Esta
cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), da autoria de
Airas Nunes, é constituída por quatro sétimas, sendo que a última está bastante
danificada, cujos fragmentos são transcritos apenas pelo Cancioneiro da
Biblioteca Nacional.
A
composição poética consiste num diálogo entre duas personagens do alto clero,
um bispo e o seu arcebispo, este último eleito mas ainda não confirmado. O
episódio datará talvez de 1286/1289 e relacionar-se-á com a nomeação papal de
Rodrigo González como arcebispo de Santiago de Compostela, uma nomeação que foi
muito contestada pelo claro local, que não via com bons olhos a ânsia
moralizadora e reformista do novo arcebispo. Note-se que o trovador – Airas Nunes
– era ele próprio clérigo. Sucede que o bispo passou pelo Eleito e não deu por
ele, o que fez com que este se zangasse. Há críticos que sugerem a hipótese de
o “eleito” de que fala a cantiga talvez não seja exatamente um bispo, mas, sim,
o Papa. Um simples bispo eleito não trataria mal um bispo mais antigo e já
sagrado. Além disso, o “eleito” mora num lugar onde todos os bispos têm
obrigação de o conhecer e de lhe falar. Isto só sucederia na Cúria Romana.
Neste caso, a ironia tem origem na ignorância do bispo que vai a Roma e não
sabe quem é o Papa, exceto se se tratar de um bispo eleito há pouco e cheio de
prosápia, todo zangado por um bispo simplório não dar pela sua nova dignidade.
É uma leitura possível, mas pouco provável.
A
primeira estrofe dá conta que que um bispo que o trovador conhece (“Achou-s’um
bispo que eu sei”) encontrou o arcebispo eleito e não lhe falou (“cõn’o eleit’e
sol nom lhe falou”), o que causou o espanto deste último, pelo que se dirigiu à
outra figura e a questionou acerca da sua postura (“- Que bispo sodes, se Deus
vos perdom, / que passastes ora per mim e nom / me falastes e fostes vossa via?”).
A expressão “sol nom lhe falou” evidencia o silêncio do bispo ao passar pelo “eleito”
e o não reconhecimento deste, o que indicia que era estranho ou incomum que uma
figura eclesiástica se cruzasse com uma autoridade da Igreja e não a
reconhecesse e saudasse. A forma verbal “maravilhou” traduz o efeito causado
pelo comportamento do bispo no arcebispo: surpresa. A expressão inicial “um
bispo que eu sei” dá nota de que o trovador conhece a sua identidade, porém não
a revela. A interrogação retórica “Que bispo sodes” traduz o espanto do
arcebispo com a atitude do outro religioso e, em simultâneo, pode entender-se
como uma provocação, questionando essa postura e insinuando que a mesma é
inadequada. A expressão “se Deus vos perdom” é irónica, pois apresenta a
ausência de saudação como um “pecado” muito grave, tão grave que apenas poderá
ser colmatado por um perdão divino, que não é certo.
A
gravidade que se espera de questões religiosas não é propriamente a desta
situação. Por último, a expressão “fostes vossa via” (= seguistes o vosso
caminho) sugere a indiferença do bispo, enfatizando o facto de este ter
ignorado o “eleito”, uma figura que se considera bastante importante.
A
segunda estrofe contém a resposta do bispo, que alega não conhecer o
interlocutor (e invoca o testemunho divino em seu favor: “se Deus me valha”),
pois nunca tinha falado com ele nem alguma vez o tinha visto, pelo que não o
poderia (re)conhecer. Por estes motivos, alerta-o para o facto de, se a
situação voltar a ocorrer, isto é, os dois se cruzarem de novo e não o conhecer
nem lhe falar, não se admirar nem considerar que tal sucederá por “vilania”, ou
seja, por falta de respeito. Esta fala do bispo torna claro que ele fingiu não
reconhecer o arcebispo, pois, se naquela ocasião, tinha justificação para a
ausência de saudação, o mesmo não sucederá no futuro, já que a desculpa de
nunca ter visto nem falado com o arcebispo deixou, a partir daquele momento, de
se verificar, pois estão a falar um com o outro. Por outro lado, a alegação de
que não o conhecia pessoalmente não é aceitável, já que, mesmo que tal fosse
verdade, não poderia deixar de reconhecer a figura de um arcebispo.
Este,
porém, não aceita a justificação do bispo. Desde logo, afirma que “todos aqui m’ham
de conhecer”, ou seja, reforça o seu estatuto e a sua importância, bem como a
alta estima em que se tem, que eram tais que todas as pessoas o conheciam
(hipérbole). Depois, acrescenta que o bispo o ignorou intencionalmente, fingiu
não o reconhecer (“e o que o assi nom quer fazer / nom é bispo nem val ua
mealha”), daí atacá-lo pessoalmente, questionando o valor do bispo enquanto
pessoa, bem como a sua legitimidade enquanto tal. O uso do nome “mealha” (moeda
de pouco valor) simboliza o desprezo que o “eleito” tem pelo seu interlocutor. A
expressão “quem me sõo eu” evidencia o alto valor e a importância que o
arcebispo se atribui, sugerindo que considera a sua posição e o seu estatuto
tão elevados e óbvios que o bispo o deveria ter reconhecido de imediato, sem
qualquer hesitação. Daí provém o seu espanto, a sua indignação e o orgulho
ferido. Nova hipérbole (“nem dades por mi valor d’ua palha”) intensifica a
sensação de desrespeito e desprezo que a atitude do bispo gerou no “eleito”.
A
quarta e última estrofe apresenta seis versos estropiados, salvando-se o
terceiro, o único que está completo. Do escasso texto que chegou até nós, fica
a sensação de que o bispo reforça a sua justificação / argumentação e a sua verdadeira
intenção, ao clarificar que não quer o mal, mas também o bem, do arcebispo. Ora,
esta afirmação indicia a total indiferença do bispo pelo seu superior
hierárquico, bem como o desprezo pela sua opinião e indignação, que contrasta com
o valor e a importância, bem como o desejo de reconhecimento, que o arcebispo
atribui a si próprio.
Em
suma, esta cantiga critica, na pessoa do arcebispo, os membros do alto clero
que se deixam deslumbrar pela vaidade, pelo orgulho, pelo deslumbramento e
egocentrismo, resultantes da eleição para cargos dentro da hierarquia
religiosa. De facto, o arcebispo, recentemente eleito, fica indignado e
julga-se ultrajado na sua dignidade pelo simples facto de não ter sido
reconhecido por um bispo.
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