonso foi abordado por uma delegação de clérigos e nobres portugueses, após o seu irmão, o rei D. Sancho II, ter sido declarado rex inutilis, pelo papa Inocêncio IV, em 1245, tornando-se, nessa altura, «curador e defensor do reino», após jurar restituir a ordem pública e o respeito pelos direitos eclesiásticos. Deste modo, regressou a Portugal em 126 para travar uma guerra civil contra os partidários do irmão, que durou até 1248. A extensão do conflito ficou a dever-se ao facto de D. Sancho II manter apoios fortes entre setores da nobreza, bem como o do Infante Afonso de Castela.
    A guerra terminou definitivamente após a morte de D. Sancho II, em Toledo, onde se encontrava exilado, tendo Afonso III assumido o trono. Para pacificar a nação, depois da guerra civil a ter dividido de alguma forma, o novo rei liderou uma expedição contra o Algarve, concluindo a conquista do reino a Sul com a tomada de Faro em 1249, situação quês espoletará um conflito com Afonso X, que defendia ter direitos na região em virtude dos avanços castelhanos a oriente do rio Guadiana. A contenda terminou de forma favorável a Portugal, por meio da celebração de um tratado entre Afonso III e Afonso X, o qual previa o casamento do monarca português com Beatriz, filha bastarda do rei castelhano. Curiosamente, no momento em que foi celebrado o acordo, o soberano português ainda era casado com Matilde de Bolonha, facto que o Bolonhês terá descartado por causa dos seus interesses políticos, mas que só ficou solucionado alguns anos mais tarde, depois da morte da condessa. O reinado foi marcado por um reequilíbrio do reino e por algumas reformas administrativas, algumas das quais provocaram atritos com a alta nobreza. Morreu em, 1279, tendo-lhe sucedido D. Dinis, o seu primogénito.
    Exilado em Castela, um nobre português chamado Airas Vuitorom discordava do rumo político que Portugal tinha seguido após a deposição de D. Sancho II. De facto, o trovador fez parte de um grupo de nobres portugueses que se tinham exilado em Castela. Nesta cantiga, dirige-se, com fina ironia, contra os alcaides da Beira que haviam entregado os seus castelos ao Conde Bolonha, mais tarde D. Afonso III. Os nobres que se contavam entre os seus apoiantes, nomeadamente os alcaides, tinham-se rebelado conscientemente contra D. Sancho II, motivados unicamente pelos seus interesses. A rapidez com que Afonso III se assenhoreou desses castelos evidencia a cooperação dos alcaides, que não ofereceram qualquer resistência, até porque não era possível tomar um castelo de pedra a não ser através de um cerco prolongado. Toda a argumentação do trovador centra-se em mostrar que os alcaides traidores tinham quebrado os seus compromissos de fidelidade vassálica, traindo, assim, o ideal cavaleiresco da época, de nobreza. Deste modo, o trovador estrutura o poema na contraposição de modelos e contramodelos de vassalidade. Os contramodelos correspondem a Soeiro Bezerra e aos demais alcaides traidores, sendo cada um referido numa estrofe, indiretamente por meio da menção ao castelo que foi entregue (Leiria, Monsanto, etc.), ou nominalmente (Martins Dias, Airas Soga, etc.).
    Os dois versos iniciais do mote, profundamente irónicos, oferecem problemas de edição e interpretação. O primeiro faz referência à “lealdade da Bezerra”, isto é, ao alcaide Sueiro Bezerra e à sua família, que detinha a tenência de muitos dos castelos da Beira e que constituem as figuras centrais da cantiga, ou seja, os principais traidores. De acordo com esta interpretação, portanto, a expressão alude à linhagem dos Bezerras, por ser essa uma das famílias acusadas de traição que, neste caso, será mais a falta dela. Por outro lado, estará o trovador a enfatizar as nuances antroponímicas geradas pelo apelido Bezerra, como animal de caráter rebelde, arisco e simultaneamente inconsequente? Ou estará Airas Vuitorom a jogar com a figura bíblica da bezerra de ouro, símbolo da ganância? Por seu turno, José D’Assunção Barros (in A cantiga como armadura de guerra…) associa o nome «bezerra», no segundo sentido, à bezerra enquanto animal que simboliza a cobardia. E como ler a expressão “pela Beira muito anda”? Por um lado, estamos perante um topónimo que constitui uma referência geográfica – a Beira (atualmente, é uma região portuguesa do centro nordeste interior, cuja capital é Viseu; na época, porém, o termo designaria mais especificamente a zona portuguesa de fronteira com Leão e Castela) – à zona do país onde se sitiavam os castelos de resistência a tomar pelo Conde. Por outro lado, será sinónimo de «andar à beira de», «andar nos limites», ou seja, na marginalidade vassálica. Seja qual for a interpretação, a Beira era, de facto, a região de Portugal onde ocorreram as traições vassálicas.
    O segundo verso abre com o uso irónico do plural «nós»: “bem é que a mantenhamos». Na segunda parte do verso, o trovador introduz uma outra ideia central da composição poética: a crítica à interferência da Igreja, do Papado, em assuntos temporais: “A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit’anda, / bem é que a mantenhamos, pois que no-lo Papa manda.”. Antes de prosseguir a análise, convém recordar que a edição e fixação destes dois versos levanta problemas, o que tem dado azo a leituras muito diversas. Neste texto, é seguida a edição presente no sítio https://cantigas.fcsh.unl.pt/: “A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit’anda, / bem é que a mantenhamos, pois que no-lo Papa manda.”. Porém, existem outras: “À lealdade da Bezerra que pela Beira muito anda / ben é que a nostr’adenhamos, pois que no-lo Papa manda”; “A lealdade da Bezerra pela Beira muito anda: / bem é que a nostra vendamos, pois que no-lo Papa manda”.
    Regressando à análise da cantiga, o nome maiusculado «Papa», que surge no final do verso 2, refere-se a Inocêncio IV, o qual, em 1245, assinou a bula de deposição de D. Sancho II, intitulada Grandi non immerito, que o declarava rex inutilis. Com efeito, na guerra civil iniciada em 1245, a Igreja fora uma das responsáveis diretas pela ascensão de Afonso III ao trono, visto que, na esteira das determinações do Concílio de Trento, era permitido ao poder eclesiástico interferir no poder temporal, daí Inocêncio III ter nomeado o Conde de Bolonha «curador de Portugal». Os alcaides traidores que entregaram os seus castelos ao Bolonhês argumentavam precisamente que preferiam ser fiéis à Igreja do que ao rei deposto por receio de excomunhão, como o trovador explicita na oitava estrofe: “melhor é ser traidor, que morrer excomungado”. Por outro lado, esses alcaides traidores defendiam-se das acusações, aludindo à própria fundação de Portugal. De facto, aquando da constituição do reino, D. Afonso Henriques, para assegurar, com o beneplácito da Igreja, a autonomia, legitimidade e independência de Portugal, recém-formado, tinha prestado homenagem vassálica (homenagem lígia) ao papa Inocêncio II em 1143, acabando por ser reconhecido como rei português pelo papa Alexandre III em 1179, através da bula Manifestis probatum. Seguindo esta linha de raciocínio, o papa era o «senhor lígio» do reino, pelo que todos os portugueses deviam à Igreja uma fidelidade maior do que ao próprio rei. Sendo assim, aceitar a determinação do papa acerca de D. Sancho II e do Conde Bolonha não constituía qualquer traição ao código feudo-vassálico; pelo contrário, tratava-se de o respeitar no contexto da homenagem lígia. O argumento enunciado nas linhas anteriores está implícito nalguns versos da cantiga: “pois que no-lo Papa manda” – v. 1; “dade o castelo ao Conde, pois vo-lo manda o Papa”.
    No terceiro verso, o trovador nomeia diretamente Sueiro Bezerra, acusando-o de ser traidor (“que tort’é”) por “vender Monsanto”, uma metáfora que denuncia a entrega do castelo que lhe tinha sido confiado em Monsanto a D. Afonso III sem qualquer resistência. Sueiro Bezerra era filho de Gonçalo Viegas de Ribadouro e de uma senhora chamada Teresa, o que fazia dele descendente de uma das maiores linhagens portucalenses. Tinha quatro irmãos, entre eles, Gonçalo Bezerra, que D. Pedro define como “mui boo cavaleiro”. Sueiro Bezerra é citado nas Inquirições de 1258 e 1288, enquanto detentor de propriedades ligadas à quintã que possuía no termo de Tarouca. O verso está escrito em latim (é uma citação das palavras que, no Evangelho de S. Mateus, Jesus disse a Pedro): “Quen tu legares en terra erit ligatum in celo” (“O que tu ligares na terra será ligado no céu”). No entanto, na cantiga, essas palavras constituem uma alusão irónica aos laços que uniam um vassalo ao seu senhor. A afirmação de Sueiro Bezerra, em discurso direto, forma o argumento por si apresentado para negar que a entrega do castelo em Monsanto corresponda a um ato de traição: “por en diz ca nom é torto de vender hom’o castelo”.
    O uso de latim – por vezes macarrónico – na cantiga serve os propósitos bem definidos do trovador. De facto, a inserção da sentença latina dos versículos bíblicos, presente em todas as coplas, constitui a forma como a Igreja legitimaria os atos dos alcaides e a assunção do novo poder em conformidade com as determinações do Concílio de Lyon, que determinava a obediência ao «nobre conde de Bolonha». Os argumentos esgrimidos pela Igreja foram cuidadosamente moldados às suas intenções e assentes em premissas viciadas, o que os tornaria inválidos. Por outro lado, convém ter presente que o latim era a língua usada na escrita de textos eclesiásticos, pelo que o seu uso constituía uma forma de ironizar a Igreja e de questionar o monopólio da mesma quanto ao sagrado, além de dar nota da sua própria erudição. Além disso, o uso do discurso direto em latim isola a argumentação da alta hierarquia eclesiástica a favor dos atos de traição. Note-se, ainda, que toda a cantiga é um desfile irónico de situações e personagens, que se sucedem umas às outras, na defesa maliciosa das opções dos alcaides e das deliberações pontifícias sobre e entrega do governo ao futuro Afonso III. Dessa galeria, constam, como veremos, o Papa – personagem invocada no texto quatro vezes –, um arcebispo, um bispo e dois prelados, bem como os alcaides de Monsanto, Marialva, Leiria, Faria, Santarém, Covilhã, Sortelha e Sintra.
    O verso 7 (que forma uma anáfora com o anterior: “Por en”) refere a entrega de outro castelo, o de Marialva, situado na Mêda, distrito da Guarda. Como argumento de defesa contra a acusação de traição, surge nova citação latina, em discurso direto, dita pelo arcebispo, certamente o de Braga, D. João Viegas de Portocarreiro, uma das figuras centrais no processo de deposição de D. Sancho II: “ – Estote fortes in bello et pugnate cum serpente.”, isto é, “permanece firme na guerra e luta com a serpente” (a serpente é a metáfora do Mal). Ora, estas palavras dizem exatamente o contrário daquilo que o alcaide teria feito. A ironia prossegue no verso 10, pois é a partir dessa citação em latim que o alcaide nega ter cometido um ato de traição e ser mentiroso: "por en diz que nom é torto quem faz traiçom e mente”.
    O visado seguinte é o alcaide de Leiria, Martim Fernandes de Urgeses, anterior alcaide da Guarda. Ele era filho de Fernão Peres de Urgeses e de Teresa Martins de Riba de Vizela e descendia de uma pequena linhagem ligada por laços de vassalagem aos Riba de Vizela e à coroa por vínculos de criação. Foi casado, em primeiras núpcias, em 1244, com Chamoa Gomes, filha do alcaide de Celorico, Gomes Peres da Ribeira, e, mais tarde, com Estevaninha Martins de Ataíde. Terá falecido na segunda metade da década de 1260. Aires Peres Vuitorom e o conde D. Pedro, no seu Nobiliário, apresentam do alcaide do castelo de Leiria a imagem de um traidor à causa do monarca deposto, no entanto a questão da traição pode não ser tão linear, dado que D. Afonso III foi obrigado a investir militarmente contra o castelo e terá sido ainda obrigado a entregar contrapartidas ao alcaide, que terá vivido numa Leiria assolada por conflitos dentro e fora das muralhas da cidade. Pois bem, Martim Fernandes de Urgeses considera que fez o certo ao entregar o castelo a D. Afonso III (“O que vendeu Leirea muito tem que fez dereito”) argumentando que cumpriu as ordens do papa (argumento da autoridade papal, que se sobrepunha à do próprio rei), confirmados pelo “Esleito”, isto é, o “eleito”, uma referência ao arcebispo de Braga, eleito e ainda não confirmado, ou ao novo bispo de Coimbra, que substituíra o anterior, D. Tibúrcio, que desempenhou um papel fulcral na deposição de D. Sancho II e faleceu em 1246. Segue-se, no verso 13, nova citação em latim, em discurso direto: “– Super istud caput meum et super ista mea capa”, isto é, “Por cima desta minha cabeça e por cima desta minha capa”, uma referência ao papa (a «cabeça» da Igreja) e ao arcebispo eleito (a quem pertence a capa). José Manuel Bustamante considera que este verso alude à cerimónia do «impositivo manuum”m ou seja, “imposição de mãos”, comum a vários sacramentos e, sobretudo, à Confirmação e à Penitência, que envolve a colocação das mãos de uma pessoa (um sacerdote, um ministro, etc.) sobre outra com um propósito espiritual ou ritualístico que simbolizava a transmissão de autoridade espiritual ou a bênção  ou cura de enfermos. Em sua, a argumentação que justifica a entrega do castelo e nega as acusações de tração e de mentira é a autoridade eclesiástica, quer a papal quer a do bispo: “dade o castelo ao Conde, pois vo-lo manda o Papa” (v. 14). Desta forma, em estrofes e versos sucessivos, o trovador critica a interferência da Igreja nas questões temporais.
    A estrofe seguinte denuncia o alcaide de Faria, que «vendeu» o castelo ao Conde de Bolonha para «remiir seus pecados, / se mais tevesse mais daria.». Em seu auxílio, são citadas, em latim, as palavras de dois prelados, que, tal como nas coblas anteriores, apresentam a argumentação da alta hierarquia eclesiástica a favor do(s) ato(s) de traição: “ – Tu autem, Dominem, dimitte aquel que se confonde”, ou seja, “Tu, Senhor, perdoa aquele que se desgraça.”
    A crítica abate-se, na cobla seguinte, sobre o alcaide da Covilhã, Martim Dias, que entregou o seu castelo ao futuro Afonso III, tal como todos os anteriores, e o de Sortelha, Pero Dias, uma fortificação situada no concelho do Sabugal, distrito da Guarda. Em seu socorro, surgiram as palavras, em latim, do próprio futuro rei, D. Afonso III: “– Centuplum accipiatis (de mão do Padre Santo)”, ou seja, “Recebereis o cêntuplo”, «repetindo» as ditas por Jesus Cristo aos seus discípulos. Ora, esta citação (“Centuplum accipiatis”) é um poderoso argumento de autoridade, pois saiu da boca da divindade. Quem ousará questioná-la? Na sequência, o trovador transcreve, também em discurso direto, a fala de Fernam Dias, que entregou igualmente o seu castelo, concretamente o de Monsanto, e que se mostra satisfeito pela recompensa anunciada no verso 21 (“Centuplum accipiatis”), considerando que a merece exatamente por ter cometido o ato de traição: “– Bem m’éste, porque oferi Monsanto.” (v. 22).
    Por sua vez, Roi Bezerro (filho de Sueiro Bezerra) ofereceu o castelo de Trancoso (“Ofereceu Trancos’, ao Conde, Roi Bezerro”). Desta vez, a sentença latina é proferida pelo pai do alcaide, o próprio Sueiro Bezerra, e é dita “per sacar seu filho d’erro”. Note-se que esta expressão parece contradizer o resto da cantiga, já que o progenitor só poderia apoiar o gesto do filho de entregar o castelo ao Conde de Bolonha. Esta aparente contradição pode ser explicada de diferentes formas: a expressão significa que o filho deveria, antes de o fazer, ter consultado o «padre» (no duplo sentido, o pai / um padre, como ironicamente afirma no verso seguinte); a leitura do verso anterior não é correta e corresponderá a algo do género: “[E nom] ofereceu”, já que, de facto, parecem faltar duas sílabas métricas a esse verso; a expressão quer dizer livrar o filho do erro de ser acusado de traição. Segue-se, então, a citação parcialmente em latim, proferida por Sueiro Bezerro, para isentar o filho do erro: “– Non potest filia mea sine patre sua facere quidquam: / salvos son os traedores, pois bem isopados ficam!”, quer dizer, “Não pode a minha filha fazer nada sem o seu pai” (João, 5, 19). Observe-se a ironia do trovador ao feminizar voluntariamente o filho, chamando-lhe filha, para aludir à cobardia de Roi / Rui Bezerro. Nas palavras de Rodrigues Lapa, “usando muito de propósito a forma feminina, quer Vuitorom significar e flagelar a cobardia mulherenga do filho (= filha) de Soeiro Bezerra.” (LAPA, 1981, p. 131). No verso 26, o progenitor prossegue a defesa do filho, declarando que os traidores alcançam a salvação, pois são benzidos com o hissope (instrumento usado para aspergir água benta).
    No caso do alcaide do castelo de Sintra, a sua traição é apresentada como o cumprimento do código de cavalaria, através de um vocabulário feudo-vassálico: “O que ofereceu Sintra fez come bom cavaleiro”. Nestes momentos da cantiga e da cada estrofe de uso do discurso indireto, é apresentada a argumentação falaciosa dos traidores a D. Sancho II, não em latim ou latim macarrónico, mas em galego-português. O vocabulário que remete para as relações de vassalagem entre senhores e suseranos pretende justificar a traição vassálica, enquanto o vocabulário devocional para “justificar o pecado”. Note-se que estes dois discursos, o da indignidade e falsa humildade dos alcaides e o da “pomposa” hipocrisia eclesiástica, andam de mãos dadas, pois o primeiro cita o segundo em sua própria defesa e justificação. No caso vertente do alcaide de Sintra, a sua argumentação baseia-se nas palavras do legado papal, provavelmente o arcebispo de Braga, um dos nomeados pelo papa (o outro foi D. Tibúrcio) para a execução da bula de deposição: “– Sagitte potentis acute”, isto é, “Flechas potentes e afiadas” (citação retirada do Salmo 129, 4, em que David refere as língiuas venenosas: “Sagittae acutae cum carbonibes desolationes”). Pode interpretar-se este passo da seguinte forma: o legado disse um versículo dos Salmos ao alcaide e as suas palavras foram “flechas potentes e afiadas”, ou seja, o legado falou-lhe com a sua língua venenosa. O verso 30 clarifica o motivo pelo qual os alcaides agiram de forma traiçoeira: eles argumentavam que era preferível permanecer fiel à Igreja do que ao rei deposto, justificando a sua traição com o receio da excomunhão – “melhor é de ser traedor ca morrer excomungado”.
    Quando o Conde de Bolonha chegou a Celorico da Beira, encontrou a oposição do respetivo alcaide (“Pachec’entom o cuitelo tirou”), Fernão Rodrigues Pacheco, que se recusou a entregar o castelo. De facto, de acordo com a Crónica de 1419, ele só o entregou após ter tomado conhecimento da morte de D. Sancho II em Toledo. O referido texto informa-nos também acerca de uma lenda sobre a tenaz resistência do alcaide: enquanto a fome flagelava os sitiados, uma águia deixou cair uma truta no castelo, e ele, acompanhando-a com bom pão e bom vinho, mandou entrega-la ao Conde, de forma a demonstrar-lhe que poderia aguentar o cerco. É possível que, após a morte do rei, tenha participado na conquista de Sevilha (1247 – 1248), visto que o seu nome consta do Repartimiento da cidade. Em 1251, vamos encontra-los na corte de Afonso III e, em 1258, em Celorico, como prestameiro do rei. Foi casado com Constança Afonso de Cambra, sobrinha de Martim Anes de Riba de Vizela, matrimónio que confirma a sua ligação a esta poderosa linhagem e explica o facto de ser alcaide de Celorico da Beira, uma vez que os Riba de Vizela estavam fortemente implantados na região da Beira Alta. Por outro lado, a sua posição na guerra civil entre os dois irmãos compreender-se-á se tivermos em conta a aliança aos Ribas de Vizela, fiéis apoiantes de D. Sancho II.
    Voltando à cantiga, depois da sequência de alcaides que se «venderam» e entregaram os castelos, o trovador dá conta da chegada do Conde de Bolonha a Celorico da Beira, onde depara com um alcaide que, num gesto aguerrido de resistência, empunha o seu cutelo e, ignorando a ordem da Igreja transmitida pelas palavras do bispo, que o censura e lhe ordena que enfie a espada na bainha (“– Mitte gladium in vagina”), mimetizando as palavras que Cristo dirigiu a Pedro (João, 18, 1), que queria cortar a orelha de um legionário, quando da sua prisão (não é de descurar que a frase assume também um sentido claramente obsceno), enfrenta quem lhe pretende tomar o poder, proclamando: “– Alhur, Conde, peede u vos digam: Crescas!”, isto é, “Ide a outro lugar, Conde, e espeidorrai-vos com medo onde vos chamem à luta” (“Crescas” será, provavelmente, uma interjeição medieval que traduziria um grito de guerra). O caso do alcaide de Celorico da Beira constitui uma exceção, visto que foi o único da lista que mostrou lealdade a D. Sancho II, num mar de traidores, falsos e hipócritas. Assim, o trovador, através da figura de Fernão Rodrigues Pacheco, enaltece todos aqueles que se mantiveram fiéis a D. Sancho II, o que equivale a dizer, a todos os que se mantiveram fiéis aos vínculos de vassalagem e que resistiram indómitos às investidas do Conde e dos seus seguidores. O que está em causa é um certo ideal de nobreza, bem como a deterioração da rede de relações, de compromissos e códigos que norteavam a sociedade medieval e que uma nova nobreza, movida pelos seus interesses pessoais, desejosa de protagonismo e supremacia social, procurava conquistar o seu espaço e as suas ambições, escudando-se nas deliberações do Concílio de Lyon.
    A estrofe seguinte refere outra figura, a de Dom Airas Soga, sobre a qual pouco ou nada se sabe, o qual teria maldito “a ua velha noutro dia”. Trata-se de um verso de difícil interpretação, pois desconhece-se o seu contexto, não obstante continuar a relacionar-se com a não-rendição d alcaide de Celorico. Respondeu-lhe Pero Soares (tratar-se-á de Pero Soares de Briteiros, primo direito de Rui Gomes de Briteiros, trovador português nascido em 1190 e falecido em 1249) com um versículo em latim macarrónico (“um vesso per clerezia”): “– Non vetula bombatricom scandit confusio ficum”, ou seja, “a velha vergonha [pudor] não monta as hemorroides bombásticas” [ruidosas]. José Pedro Machado relaciona este verso com a imagem da figueira (“ficum”) estéril dos evangelhos, enquanto Bustamante sugere como hipótese remota que contenha uma referência ao castelo de Figueira de Castelo Rodrigo.
    Em suma, entre os versos 31 e 38, o alcaide de Celorico da Beira simboliza o ideal de nobreza por causa da sua atitude de se conservar leal a D. Sancho II e não entregar o castelo ao Conde de Bolonha. No último verso referido, é contraposto o que ele representa – o modelo de cavaleiro – e os contramodelos, simbolizados por Sueiro Bezerra: “Non foi Soeiro Bezerra alcaide de Celorico”.
    Na última estrofe, o trovador diz que os alcaides traidores, que entregaram os seus castelos, encontraram a salvação, pois foi-lhes mostrado por escrito que agiram corretamente. Note-se que há aqui uma mudança, visto que, nas estrofes anteriores, estes textos eram falados, ao passo que agora assumem a forma escrita. E o que diz esta última citação? “Por cima do fogo eterno e do poder divino” constituirá, eventualmente, uma referência indireta à bula papal que determinou a deposição de D. Sancho II, usando, não o texto concreto da bula, mas o sentido geral dos textos do Ordo excommunicandi e do Ordo da reconciliandum apostatam, schismaticum vel hereticum, tal como aparece no Pontificale Romanum. Em sua, “salvo é quem trae castelo a preito que o isopem, ou seja, os traidores que entregaram os seus castelos ao Conde de Bolonha foram todos salvos porque abençoados com água benta. Dito de outra forma, estamos na presença de um libelo acusatório contra a quebra dos compromissos de fidelidade vassálica, contra a traição e a cobardia, ainda que a coberto da resolução do Papa. Por outro lado, assenta na dicotomia entre a traição e a excomunhão e, nesta derradeira estrofe, o trovador denuncia, sarcástica e ironicamente, a posição da Igreja no conflito por causa da absolvição geral de todos aqueles que deram os castelos.
    Assim, de acordo com os autores do sítio https://cantigas.fcsh.unl.pt/, esta cantiga constitui um “violento manifesto contra os que permitiram a deposição de D. Sancho II, de quem Vuitorom foi um ardente defensor: por um lado, os alcaides dos castelos referidos ao longo da composição (particularmente da Beira), que, como indica a rubrica, os entregaram ao Conde de Bolonha, o futuro Afonso III, quebrando assim, para o trovador, o juramento de lealdade para com o seu legítimo senhor e rei; por outro lado, e muito claramente, os altos dignitários da Igreja que imediatamente legitimavam a traição, quando não a incitavam (e que desempenharam, de facto, um importante papel no conflito).”. Além disso, a cantiga não só ataca diretamente os partidários de D. Afonso III, como também, indiretamente, o novo rei de Portugal, questionando a sua legitimidade ao trono. Todavia, curiosamente, esta composição poética poderia ser usada pelo monarca para favorecer o seu projeto de centralização do poder, já que ela critica um grupo de nobres por traírem o seu rei (D. Sancho II) e, além disso, fixa normas de fidelidade vassálica importante para todos os soberanos que se viam confrontados com insurreições da nobreza.
    Por outro lado, a cantiga aborda outra questão que estava na ordem do dia: o embate entre o poder temporal e o poder eclesiástico, com o qual tiveram de se confrontar, por exemplo, D. Dinis ou D. Afonso X de Castela e que se consubstanciaram em conflitos com o papa ou entre o projeto centralizador e a autonomia da Igreja local. É isto que justifica a postura de Afonso X, o Sábio, de fomentar a criação e a difusão das cantigas como “A lealdade da Bezerra”. Este escárnio político prenhe de ironia envileve os que teceream a deposição de D. Sancho II, nomeadamente, os alcaides da Beira que entregaram os castelos ao Conde de Bolonha, e o clero que procurava legitimar, ou até promover, a traição através de versículos da Bíblia, citados uns, veladamente sugeridos outros. Note-se, para a construção imagética que é feota dos alcaides e dos nobres partidários do Bolonhês, o uso reiterado dos verbos «vender», «oferecer» e «dar» (8 ocorrências em 10 estrofes), que servem para o trovador os acusar de traição, quer pela via da venda, suborno ou entrega aparentemente desinteressada dos castelos, violando os deveres de vassalagem a quem lhos entregou – D. Sancho II. Ou seja, ele desmascara-os, denunciando o facto de terem, conscientemente, assumido essa postura motivados somente pela defesa dos seus interesses pessoais perante um novo poder, isto é, uma posição de rebeldia para com o legítimo rei.

Bibliografia:
BARROS, J.A., “A cantiga como armadura de guerra…”.
LAPA, M.R., Lições de Literatura Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 1981.
MATTOSO, J., Fragmentos de uma Composição Medieval. Lisboa: Estampa, 1987.

domingo, 15 de setembro de 2024

A escola do século XIX em imagens - XVIII

Jean Geoffroy – Na Escola Maternal (1898)

    Neste quadro, a atenção do pintor recai sobre a educação pré-escolar, mais propriamente a École Maternelle, uma criação das reformas educativas ocorridas em França na década de 80 do século XIX. Estas escolas, que recebiam crianças entre os dois e os cinco anos, tiveram um papel fundamental tanto no apoio às famílias, acolhendo os filhos das classes trabalhadoras, como na socialização e nos cuidados às crianças, preparando, num ambiente afetuoso e lúdico, organizado mas ao mesmo tempo acolhedor, a sua futura integração no ambiente escolar. França tem, ainda hoje, uma das melhores redes de educação pré-escolar do Velho Continente, sendo esse apoio social, familiar e educativo um dos fatores cruciais que têm permitido ao país contrariar, até certo ponto, a quebra da natalidade que assola todo o continente.

    Na pintura de feição realista, em tons suaves mas expressivos, está representado o momento em que, acompanhadas e orientadas por educadoras atentas mas atenciosas, as crianças lavam as suas mãos. Incutir, desde a primeira infância, hábitos de higiene era um dos objetivos da escola maternal. Felizes e sorridentes, meninos e meninas cumprem o seu ritual de limpeza matinal!

Fonte: Escola Portuguesa.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Correção do questionário sobre o conto "A chama obstinada da sorte" - 1.ª parte


1. Numa entrevista dada ao Diário de Notícias, publicada a 25 de outubro de 2008, Luís Sepúlveda explica a origem deste conto e a razão da epígrafe que o acompanha: “Na América do Sul quando conhecemos alguém dizemos o nosso apelido. E um dia, na Patagónia, cheguei a uma cabana onde viveram os famosos bandidos Butch Cassidy e Sundance Kid e vejo um homem muito velho, que me estende a mão e diz «Sepúlveda». Não porque me conhecesse, mas porque era o seu nome. Era óbvio que tínhamos o mesmo nome. Eu digo-lhe: «Devemos ser parentes, qual é o seu primeiro nome?» E ele diz: «Aladino.» Aladino Sepúlveda. Isto é uma maravilha. Isto dá um conto.”
 
2.1. O velho tinha oitenta e alguns anos e era o sustento de uma numerosa família que recorria a ele sempre que surgiam dificuldades.

 
2.2. As expressões que evidenciam a dimensão da família são as seguintes: “filhos, filhas, noras e genros”; “caterva indeterminada de netos”.

 
2.3.

a. Na expressão “erráticos como o vento da estepe”, está presente uma comparação, a qual evidencia o movimento constante das pessoas. A aproximação semântica ao “vento da estepe”, o segundo termo da comparação, procura transmitir a ideia de movimentação constante.

b. Na expressão “quando os ventos (…) faziam soar as tripas”, encontramos uma perífrase que denuncia a fome (“soar as tripas”) que, quando é muita, provoca ruídos no sistema digestivo. A perífrase surge ainda associada aos ventos do inverno, como se estes fossem a sua causa direta.

 
3.1. A outra personagem é Cachupín, o cão do velho. O canino é um animal preguiçoso e que dormia “com um olho aberto”, “sempre atento aos movimentos do dono”. Apesar de ser preguiçoso e pachorrento, era também um animal que, incitado pelo dono, assumia comportamentos de ferocidade.

 
3.2. A função do cão era acordar todos os membros da família que se encontravam em casa e expulsá-los.

 
4. A expressão “vacas magras” tem origem na história bíblica de José do Egito, presente no Génesis. Oriundo de uma família numerosa, José era o preferido do pai, por isso os irmãos decidiram livrar-se dele, vendendo-o como escravo a uns mercadores a caminho do Egito. Preso mais tarde, dedicou-se, na prisão, à interpretação de sonhos, atividade que o tornou famoso e o levou à presença do faraó, para interpretar um dos seus sonhos, no qual previu sete anos de abundância, simbolizados em sete vacas gordas, e sete outros de fome, simbolizados em sete vacas magras. Satisfeito, o faraó nomeou-o seu ministro. Quando a sua previsão de fome se concretizou, José perdoou aos irmãos.

 
5. A sua intenção era ficar apenas acompanhado de Cachupín.

 
5.1. O velho esperava que a família se afastasse bastante, ao ponto de as pessoas serem apenas “referências incertas no horizonte plano”, para entrar novamente na cabana e esperar pacientemente, enquanto Cachupín guardava o lugar.

 
5.2. O diminutivo “familória” tem um valor pejorativo.


5.3. A expressão “esperava pela chegada das sombras” pode remeter para a noite ou a escuridão.


6. O tipo textual predominante é o descritivo. De facto, o narrador descreve personagens, situações e ambientes, normalmente de forma dinâmica. Os recursos característicos do texto descritivo presentes são o pretérito imperfeito (“tinha”, “agarrava”, “faziam”), os adjetivos (“atento”, “colado”, “comprida e fina”) e expressões caracterizadoras, muitas vezes expressivas (“erráticos como o vento da estepe”, “que se agarrava a ele quando os ventos ainda mais frios…”).

 
6.1. No oitavo parágrafo, inicia-se uma sequência de tipo textual narrativo, apresentando eventos que configuram o desenvolvimento da ação global (“acendeu”, “levou”, “tirou”).


7. Dentro da cabana, o velho acendeu um candeeiro de azeite e fez o que “vinha fazendo há mais de trinta anos” (apesar de não se saber neste momento do que se trata). Cortou um pedaço de charque e, depois de o mastigar, deu-o ao cão para ele engolir. Saiu da cabana e foi-se afastando. Os seus familiares regressavam então ao abrigo. Já distante, o velho, seguro de que ninguém o seguia, apagou o candeeiro.

 
8. A ação do excerto decorre na Patagónia argentina (“Cholila”; “Patagónia”), durante a noite (“luminosidade cinzenta da estepe”); “vastidão da noite”).


Questionário 1: questionário.

Análise da cantiga "A dona de Bagüin"

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), em cobras singulares, da autoria de Lopo Lias, é dedicada à dona do Soveral. Em concreto, trata-se da segunda que tem essa figura como destinatário; a outra é “A dona fremosa do Soveral”. A composição poética apresenta uma curiosidade no que diz respeito à métrica da primeira cobla, visto que os dois versos iniciais apresentam sete sílabas métricas, enquanto os correspondentes na segunda têm oito. Além disso, existe igualmente irregularidade no que toca à rima dos primeiros quatro versos da primeira cobra, que apresentam rima cruzada, ao passo que os correspondentes da segunda são monorrimáticos.
    O poema visa, pois, uma figura feminina designada por “dona de Bagüin”, um topónimo que se refere a um lugar do concelho de Marim, junto a Pontevedra, na Galiza. O verso seguinte esclarece que vive concretamente numa localidade chamada Soveral, pertencente à freguesia de Mogor, concelho de Marim, situada imediatamente a seguir a Bagüin. O trovador deu à mulher dezasseis soldos, em troca de um compromisso, um pacto, no entanto ela não cumpriu o prometido nem lhe devolveu o dinheiro, como combinado entre ambos, se “ond’al non fezesse”, expressão que constitui uma referência possivelmente erótica, aludindo a uma eventual troca de dinheiro por favores sexuais. O combinado era que, em troca do dinheiro adiantado, ela se fosse encontrar com o trovador a casa de D. Corral, um burguês galego, provavelmente pertencente a uma família natural do lugar homónimo, em Nóia.
    O arranjo entre o «eu» poético e a mulher é conhecido em diversos locais, como Morraz (ou Morrazo), uma península situada nas rias baixas galegas, entre Vigo e Pontevedra) e Salnês ou Salnés, na mesma zona, um topónimo cuja raiz é «sal», um produto aí produzido há bastante tempo. Isto significa que o assunto é público, conhecido por muita gente. O sujeito poético acrescenta que já passou mais de um mês e a mulher ainda não lhe restituiu os dezasseis soldos que ele lhe emprestou, continuando, portanto, a desrespeitar o acordo. O incumprimento ganha foros de maior escândalo, em virtude de a dona ter prometido devolver-lhe a quantia referida no terceiro dia após o empréstimo. O saldo da dívida seria consumado em casa de Dom Corral, o tal burguês referido no último verso da primeira estrofe, uma figura provavelmente prestigiada, cuja habitação seria o local que servia de cenário para a resolução de questões daquele género.
    Em suma, estamos perante uma composição satírica que denuncia uma mulher por causa de não pagar uma dívida contraída junto do sujeito poético, mesmo depois de várias promessas repetidas. A mulher é, portanto, alguém que não é confiável nem séria, pois não cumpre o seu compromisso. Por outro lado, tratar-se-á de uma figura que tem problemas financeiros, ou, em alternativa, que sobrevive graças ao dinheiro que obtém em razão de favores sexuais que presta.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Questionário sobre o conto "A chama obstinada da sorte" - 4.ª parte

4.ª parte (de “Passados dois meses, o velho e Cachupín III…” até “… porque a vida é assim.”)

 
1. O início deste excerto refere ainda acontecimentos da aventura passada do velho.

 
1.1. Justifica a afirmação.

 
2. O velho reencontrou a rapariga no mesmo lugar.

 
2.1. Reescreve os parágrafos 2 a 6, transformando o discurso direto em discurso indireto.

 
3. Comenta a atitude do velho relativamente ao valor das moedas e à forma como queria a sua parte na sociedade.

 
4. Apesar dos indícios anteriores, apenas neste momento da narrativa se percebe cabalmente o papel do cão. Refere-o.

 
5. Indica os atos ilocutórios presentes nas frases seguintes:

a) “– Não me diga que tem as moedas aqui?

– Eu não as tenho. (…)

– Agora, Cachupín. Agora. Faz caquinha.”

 
6. Transcreve a frase que marca o regresso à história mais recente do velho.

 
7. Tendo em conta o cruzamento das histórias, explica o décimo primeiro parágrafo do excerto.

 
8. Atenta no último parágrafo do texto.

 
8.1. Explica a repetição da oração subordinada adverbial causal.

 
8.2. Interpreta o valor do condicional.

 
8.3. Destaca o valor expressivo da metáfora «candeeiro da fortuna».


9. Procura, agora, ter presente todo o conto.


9.1. Classifica os narradores do texto quanto à sua presença na ação e justifica.

 
9.2. Sintetiza a história do velho numa perspetiva cronológica sequencial.

 
9.3. Explica o título do conto.


Motivos de Hamlet


1. Incesto
 
    O motivo do incesto percorre toda a peça e vem à baila sobretudo através de Hamlet e do fantasma, nomeadamente em conversas sobre Cláudio e Gertrudes, o antigo cunhado e a antiga cunhada, que são agora um casal. Outro motivo subtil de desejo incestuoso pode observar-se no relacionamento entre Laertes e Ofélia, pois dirige-se à irmã em termos sugestivamente sexuais e, no seu funeral, salta para o seu tumulo para a segurar nos braços. No entanto, as tintas do incesto são carregadas na fixação de Hamlet na vida sexual de Gertrudes e Cláudio e a sua preocupação genérica com ela.

2. Misoginia

Destruído psicologicamente pela decisão da mãe de se casar com Cláudio quase imediatamente após a morte do marido, Hamlet torna-se cínico sobre as mulheres em geral, mostrando-se obcecado acerca de uma possível relação entre a sexualidade feminina e a corrupção moral. Essa misoginia é um fator inibidor decisivo no caso do relacionamento de Hamlet com Ofélia e Gertrudes. Por exemplo, em determinado momento, aconselha a filha de Polónio a ir para um convento, em vez de experimentar a corrupção da sexualidade.

Género literário de Hamlet

    Hamlet é uma tragédia, por isso exibe algumas características desse género de peça de teatro. Se atentarmos no final da peça, deparamos com a catástrofe, claramente traduzida pela morte sucessiva de todas as personagens centrais da obra: Polónio, Ofélia, Laertes,, Gertrudes, Cláudio e Hamlet. Por outro lado, o jovem príncipe comporta alguns dos traços característicos do protagonista trágico: é de estirpe nobre, elevada; as suas ações impactam toda a Dinamarca; é uma personagem rica interiormente (é pautado pelo cumprimento do desejo de vingança do pai, pelas hesitações e questionamentos morais acerca da execução da vingança, finge e age como um louco); desafia as leis da sociedade, que esperava que agisse em nome da honra familiar. Enquanto herói trágico, mostra a sua tristeza e melancolia pela morte prematura do pai; é um jovem inteligente e de enorme potencial, que acaba por não realizar por razões óbvias; ao longo da peça, vai-se isolando progressivamente.
    Não obstante, e peça foge ocasionalmente às convenções da tragédia. Em muitas das obras de índole trágica, o herói escolhe perseguir algo que não deveria – no caso de uma peça cujo foco é a vingança, ele sucumbe a um desejo de vingança assassina. Concretamente, com Hamlet, estanos na presença de uma personagem que possui todas as razões para se vingar de outrem, pois o tio, Cláudio, assassinou o seu pai e usurpou o seu lugar no trono, porém hesita e protela a sua concretização, pois, antes de tudo, pretende conhecer a verdade e certificar-se que o fantasma é mesmo quem diz ser e que o rei matou efetivamente o rei Hamlet. Além disso, ele escolhe isolar-se das restantes personagens, comportar-se de forma errática e finge estar louco, o que acarreta várias consequências trágicas, como, por exemplo, o enlouquecimento e a morte de Ofélia.
    Outro traço ambíguo prende-se com a falha trágica de Hamlet: a sua indecisão. Essa característica leva-o a repreender-se mesmo a si próprio por não concretizar a vingança. Nesse contexto, contrasta fortemente com Laertes e Fortinbras, personagens decididas, atuantes e determinadas a agir. Esse caráter indeciso não explica a razão por que Hamlet rejeita Ofélia, manipula psicologicamente Gertrudes, se isola e mata Polónio. Na realidade, a sua indecisão é o motivo por que tende a evitar agir.
    Por último, Shakespeare parece usar Hamlet para satirizar o género trágico. Nas tragédias tradicionais, o herói é uma figura ativa e decidida que persegue obstinadamente um antagonista, um vilão, superando diversos obstáculos colocados no seu caminho, até executar a vingança. No caso de Hamlet, este luta essencialmente consigo mesmo e os seus obstáculos são a sua própria indecisão e hesitação, obstáculos esses que o levam a deixar passar várias oportunidades para se vingar, como, por exemplo, quando encontra Cláudio a rezar e decide não o matar. Além disso, Hamlet só liquida o tio quando a sua própria morte é certa, o que quer dizer que retira pouca ou nenhuma satisfação com a vingança.

Presságios em Hamlet

    Um dos poucos presságios presentes em Hamlet relaciona-se com a morte de Cláudio, que é parcialmente anunciada pelo fantasma, ou, se se preferir, causada por ele. De facto, quando aparece ao filho, exige-lhe que vingue a sua morte, o que implica assassinar Cláudio, portanto o leitor / espectador fica a «saber» que o atual monarca da Dinamarca irá encontrar a morte em breve.
    Outro passamento prenunciado é o de Polónio, quando este diz que fez parte da representação da peça Júlio César, nomeadamente que desempenhou o papel do imperador romano, que foi morto por Brutus, que o apunhalou.

Análise deHamlet

I. Introdução

    1.1. Primeira edição e representação de Hamlet.

    1.2. Fixação do texto.

    1.3. Fontes.

    1.4. Significado de Hamlet.


II. Ação

    2.1. Resumo

    2.2. Análise da ação

    2.3. Estrutura


III. Estrutura externa

    . Cena 1, ato I: resumo; análise.

    . Cena 2, ato I: resumo; análise.

    . Cena 3, ato I: resumo; análise.

    . Cena 4, ato I: resumo; análise.

    . Cena 5, ato I: resumo; análise.

    . Cena 1, ato II: resumo; análise.

    . Cena 2, ato II: resumo; análise.

    . Cena 1, ato III: resumo; análise.

    . Cena 2, ato III: resumo; análise.

    . Cena 3, ato III: resumo; análise.

    . Cena 4, ato III: resumo; análise.

    . Cena 1, ato IV: resumo; análise.

    . Cena 2, ato IV: resumo; análise.

    . Cena 3, ato IV: resumo; análise.

    . Cena 4, ato IV: resumo; análise.

    . Cena 5, ato IV: resumo; análise.

    . Cena 6, ato IV: resumo; análise.

    . Cena 7, ato IV: resumo; análise.

    . Cena 1, ato V: resumo; análise.

    . Cena 2, ato V: resumo; análise.


IV. Personagens

    1. Caracterização

        1.ª) Hamlet

        2.ª) Cláudio

        3.ª) Gertrudes

        4.ª) Polónio

        5.ª) Laertes

        6.ª) Ofélia

        7.ª) Fantasma

        8.ª) Horácio

        9.ª) Fortinbras

        10.ª) Rosencrantz e Guildenstern


V. Temas

    1. Vingança - ação e inação.

    2. Aparência versus realidade e verdade versus engano.

    3. Loucura.

    4. Corrupção.

    5. Honra, religião e valores sociais.

    6. Representação.

    7. Papel da mulher numa sociedade patriarcal.

    8. Morte.


VI. Simbologia

    1. Crânio de Yorick

    2. Flores de Ofélia

    3. Fantasma

    4. Vestuário de Hamlet


VII. Presságios


VIII. Ponto de vista


IX. Género literário


X. Motivos

Ponto de vista de Hamlet

    Hamlet centra-se no ponto de vista do jovem príncipe que dá nome à peça e que faz com que, enquanto protagonista, tenha muito mais falas do que qualquer outra personagem, as quais revelam os seus pensamentos, sentimentos e reflexões sobre questões como o sentido da vida, a morte, o amor, a religião, entre outras.
    Apesar das suas inúmeras falhas enquanto ser humano – como a indecisão, a crueldade, a misoginia ou a imprudência –, ele é uma personagem fascinante para o público, pois este tem acesso ao seu interior e compreende as suas motivações ao longo da peça. Além disso, o príncipe dinamarquês continua até ao fim a questionar-se e às suas ações.
    O ponto de vista da peça é tão semelhante ao do próprio protagonista que por vezes se torna quase impossível ter a certeza se algo está a suceder realmente na peça ou se o príncipe apenas pensa que está a acontecer. É o que sucede com as aparições do fantasma. Embora Marcelo, Horácio e Bernardo avistem o espectro, apenas Hamlet o ouve falar e, quando se dá o terceiro aparecimento, somente ele o consegue ver. Esta sucessão de dados permite questionar se a fala do fantasma não passa de uma alucinação.
    Não obstante tudo isto, há vários mistérios sobre o príncipe que nunca encontram solução. Por exemplo, nunca se sabe o quanto enlouquece ou simplesmente finge, tal como jamais se conclui o que o deixa tão infeliz: a morte do pai, o casamento da mãe com o cunhado, o fracasso em se tornar rei, a incapacidade de se vingar. De igual modo, o espectador nunca conhece os reais sentimentos por Ofélia. Tudo isto parece sugerir que a intenção de Shakespeare é mostrar que a essência da natureza humana é incognoscível.

Simbolismo do fantasma

    O fantasma é uma figura ambígua, desde logo porque não fica claro se ele é realmente o espírito do pai de Hamlet, um demónio que quer enganar o príncipe, ou um simples produto da imaginação do filho. A sua aparição prende-se com o desejo de obter vingança pela sua morte, por isso surge vestido com uma armadura, preparado para a batalha, porém, como é um espírito, necessita da força física de Hamlet para a executar.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Simbolismo das flores de Ofélia

    Após a morte de Polónio, o estado mental de Ofélia deteriora-se drasticamente e a jovem começa a agir como louca (ato IV, cena V). A partir daí, sem ter ninguém com quem confiar e sentindo-se atacado por aquele que amava, vagueia por Elsinore, entoando canções que oscilam entre temáticas infantis e outras de forte cariz sexual e sombrio e distribuindo flores (reais ou imaginárias) a quem encontra, nomeadamente a Cláudio, a Gertrudes e a Laertes, guardando algumas para si. Essas flores são variadas e têm um significado específico: a Gertrudes, oferece erva-doce e aquilégias, que representam o seu suposto adultério, a afeição partilhada entre os amantes; a Cláudio, dá margaridas e arruda (esta última flor é oferecida também a si mesma), que simbolizam respetivamente a inocência e o amor e o arrependimento; oferece ainda alecrim (uma flor presente frequentemente em funerais), amores-perfeitos (lembranças, pensamentos). Em determinado momento, declara que também queria oferecer violetas, porém todas tinham murchado quando pau morrera. As violetas são símbolo de fidelidade (o que indicia que a fé ou a bondade da Dinamarca foram corrompidas com o assassinato de Polónio), da humildade, da virtude e da modéstia, implicando que a morte do pai a levou a desligar-se do cumprimento das normas sociais da época.
    Esta variedade de flores e, consequentemente, dos sentimentos que simbolizam, associa-se aos seus desejos vários que possui e que foram reprimidos pela sociedade e suas normas. Esta noção é ecoada pelo afogamento de Ofélia, rodeada de grinaldas de flores que mostram que, nos seus derradeiros momentos de vida, a jovem escolheu cercar-se de símbolos de tudo o que ela era e poderia ter sido, caso não tivesse sido impedida. Ou sejam as flores são uma espécie de lembrete de tudo o que lhe foi roubado.

Questionário sobre o conto "A chama obstinada da sorte" - 3.ª parte

 
3.ª parte (de “– Pouco antes do amanhecer passou um camião…” até “Quando os seus parentes, os próximos e os não tanto (…) falava com os fantasmas dos bandidos gringos.”)

 
1. «Pouco antes de amanhecer», o velho e o cão conseguiram a boleia esperada.

 
1.1. Caracteriza o camionista.

 
1.2. Explica a atitude do velho perante as questões que lhe foram feitas até Esquel.

 
2. Já na cidade, o velho continua a contar a sua história a Cachupín VI. Indica a opção que completa corretamente as afirmações seguintes:

 
2.1. «Durante os cinco anos seguintes à descoberta do tesouro, de cada vez que tirou algumas moedas»

a. arranjou compradores e conseguiu bons negócios.

b. tinha medo que os malandros e até os militares achassem que ele estava pobre.

c. fez longas viagens que correram maravilhosamente.

 
2.2. Durante os dez anos posteriores nunca tocou nas moedas porque

a. a notícia se tinha espalhado e já não havia compradores para elas.

b. tinha medo que os malandros e até os militares achassem que ele estava pobre.

c. a notícia se tinha espalhado e havia sempre quem lhe batesse para lhas roubar.

 
3. Atenta no seguinte excerto: «Espalhara-se a notícia e cada vez que me afastava de Cholila tinha, ou os malandros ou, pior, os militares, à minha espera para me levarem até a roupa do corpo. Se soubesses a quantidade de gente que me viu em pelo. Mas, como te digo, decidi ser inteligente e ensinei ao Cachupín II as manhas que tu também sabes.»


3.1. Transcreve todos os deíticos pessoais.


4. Explica o estratagema engendrado pelo velho para não sofrer as consequências de levar consigo moedas e a evolução que se verificou nos cães que foi tendo.

 
5. Na continuação da sua conversa com o cão, o velho revela a estratégia do candeeiro.


5.1. Apresenta-a por palavras tuas.

 
5.2. Relaciona este estratagema do velho com o título do livro em que se inclui o conto.


6. Chegamos a um ponto da narrativa em que as aventuras do presente do velho e do seu passado se cruzam. Justifica a afirmação.

 
7. Num tempo de ditadura militar, em que é forçoso que tudo seja feito às escondidas, o velho encontrou a solução para o seu problema numa rapariga no meio de uma praça-

 
7.1. Reconta o que aconteceu e comenta a sua atitude em relação à rapariga.


Simbolismo do vestuário de Hamlet

    Hamlet enverga frequentemente roupas de cor preta, as quais simbolizam a sua tristeza e dor pela morte do pai. Os reis consideram que, desse modo, o jovem espalha um clima triste sobre o palácio, por isso pedem-lhe que se anime, ou, no mínimo, mudar a roupa que costumeiramente vestia, no entanto o príncipe recusa, afirmando que as suas vestes representam apenas uma parte da sua verdadeira tristeza, o que significa que elas refletem o seu estado de espírito.
    Esta não é, todavia, a única ocasião em que Hamlet usa o seu guarda-roupa para sugerir o seu estado de alma. Por exemplo, na cena I do ato 2, muda de roupa para dar nota de outra forma de sentir e, pouco depois, surge nos aposentos de Ofélia apenas parcialmente vestido e com o vestuário desalinhado, agarra-a, olha-a ferozmente e vai embora, deixando-a confusa e assustada. Esta cena segue-se à conversa entre o príncipe e Horácio, durante a qual expõe o seu plano para descobrir a verdade sobre a morte do pai, que inclui agir como se tivesse enlouquecido para disfarçar as suas verdadeiras intenções. Toda a situação deixa Ofélia com a imagem de um príncipe mentalmente desequilibrado.

Simbolismo do crânio de Yorick

    Na primeira cena do ato V, Hamlet e Horácio deparam-se com dois coveiros preparando a sepultura que irá receber o corpo de Ofélia e, no cenário, destaca-se o crânio de Yorick, o antigo bobo da corte do falecido rei Hamlet, o qual simboliza a inevitabilidade da morte e o vazio existencial que resulta dessa consciência. O jovem Hamlet relembra a sua figura e a sua forma de ser animada e divertida que agora não passa de um monte de ossos espalhados na terra. Esta observação enfatiza a ideia da inevitabilidade da morte e o fascínio de Hamlet pelas suas consequências físicas, nomeadamente a decadência / degradação do corpo, que é apenas temporário. De facto, são várias as referências do príncipe à decomposição do corpo humano, como, por exemplo, a observação de que Polónio será comido pelos vermes, o mesmo acontecendo com os próprios, exemplificados pela figura de Alexandre Magno, cujo corpo se transformou em pó que pode ser usada para tapar um buraco num barril de cerveja. Todas estas constatações levam-no a concluir que não interessa a forma como as pessoas vivem as suas vidas, o poder e a riqueza que possuem, o «status», pois, mais tarde ou mais cedo, transformar-se-ão em pó. O final da peça, como se fosse necessário, confirma essa noção.

O tema da morte em Hamlet

    A morte está presente na peça de várias formas: o fantasma do velho rei Hamlet; a contemplação de Hamlet sobre o suicídio; a performance dos atores de O Assassinato de Gonzago; a tendência de Hamlet para se vestir de preto; a morte de Ofélia; os coveiros e o túmulo de Ofélia; a contemplação do crânio de Yorick; o funeral de Ofélia; as inúmeras mortes do final da obra.
    A morte do pai desencadeia em Hamlet a obsessão pelo tema, levando-o a ponderar as suas consequências, tanto espirituais, incarnadas pelo fantasma, como físicas, suscitadas pela contemplação do crânio do antigo bobo e dos cadáveres em decomposição no cemitério, aquando dos preparativos para o funeral de Ofélia. Por outro lado, a ideia da morte está conectada com as questões da espiritualidade, da verdade e da incerteza. Além disso, a morte é tanto a causa quanto a consequência da vingança, daí que esteja intimamente ligada aos temas da vingança e da justiça. O assassinato do rei Hamlet às mãos de Cláudio desencadeia a busca de vingança, constituindo a morte do soberano o fim dessa procura.
    A sua própria morte atormenta-o igualmente, a partir do momento em que contempla o suicídio e reflete se constitui ou não uma ação moralmente legítima num mundo que lhe causa imensa dor. De facto, a dor e o sofrimento do príncipe são tão intensos que chega a contemplar a morte como solução par pôr fim a esse estado de alma, porém receia que, se se suicidar, será condenado o sofrimento eterno no inferno. Convém ter presente que este pensar é determinado pelos princípios religiosos cristãos.
    Outro momento marcante neste diálogo de Hamlet com a questão da morte é a contemplação do crânio de Yorick, um antigo bobo da corte cuja inteligência, valor e atributos físicos o príncipe recorda e constata que a morte levou para sempre. A passagem do tempo, o envelhecimento, a decadência e a morte são inevitáveis. Hamlet toma consciência disso, bem como de que se aplica a todos os seres humanos, independentemente do seu estatuto. Metaforicamente, esta obsessão pela morte mostra a impotência de Hamlet de impedir o que está a acontecer e a corromper a Dinamarca. No final, é um líder estrangeiro, Fortinbras, que assume o trono e o poder no país para o recuperar. A nação teve que se decompor completamente antes de poder renascer, à semelhança do que sucede com a carne humana, que se decompõe e nutre o solo.

O papel da mulher numa sociedade patriarcal em Hamlet

    Gertrudes e Ofélia são duas mulheres a viver numa sociedade feita para e dominada por homens, daí serem sujeitas à opressão e à injustiça. A peça situa-se nos anos 1600, uma época em que às mulheres não era permitido subir ao palco, e a obra revela as limitações e os preconceitos de que eram vítimas, incluindo as de origem nobre. Assim, o seu comportamento é condicionado pela sociedade misógina em que vivem, que lhes dá poucas opções para sobreviver ou prosperar.
    Tendo estes dados em conta, ninguém estranhará que Gertrudes e Ofélia sejam frequentemente ignoradas e a sua ação / vida condicionada pelos homens e seus interesses. Os comentários que Hamlet lhes dirige, carregados de acusações, refletem a misoginia da época e ignoram o facto de elas serem vítimas do meio em que habitam e necessitarem de tomar decisões que lhes permitam adquirir segurança num mundo masculino. Gertrudes exemplifica na perfeição este quadro. Após a morte do marido, casa com o seu irmão (e assassino) e a peça nunca esclarece o seu grau de envolvimento e o seu eventual conhecimento do crime, embora se possa deduzir que não participou no crime, não obstante provavelmente ter conhecimento do plano de Cláudio. É uma hipótese, mas, seja como for, aquiesceu a casar com Cláudio, possivelmente por recear as consequências de uma recusa. Afinal, o estatuto de rainha conferia-lhe uma segurança que não estava ao alcance das demais mulheres. É uma decisão que simboliza a tentativa de sobreviver numa situação muito precária.
    Quanto a Ofélia, a sua situação não difere muito da de Gertrudes, desde logo porque é forçada a tomar decisões e a envolver-se em situações que não controla e / ou não deseja. Cláudio e Polónio usam-na como peão para espiar Hamlet e tentar descobrir a veracidade e o motivo da sua loucura. Obediente, a jovem segue as instruções do pai e recusa-se a vê-lo e a falar com ele, o que motiva a ira do príncipe- Quando o pai é assassinado por Hamlet, perde a sua sanidade. De um lado, está o seu pai, do outro, o homem que ama. Para acentuar a sua situação desesperada, tem de enfrentar estes acontecimentos sozinha, pois o irmão está em França. No final, se entendermos a sua morte como produto de um suicídio., seremos levados a concluir que, nesse instante, Ofélia assume o controlo do seu destino.
    Em suma, Gertrudes e Ofélia vivem uma vida de qualidade superior à das restantes mulheres, apesar de todos os condicionalismos e opressão a que estão sujeitas, mas têm plena consciência de que podem perder essa posição social privilegiada se não cumprirem as expectativas a que o género a que pertencem está sujeito. Assim sendo, a sua ação é motivada pelo desejo de sobrevivência.

O tema da representação em Hamlet

    Intimamente ligado à temática da loucura está aquilo que poderemos designar por representação.
    No momento em que surge em cena pela primeira vez, Hamlet faz uma distinção entre comportamento externo e sentimentos reais. Na cena V do ato I, afirma que vai fingir estar louco e, na inicial do segundo, Ofélia alude ao comportamento louco do príncipe como uma performance cómica. Mais tarde, quando declara a Ronsencrantz e Guildenstern que perdeu toda a alegria, parece genuinamente triste e deprimido. A questão central prende-se com a determinação se Hamlet está realmente louco ou apenas encena a sua loucura.
    A questão da representação relaciona-se também com a da peça dentro da peça. Por exemplo, o próprio texto de Shakespeare recorda frequentemente ao público que está a assistir a uma representação teatral. Quando Polónio refere que na universidade encenou Júlio César, pode estar a aludir à própria peça da autoria de Shakespeare, escrita na mesma época de Hamlet.

Os temas da honra, religião e valores sociais em Hamlet

    A sociedade dinamarquesa norteia-se por um código de valores assente na religião e na honra aristocrática.
    O fantasma do rei Hamlet exige que o filho do antigo monarca vingue a sua morte e tal passa pelo assassinato de Cláudio. No entanto, o príncipe hesita ao refletir sobre as consequências de praticar um crime daquele calibre e acaba por não agir. Esta postura não sinaliza necessariamente cobardia de Hamlet ou medo, mas uma reflexão acerca do modo como a vingança e a violência praticada para restaurar a honra podem não ser a resposta adequada. Estas considerações são bem exemplificadas pela cena em que Hamlet encontra Cláudio sozinho a orar, o que configura uma ocasião perfeita para consumar a vingança. Contudo, hesita e reflete que, se assassinar o tio enquanto ele ora, enviará o assassino do pai para o céu. Esta reflexão leva Hamlet a reconsiderar o que uma sociedade que glorifica hipocritamente a vingança e a piedade religiosa espera dele. Em simultâneo, apercebe-se da artificialidade que caracteriza a sociedade e de que a vingança não casa com os valores cristãos.
    A parte final da peça mostra um Hamlet a caminhar em direção a um certo niilismo, reconhecendo que o mundo se caracteriza pela aleatoriedade e pelo caráter arbitrário de vários padrões da sociedade. As suas reflexões levam-no a constatar que todos os seres humanos, independentemente do seu estatuto, do seu poder, da sua classe social, têm o mesmo fim, daí que ignore o conselho de Horácio para ter cautela quando duelar com Laertes. Essa sua imprudência provém da perceção de que os códigos morais que ele considerava decisivos não são aplicáveis e caminham para a irrelevância.

O tema da corrupção em Hamlet

    A Dinamarca é frequentemente descrita como um corpo físico adoecido pela corrupção moral que a tinge e que deriva dos seus soberanos, Cláudio e Gertrudes. Vários estudiosos da obra de Shakespeare apontam a personagem do fantasma como símbolo da podridão que se vai entranhando o país. De facto, quando Marcelo afirma que algo está podre no reino, após avistar o espectro, está a aludir a uma superstição medieval, segundo a qual a prosperidade de uma nação está ligada à legitimidade do seu rei. E sabemos que Cláudio não é um rei legítimo, pois assassinou o seu irmão para usurpar o poder.
    Desde o início da obra, instala-se um sentimento de medo na corte. De facto, quando Marcelo, Bernardo e Francisco, os três vigias de Elsinore, mostram-se hesitantes, inquietos e nervosos no momento em que se encontram, por causa da aparição do fantasma do rei Hamlet no castelo. Da investigação em torno do porquê desse evento resulta a sensação de que Cláudio assassinou o irmão para se apossar do trono, sinal de que a corrupção moral e política tomou conta da nação e, curiosamente, o facto afeta profundamente Hamlet, de tal forma que acaba por desenvolver uma obsessão pela corrupção física, pela decadência e pela morte. Essa obsessão traduz os seus medos sobre a deterioração da própria saúde, bem como o declínio do bem-estar da família e da própria nação.
    O falecido rei Hamlet é retratado como um governante corajoso e forte que governa um estado saudável, ao contrário de Cláudio, um político manipulador e perverso que corrompeu e comprometeu a saúde da Dinamarca para satisfazer as suas ambições políticas. Neste sentido, o desenlace da peça, com a ascensão ao trono de Fortinbras, simboliza a regeneração e o fortalecimento da nação.
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