Português: Análise da cantiga "Achou-s’um bispo que eu sei um dia", de Airas Nunes

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Achou-s’um bispo que eu sei um dia", de Airas Nunes

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), da autoria de Airas Nunes, é constituída por quatro sétimas, sendo que a última está bastante danificada, cujos fragmentos são transcritos apenas pelo Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
    A composição poética consiste num diálogo entre duas personagens do alto clero, um bispo e o seu arcebispo, este último eleito mas ainda não confirmado. O episódio datará talvez de 1286/1289 e relacionar-se-á com a nomeação papal de Rodrigo González como arcebispo de Santiago de Compostela, uma nomeação que foi muito contestada pelo claro local, que não via com bons olhos a ânsia moralizadora e reformista do novo arcebispo. Note-se que o trovador – Airas Nunes – era ele próprio clérigo. Sucede que o bispo passou pelo Eleito e não deu por ele, o que fez com que este se zangasse. Há críticos que sugerem a hipótese de o “eleito” de que fala a cantiga talvez não seja exatamente um bispo, mas, sim, o Papa. Um simples bispo eleito não trataria mal um bispo mais antigo e já sagrado. Além disso, o “eleito” mora num lugar onde todos os bispos têm obrigação de o conhecer e de lhe falar. Isto só sucederia na Cúria Romana. Neste caso, a ironia tem origem na ignorância do bispo que vai a Roma e não sabe quem é o Papa, exceto se se tratar de um bispo eleito há pouco e cheio de prosápia, todo zangado por um bispo simplório não dar pela sua nova dignidade. É uma leitura possível, mas pouco provável.
    A primeira estrofe dá conta que que um bispo que o trovador conhece (“Achou-s’um bispo que eu sei”) encontrou o arcebispo eleito e não lhe falou (“cõn’o eleit’e sol nom lhe falou”), o que causou o espanto deste último, pelo que se dirigiu à outra figura e a questionou acerca da sua postura (“- Que bispo sodes, se Deus vos perdom, / que passastes ora per mim e nom / me falastes e fostes vossa via?”). A expressão “sol nom lhe falou” evidencia o silêncio do bispo ao passar pelo “eleito” e o não reconhecimento deste, o que indicia que era estranho ou incomum que uma figura eclesiástica se cruzasse com uma autoridade da Igreja e não a reconhecesse e saudasse. A forma verbal “maravilhou” traduz o efeito causado pelo comportamento do bispo no arcebispo: surpresa. A expressão inicial “um bispo que eu sei” dá nota de que o trovador conhece a sua identidade, porém não a revela. A interrogação retórica “Que bispo sodes” traduz o espanto do arcebispo com a atitude do outro religioso e, em simultâneo, pode entender-se como uma provocação, questionando essa postura e insinuando que a mesma é inadequada. A expressão “se Deus vos perdom” é irónica, pois apresenta a ausência de saudação como um “pecado” muito grave, tão grave que apenas poderá ser colmatado por um perdão divino, que não é certo.
    A gravidade que se espera de questões religiosas não é propriamente a desta situação. Por último, a expressão “fostes vossa via” (= seguistes o vosso caminho) sugere a indiferença do bispo, enfatizando o facto de este ter ignorado o “eleito”, uma figura que se considera bastante importante.
    A segunda estrofe contém a resposta do bispo, que alega não conhecer o interlocutor (e invoca o testemunho divino em seu favor: “se Deus me valha”), pois nunca tinha falado com ele nem alguma vez o tinha visto, pelo que não o poderia (re)conhecer. Por estes motivos, alerta-o para o facto de, se a situação voltar a ocorrer, isto é, os dois se cruzarem de novo e não o conhecer nem lhe falar, não se admirar nem considerar que tal sucederá por “vilania”, ou seja, por falta de respeito. Esta fala do bispo torna claro que ele fingiu não reconhecer o arcebispo, pois, se naquela ocasião, tinha justificação para a ausência de saudação, o mesmo não sucederá no futuro, já que a desculpa de nunca ter visto nem falado com o arcebispo deixou, a partir daquele momento, de se verificar, pois estão a falar um com o outro. Por outro lado, a alegação de que não o conhecia pessoalmente não é aceitável, já que, mesmo que tal fosse verdade, não poderia deixar de reconhecer a figura de um arcebispo.
    Este, porém, não aceita a justificação do bispo. Desde logo, afirma que “todos aqui m’ham de conhecer”, ou seja, reforça o seu estatuto e a sua importância, bem como a alta estima em que se tem, que eram tais que todas as pessoas o conheciam (hipérbole). Depois, acrescenta que o bispo o ignorou intencionalmente, fingiu não o reconhecer (“e o que o assi nom quer fazer / nom é bispo nem val ua mealha”), daí atacá-lo pessoalmente, questionando o valor do bispo enquanto pessoa, bem como a sua legitimidade enquanto tal. O uso do nome “mealha” (moeda de pouco valor) simboliza o desprezo que o “eleito” tem pelo seu interlocutor. A expressão “quem me sõo eu” evidencia o alto valor e a importância que o arcebispo se atribui, sugerindo que considera a sua posição e o seu estatuto tão elevados e óbvios que o bispo o deveria ter reconhecido de imediato, sem qualquer hesitação. Daí provém o seu espanto, a sua indignação e o orgulho ferido. Nova hipérbole (“nem dades por mi valor d’ua palha”) intensifica a sensação de desrespeito e desprezo que a atitude do bispo gerou no “eleito”.
    A quarta e última estrofe apresenta seis versos estropiados, salvando-se o terceiro, o único que está completo. Do escasso texto que chegou até nós, fica a sensação de que o bispo reforça a sua justificação / argumentação e a sua verdadeira intenção, ao clarificar que não quer o mal, mas também o bem, do arcebispo. Ora, esta afirmação indicia a total indiferença do bispo pelo seu superior hierárquico, bem como o desprezo pela sua opinião e indignação, que contrasta com o valor e a importância, bem como o desejo de reconhecimento, que o arcebispo atribui a si próprio.
    Em suma, esta cantiga critica, na pessoa do arcebispo, os membros do alto clero que se deixam deslumbrar pela vaidade, pelo orgulho, pelo deslumbramento e egocentrismo, resultantes da eleição para cargos dentro da hierarquia religiosa. De facto, o arcebispo, recentemente eleito, fica indignado e julga-se ultrajado na sua dignidade pelo simples facto de não ter sido reconhecido por um bispo.

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