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terça-feira, 8 de outubro de 2019

Análise do capítulo II de Sermão de Santo António aos Peixes

      No segundo capítulo, inicia-se a Exposição, com uma interrogação retórica que identifica o destinatário aparente do sermão (os peixes) e mostra algum desalento do pregador: “Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes?”. Nele, predominam a ironia e a alegoria, por exemplo quando Vieira afirma que se dirige aos peixes, quando, na realidade, quer visar os homens, nomeadamente os habitantes do Maranhão que não se deixam converter. A resposta a essa pergunta é profundamente irónica, ao afirmar que os peixes são o “pior auditório” (= os homens), precisamente porque são “gente (…) que se não há de converter”.
            Neste parágrafo ainda, inicia-se a Propositio (Proposição), que terminará em “E onde há bons, e maus, há que louvar e que repreender”.
            De seguida, enumera duas qualidades dos peixes em geral: ouvem e não falam, qualidades essas que contrastam com um defeito: não se convertem. Este primeiro parágrafo introduz a oposição entre os peixes e os homens (bons / maus ouvintes) e inicia a crítica ao comportamento destes últimos pela sua ausência de conversão. No entanto, essa insensibilidade à palavra de Deus é tão costumeira, tão habitual (“Mas esta dor é tão ordinária”), que o orador quase não a sente (“já pelo costume quase se não sente.”). Por isso, não falará “em Céu nem Inferno”, o que tornará menos triste o sermão, comparativamente aos que costuma pregar aos homens, facto que constitui nova ironia, pois os peixes são uma alegoria daqueles, como sabemos.
            Em suma:

            Em todo o lado, há bons e maus, tal como sucede com os peixes: os primeiros devem ser louvados e os segundos censurados, como afirmaram São Basílio [“Não há só que notar (…) e que repreender nos peixes, senão também que imitar, e louvar.”] e o próprio Jesus Cristo (“… diz que os pescadores recolheram os peixes bons, e lançaram fora os maus…”), que comparou a sua igreja a uma rede de pesca, da qual os pescadores recolhiam os peixes bons e lançavam fora os maus, o que leva Vieira a concluir que “há que louvar e que repreender”.
            Note-se que o orador trata os peixes como “irmãos” (apóstrofe), estabelecendo assim a ligação com os homens, que são, na verdade, o alvo do seu sermão, o seu auditório e quem ele pretende atingir.
            Daqui, o padre Vieira parte para a divisão/a estrutura/a apresentação do plano do sermão: no primeiro momento, procederá ao louvor das virtudes dos peixes (caps. II – em geral – e III – em particular) e, no segundo, procederá à repreensão dos seus vícios (caps. IV – em geral – e V – em particular): “Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios”. A alegoria é evidente: os peixes funcionam como metáfora dos homens e as suas virtudes são, por contraste, a metáfora dos vícios dos homens, enquanto os vícios dos peixes são, por semelhança, a metáfora dos vícios dos homens. Este é um método adotado pelo orador que possibilita que os ouvintes possam seguir melhor as suas palavras e o seu raciocínio.
            Em suma, tal como o sal apresenta duas propriedades, também o seu sermão se organizará em dois momentos:


            O terceiro parágrafo dá-nos a conhecer os louvores/as qualidades gerais dos peixes:

▪ foram as primeiras criaturas que Deus criou (“primeiro que as aves do ar, (…) aos animais da terra, e a vós primeiro que ao mesmo homem”);

▪ foram os primeiros animais a serem nomeados quando Deus atribuiu ao Homem o poder sobre todas as criaturas;

▪ são os animais mais numerosos e os maiores (“Entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores”).

            Como de costume, socorre-se das palavras de figuras (como Moisés) ou passagens bíblicas como argumentos de veracidade e autoridade. Por outro lado, no final do excerto critica os homens pela sua vaidade e adulação: “mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.”.
            O quarto parágrafo contém novo louvor dos peixes: são bons ouvintes e obedientes, atentos e devotos (“é aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António”.
            Em cada uma destas virtudes, lemos uma crítica aos homens por contraste, visto que se realça assim que elas estão ausentes neles.
            Esta virtude dos peixes é enunciada a partir da referência ao episódio vivido por Santo António em Arimino, cujos habitantes o perseguiram, descontentes com as suas críticas, e o quiseram expulsar da terra ou até matá-lo, o que o levou a mudar o local e o destinatário da pregação, dirigindo-se então ao mar e passando a pregar aos peixes. Vieira compara o comportamento dos homens com o dos peixes, pois, se estes não o escutavam e o perseguiram, os peixes acorreram à pregação e escutaram-na com grande obediência, ordem, quietação e atenção “o que não entendiam”. O contraste é evidente: “Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo…” / “… os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando em silêncio e com sinais de admiração e assenso…”; “… na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos…”.
            O comportamento de homens e peixes é tão díspar e contrário ao que seria de esperar que o padre Vieira conclui: “Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes: mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão…”. Ou seja, através deste quiasmo pretende destacar a forma como os animais se comportavam como se possuíssem razão (que Deus não lhes tinha dado) – ouvindo atentamente o pregador –, enquanto os homens, a quem tinha sido dado o entendimento racional, se comportavam como seres irracionais, perseguindo e maltratando Santo António: “Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras…”.
            Mais uma vez fica clara a relação de contraste entre seres humanos e peixes: a vaidade daqueles versus a modéstia destes; a atitude perante a pregação do santo: perseguição por parte dos primeiros versus a devoção por parte dos segundos; os racionais comportam-se como irracionais e vice-versa.
            É curioso o facto de Vieira se referir, neste parágrafo, simplesmente a «António», não explicitando com clareza que se trata do santo, o que permite ler esta passagem do capítulo como referindo-se a si próprio, em virtude das semelhanças existentes entre a situação vivida por Santo António em Itália e a que ele enfrentava no Brasil, salientando, assim, a incompreensão de que também é vítima.
            Algo semelhante sucedeu a Jonas, que foi miraculosamente salvo por uma baleia após ter sido atirado ao mar pelos homens. Viajando aquele num navio, durante uma tempestade foi atirado ao mar pelos homens, para ser comido pelos peixes. No entanto, uma baleia engoliu-o e conduziu-o até à cidade de Ninive para pregar aos habitantes locais (os assírios). Esta disparidade de atitudes leva o orador a interrogar-se: “É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?”. E, de imediato, através de uma apóstrofe conclui que os peixes são melhores que os homens. Em suma, “Os homens tiveram entranhas [= tiveram coragem] para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas (= sentido literal do nome) a Jonas para o levar vivo à terra.” (trocadilho). De novo, procura realçar-se “o contraste entre a brutalidade daqueles que deviam ter compaixão – os homens – e a compaixão daqueles que deviam revelar brutalidade – os animais.” (PINTO Alexandre Dias, Entre Nós e as Palavras 11, Santillana).
            O quinto parágrafo refere-se às “virtudes naturais e próprias dos peixes”, abrindo com a referência às palavras de Aristóteles (repita-se que estas citações servem para reforçar e credibilizar a argumentação do orador). A virtude agora mencionada é a liberdade e a indomesticabilidade dos peixes: “Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles entre todos os animais se não domam nem domesticam.”. Tal sucede porque vivem afastados dos homens, em retiro, arguta e sensatamente: “Peixes, quanto mais longe dos homens, tanto melhor…”. Vieira enumera, de forma gradativa, os animais que se domam ou domesticam, em contraste com os peixes:
Terrestres                                                            Do ar
. “o cão é tao doméstico”                           . “o papagaio nos fala”
. “o cavalo tão sujeito”                               . “o rouxinol nos canta”
. “o boi tão serviçal”                                    . “o açor nos ajuda e recreia”
. “o bugio tão amigo e lisonjeiro”             . “grandes aves de rapina (…)
. “até os leões e tigres (…) se                       recebem o sustento”
amansam”
Peixes
. “lá se vivem nos seus mares e rios”
. “lá se mergulham nos seus pegos”
. “lá se escondem nas suas grutas”
            Atente-se no uso do advérbio com valor temporal «lá», que traduz a distância que os peixes mantêm dos homens, e do determinante possessivo («seus», «suas»), que clarifica que o espaço onde habitam em harmonia não só é longínquo como lhes pertence.
            Por outro lado, a liberdade que caracteriza a existência dos peixes é contraposta ao cativeiro em que vivem os restantes animais:
. “Cante-lhe (…) o rouxinol”
. “diga-lhes ditos o papagaio”
. “vá com eles (…) o açor”
. “faça-lhe bofonerias o bugio”
. “contente-se o cão (…) roer o osso”
. “preze-se o boi (…) formoso e fidalgo”
. “glorie-se o cavalo mastigar freios dourados”
. “tigres e leões comem carne”
MAS
. “na sua gaiola”
. “na sua cadeia”
. “nas suas pioses”
. “no seu cepo”
. “levado (…) pela trela”
. “com o jugo sobre a cerviz puxando pelo arado e pelo carro”
. “debaixo da vara e espora”
. “presos e encerrados”

            Face ao exposto, prudentemente os peixes devem manter-se afastados dos homens, para evitarem o cativeiro. Se agissem de forma diferente, poderiam obter algumas vantagens, como comida, por exemplo, mas pagariam um preço elevado: o cativeiro.
            Este passo do sermão relaciona-se diretamente com o objetivo global da obra, que era a defesa dos índios do Maranhão, explorados e escravizados pelos colonos portugueses. Por analogia, pode concluir-se que também aqueles deveriam viver afastados dos segundos. Por outro lado, o padre Vieira, ao enumerar os vícios, pretende que os ouvintes tomem consciência deles e os corrijam. É a moralização dos costumes que o orador procura, em suma.
            De seguida, no sexto parágrafo, Vieira socorre-se de dois argumentos de autoridade para comprovar a sua pregação. O primeiro é a referência ao dilúvio, ao qual sobreviveram todos os peixes, ao contrário dos demais animais, cuja sobrevivência se restringiu a um casal de cada espécie. Além de todos terem escapado, os peixes “ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar.”. E por que razão não sofreram eles esse “universal castigo”? Porque eram os únicos animais que viviam afastados dos homens e, por consequência, dos seus pecados, daí não terem sido castigados, como o comprovam as palavras de S. Ambrósio. O dilúvio era, pois, “um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, (…) para que o mesmo mundo visse que da companhia dos homens que lhe viera todo o mal e que por isso os animais que viviam mais perto deles foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres.”.
            O outro argumento de autoridade prende-se com Santo António, o qual, para se aproximar de Deus, se afastou dos homens, abandonando a casa dos seus pais e recolhendo-se numa religião que professava a clausura, na medida em que a sua existência se encontrava contaminada pelo pecado. “E, porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado…”, abandonou Lisboa, depois Coimbra e, por fim, Portugal. Mas o santo não se ficou por aí, tendo também mudado o hábito, o nome, ocultado a sua sabedoria, até se ter isolado num ermo, de modo que “tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.”. Como afirmam Auxília Ramos e Zaida Braga (Sermão de Santo António aos Peixes. Porto Editora. 2010 – p. 29), “O capítulo termina com um novo apelo aos peixes para que sigam o exemplo de Santo António que tudo deixou, a sua cidade e até o seu país, alterando a sua própria identidade, o seu saber (“Para fugir e se esconder dos homens, mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando a sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota”). Esta atitude radical foi a forma que encontrou para se afastar da maldade dos homens e se encontrar com Deus, optando por uma vida solitária, afastado do convívio com os homens.

            Em suma, neste capítulo, o padre António Vieira enumera as virtudes gerais dos peixes:
▪ foram as primeiras criaturas que Deus criou;
▪ são os animais mais numerosos e os maiores;
▪ são bons ouvintes e obedientes;
▪ são livres e não se deixam domar nem domesticar;
▪ são sensatos e prudentes (“Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que se não fora natureza, era grande prudência”).

            Por outro lado, ao longo do capítulo, de forma implícita ou explícita, o padre Vieira aponta os vícios/defeitos dos homens:
▪ a vaidade e o deslumbramento face à adulação (“isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação”);
▪ a insolência e a presunção (“Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo”);
▪ a violência e a obstinação (“os homens tão furiosos e obstinados”);
▪ a crueldade irracional (“os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras”);
▪ o exibicionismo (“longe dos homens e fora dessas cortesanias”).

  
            Por outro lado, este capítulo do sermão mostra, com total clareza, a forma como o padre Vieira estrutura o seu discurso e, sistematicamente, o demonstra e comprova com argumentos. Observemos:

1.º argumento: a passagem da vida de Santo António, que decidiu pregar aos peixes, tendo os peixes ocorrido, obedientemente, a ouvir a palavra de Deus.

Peixes
. ouviram a palavra de Deus pela boca de Santo António
comportamento racional
Homens
. perseguiram Santo António porque este os criticava
comportamento irracional


2.º argumento: o exemplo de Jonas, que foi lançado ao mar de um barco, durante uma tempestade, pelos homens, e engolido por uma boleia, que o manteve vivo e conduziu até à praia.

Peixes
salvam

o peixe recolheu Jonas nas suas entranhas e salvou-o
Homens
matam

tiveram entranhas para atirar Jonas ao mar

3.º argumento (de autoridade): segundo Aristóteles, dentre todos os animais só os peixes “se não domam nem domesticam” e vivem em liberdade porque vivem afastados dos homens.

Animais da terra e do ar

vivem perto do homem, agradam, ajudam-no, mas amansados, presos
Peixes

vivem afastados, longe dos homens, e livres

4.º argumento: o episódio bíblico do dilúvio, a que unicamente os peixes sobreviveram na totalidade.

Outros animais
. salvaram-se dois de cada espécie
. sofreram o castigo divino por viverem perto do homem
Peixes
. salvaram-se todos
. foram poupados do castigo divino por viverem em retiro

Bibliografia:
. Andreia Sousa e Regina Carvalho, Sermão de Santo António (aos Peixes);
. Auxília Ramos e Zaida Braga, Sermão de Santo António aos Peixes;
. Francisco Martins, Para Compreender Padre António Vieira;
. Cidália Fernandes, Argumentar é fácil;
. Margarida Martins, Análise de Textos;
. Hernâni Cidade, Padre António Vieira;
. Margarida Vieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira;
. António José Saraiva, O Discurso Engenhoso – Estudos sobre Vieira.

sábado, 5 de outubro de 2019

Análise do Capítulo I do Sermão de Santo António aos Peixes


            O Exórdio consiste na exposição do plano a desenvolver e das ideias a defender, sendo constituído por cinco parágrafos, iniciando-se pelo conceito predicável e terminando com a invocação a Maria.
            O primeiro período do primeiro parágrafo, ou incipit, (que é constituído por dois períodos) começa com o conceito predicável (“Vos estis sal terrae”) e termina com uma interrogação retórica: “qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção?”. O padre Vieira não segue os cânones retóricos, visto que não começa propriamente pelo Exórdio. De facto, o sermão começa com Vieira informando os ouvintes, suportado na frase bíblica acima referida, da natureza do assunto que vai tratar.

                O conceito predicável (“Vos estis sal terrae” = Vós sois o sal da terra) é uma frase escrita em latim, retirada da Bíblia (mais concretamente do Evangelho de São Mateus), que funciona como a confirmação, através de textos da Escritura, do tema inicial. Chama-se, pois, conceito predicável ao texto bíblico que serve de tema e que irá ser desenvolvido de acordo com a intenção e o objetivo do autor. A sua decifração far-se-á a partir da leitura dos dois primeiros parágrafos.


            A alegoria que aqui se começa a desenhar está já presente no texto bíblico: os discípulos de Jesus Cristo são o sal da terra; a terra são os ouvintes.
            O efeito do sal é impedir a corrupção. É sobre e contra essa corrupção que Vieira quer falar, é a base da sua argumentação e há de demonstrá-la no decorrer do sermão, sobretudo quando passar em revista os defeitos dos peixes. Como veremos, os defeitos, em rigor, nem chegam a ser defeitos dos peixes, porque se trata da natureza dos mesmos. E o que é natural é natural. E há de confirmar a base da sua argumentação: de facto, realmente, os colonizadores, os colonos, possuem os defeitos que Vieira lhes criticará.
            O valor simbólico do sal aparece aqui associado ao poder regenerador e purificador da Palavra de Deus.
            Note-se, por outro lado, que o sal tem duas valências: impedir a corrupção dos alimentos (valência que surge em S. Mateus) e dar sabor, temperar os alimentos (São Lucas). No entanto, o padre Vieira faz uso apenas da primeira – a de impedir a corrupção –, pois era a que se adequava à natureza do assunto que vai desenvolver.
            A partir daqui, quando o auditório já conhece que «sal» é uma metáfora de doutrina ou mensagem evangélica, o jesuíta atribui novos significados aos termos «terra» e «corrupção»: “… mas quando a terra [isto é, a sociedade] se vê tão corrupta como está a nossa [a cidade de S. Luís do Maranhão], havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa dessa corrupção?”. O pronome possessivo «nossa» e o determinante demonstrativo «desta» não deixam dúvidas acerca do local onde existe a corrupção. Por outro lado, o vocábulo «corrupção» surge duas vezes, bem como o adjetivo «corrupta» (uma vez explícita, outra implicitamente). A alguém restarão ainda dúvidas sobre a temática em questão?

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Por gentileza, faleça!


A teorização do sermão (“Alegoria da Árvore”, in Sermão da Sexagésima)


Estrutura do sermão

            Conforme os preceitos retóricos clássicos, oriundos principalmente de Aristóteles, Quintiliano e Horácio, o discurso oratório devia apresentar determinada estrutura. Discrepantes, contudo, eram as opiniões acerca das partes que a integrariam, admitindo uma escala de variação entre duas a sete:

Método da oratória

            No Sermão da Sexagésima, o Padre António Vieira expôs o método que adotava na construção da sua oratória:
1. Definir a matéria;
2. Reparti-la;
3. Confirmá-la com a Escritura;
4. Confirmá-la com a Razão;
5. Amplificá-la, dando exemplos e respondendo às objeções, aos “argumentos contrários” (contra-argumentar);
6. Tirar uma conclusão e persuadir, exortar.


            Dito de forma mais simples:


O sermão no século XVII

            Durante o século XVII, o sermão foi o género literário predominante e a base da mais importante cerimónia social: a pregação.
            O púlpito constituía o último bastião da liberdade de expressão, nomeadamente durante os sessenta anos de domínio filipino em Portugal. De facto, nesse período apenas alguns sacerdotes se permitiam falar livremente, por exemplo, contra a opressão espanhola. Com a dominação filipina e consequente repressão de qualquer tipo de oposição, o púlpito tornou-se o local a partir do qual alguns padres podiam falar, criticar e acusar. Com a restauração e D. João IV, o púlpito serviu de tribuna para o comentário político e crítico ao Poder e à Sociedade; a pregação chegou a todas as classes sociais e foi ouvida por multidões que não sabiam ler.
            Por outro lado, enquanto discurso de caráter religioso, o sermão torna-se uma das armas fundamentais da Contrarreforma. Os seus traços mais significativos na época eram os seguintes:
▪ a dimensão teatral e espetacular da oratória religiosa (por exemplo, o púlpito da igreja de S. Roque, em Lisboa, configura um exemplo da importância deste elemento arquitetónico na igreja seiscentista);
▪ o púlpito constitui um palco e o pregador um ator (a oratória jesuíta ensinava ao futuro pregador, para além dos preceitos formais, como deveria dispor as pregas do hábito, os gestos que deveria fazer, o tom de voz a empregar, a linguagem fácil, etc.);
▪ o sermão tinha uma função lúdica, idêntica à das demais artes de palco da época, nomeadamente o teatro, a ópera, o ballet, os enterros, as procissões, as toradas ou os autos de fé);
▪ o seu ritual social torna-o, muitas vezes, numa prática que visa culpabilizar e admoestar os ouvintes, daí a necessidade do caráter de deleite intelectual, em que frequentemente se transformou;
▪ a associação de elementos e rituais inerentes à prática do sermão, como a luz e o incenso.
            De facto, embora já existisse há quase dois mil anos como forma de divulgação do Evangelho, ganhou preponderância em épocas de confusão doutrinal, como sucede no século XVII, no contexto da Contrarreforma, quando a Igreja se viu confrontada com a necessidade de recuperar para a fé aqueles que dela se tinham afastado e de consolidar a adesão espiritual de quem permanecera fiel a Roma. Deste modo, no Concílio de Trento elaborou-se um vasto programa de divulgação da doutrina cristã, baseado sobretudo na formação dos sacerdotes, na pregação e no ensino do catecismo. Os pregadores deveriam expor os vícios que deveriam evitar e as verdades que deveriam praticar, para poder escapar ao Inferno e alcançar a felicidade eterna.
            O sermão constituía, por isso, um grande acontecimento. Instalado no púlpito, diante da multidão expectante, o pregador desenvolvia as suas ideias num sermão de estrutura clássica: exórdio, exposição, confirmação e peroração.
            Frequentemente, o orador expunha antecipadamente o assunto do sermão e eventualmente a sua divisão em partes, de modo a facilitar a participação dos ouvintes. Por outro lado, como a confirmação poderia conter elementos (conceitos ou comparações de difícil compreensão, por exemplo) que dificultariam a compreensão e o acompanhamento do auditório, antecipar o assunto constituiria uma medida indispensável para a sua perceção e apreensão.
            O pregador teria até a esse momento atingido um duplo objetivo: expor alguns conceitos doutrinais (desempenhando assim a função didática que cada sermão deve ter), e aqueceu psicologicamente o ambiente, como convém antes de se dar início às considerações morais destinadas a comover os presentes e a fazer nascer neles o desejo de se emendarem. Nesta altura, ganha grande importância a técnica de evidenciar a enormidade dos bens e dos males mais ou menos deduzíveis do assunto exposto. Para alcançar o resultado desejado, o pregador, aumentando aos poucos o seu tom de voz, servir-se-á do arsenal retórico habitual – descrições, comparações, alegorias – e mesmo de alguns expedientes teatrais.
            A confirmação culminará com alguma consideração ou algum efeito reservado para o final devido ao seu grande poder emotivo. De seguida, o pregador, sem deixar que sesse clímax emotivo se extinga, prepara-se para a conclusão do sermão, que consiste em geral numa enumeração dos seus melhores argumentos, convenientemente ampliados.
            Os seus efeitos, porém, eram de curta duração, pois, passadas algumas semanas, a situação retornava ao mesmo.
            Nas palavras de Margarida Vieira Mendes (“Apresentação crítica”, in Sermões do Padre António Vieira), «O púlpito era um palco e o pregador um ator a tentar exibir do melhor modo possível a sua palavra, ajustando as modulações da sua voz aos efeitos visados junto do auditório. […] A pregação era um espetáculo, tanto quanto possível espetacular. […] Aliás, uma das tradicionais categorias de funções oratórias era o delectare (deleitar), para além do docere (ensinar) e do movere (mover ou influenciar o comportamento do ouvinte) e estava no espírito da Contrarreforma a captação e catequização das multidões não tanto pela razão, que se estava cada vez mais revelando perigosa para a religião de então, mas antes pela sensibilidade, pelo prazer, pelo puro gozo intelectual, e também pelo terror e piedade que moveriam (movere) os espectadores […].
            Para além dos temas religiosos, tratavam-se as questões sociais, políticas, económicas, literárias e militares. Daí que as qualidades do pregador fossem essenciais para o sucesso do sermão: a palavra fácil, a imagem sugestiva, a sonoridade da voz, o gesto teatral e arrebatado.
            Tudo isto se reflete na arquitetura dos templos barrocos, carregada de ornamentação, de imagens e palavras fulgurantes, lado a lado com os finos prazeres sensuais de aromas de incenso, música dos moletes, brilhos de luzes, faulhando de velas, refletidos de ouros, pratas, pedras preciosas, lhamas e brocados.

            Texto adaptado de:
. MORÁN, Manuel, e ANDRÉS-GALLEGO, José, 1995. “O Pregador”. In VILLARI, Rosario (Dir.), 1995. O Homem Barroco (tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo). Lisboa. Presença (pp. 117-142);
. MENDES, Margarida Vieira, 1992. “Apresentação crítica”. In Sermões do Padre António Vieira (apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de Margarida Vieira Mendes). 4.ª ed. Lisboa: Editorial Comunicação (pp. 15-17) (1.ª ed.: 1982).

Definição de «sermão»

            O sermão insere-se na arte de pregar, é uma forma de oratória, consistindo num discurso sagrado sobre alguma verdade da doutrina de Cristo, o que significa que se destina a ser proferido oralmente.
            O vocábulo sermão deriva, etimologicamente, do latim sermo, onis, que significa conversação. Posteriormente, sermão acabou por significar, por um lado, repreensão e, por outro, convencer, persuadir alguém a seguir determinado caminho moral ou religioso.


A oratória


            A oratória, ramo da argumentação, é a «arte de discursar em público, com o objetivo de persuadir o auditório».
            A oratória agrupa os autores que se empenharam, pela eficácia da palavra, em persuadir os outros da justiça e da verdade das suas causas. Há várias espécies de oratória:
- forense ou jurídica: defende os direitos civis dos cidadãos;
- política: incide sobre as deliberações referentes ao bem comum das sociedades;
- académica: versa temas culturais;
- sagrada: o orador fala em nome de Deus e proclama uma mensagem ligada aos valores divinos.
            De uma forma mais simplista, podemos dividir a oratória em dois grandes conjuntos: a profana, cujos maiores representantes foram Demóstenes (384-322 a.C.), na Grécia; Cícero (106-43 a.C.), em Roma; Almeida Garrett (1799-1854) e José Estêvão (1809-1862), em Portugal.
            No século XVII, a oratória adquire uma enorme importância sob a forma do sermão, perspetivado como arte de palco e a base da cerimónia social mais significativa: a pregação.
            Por outro lado, na segunda metade do século XVI e na primeira metade do século XVII, a música tornou-se muito importante no acompanhamento da mensagem sagrada. No século XVIII, a oratória musical fixou-se entre as grandes formas da história da música. São bem conhecidas as obras geniais de J. S. Bach (1685-1750), Haendel (1685-1759), Haydn (1732-1809) e Mozart (1765-1791).

            Uma regra que o orador deve ter em consideração é o bom conhecimento do auditório a quem se dirige. Quanto mais for esse conhecimento, maiores serão as possibilidades de êxito das ideias/teses que defende, daí a necessidade de um prévio estudo do perfil do destinatário. O orador tem que adequar a sua argumentação, a sua linguagem às características do seu auditório/destinatário.
            O método de pregação do Padre António Vieira, por exemplo, consiste na utilização de lugares-comuns facilmente reconhecíveis pelo seu auditório, que, seguindo as normas da época, desenvolvia a argumentação dos seus sermões recorrendo a “conceitos predicáveis”.
            Outra regra da argumentação é que não age sobre evidências, pois o que é evidente não necessita nem de demonstração nem de apresentação de argumentos a favor ou contra. A argumentação não pode ser a afirmação da verdade, porque todo o verdadeiro diálogo nunca esgota a possibilidade de investigação da verdade. A argumentação não pode partir do pressuposto de que uma conclusão retórica seja, por definição, a conquista de uma verdade universal. Argumentar é procurar coerência onde existe dúvida, é descortinar sentido num paradoxo, mas também pode ser dar sentido a uma absurdidade ou a uma contradição.
            A argumentação é sobretudo contestação.

domingo, 29 de setembro de 2019

A prosa de intervenção do Padre António Vieira


            O Padre António Vieira lutou, durante a sua vida, por três causas centrais que considerava justas:
– a luta contra a escravatura e pela integração dos cristãos-novos;
– a consolidação da recém recuperada independência;
– a utopia universal, corporizada no mito do Quinto Império.
            No entanto, a sua veia crítica abateu-se sobre outras questões:
-» a luta contra os colonos brasileiros, que procuravam recrutar entre os índios mão-de-obra escrava, oprimindo-os e escravizando-os (defendeu a política colonizadora da Companhia dos Jesuítas, daí a perseguição de que foi alvo por parte da Inquisição e a posterior prisão nos cárceres do Santo Ofício);
-» procurou desacreditar, em Roma e em toda a Europa, o Tribunal do Santo Ofício;
-» criticou a ordem dos Dominicanos e a Inquisição por viverem à custa da Religião, com os bens confiscados aos judeus e cristãos-novos que perseguiam, lançando-os nas prisões e nas fogueiras dos autos-de-fé;
-» denunciou os vícios da nobreza, que vivia na ociosidade e cuja riqueza era alcançada, com frequência, pela exploração dos pobres e dos escravos ou à custa de roubos e injustiças;
-» criticou os pregadores dominicanos, o cultivo de um estilo rebuscado, pretensioso e obscuro, ao gosto gongórico, o cultismo (ainda que caísse muitas vezes no exagero dos jogos verbais);
-» cria que a educação e a cultura poderiam corrigir a própria natureza (o índio primitivo poderia ascender pela cultura a um certo grau de espiritualidade).

            Em suma, o espírito conflituoso e lutador de Vieira bateu-se, durante toda a vida, pelos nobres ideais que o nortearam. Por eles lutou e sofreu grandes humilhações e perseguições às mãos da Inquisição, que o prendeu e proibiu de pregar.


O fracasso da tentativa holandesa


            A Holanda, estabelecida em Pernambuco, não abandona a ideia de conquistar a Baía, cuja capital – Salvador, que o era também do Estado Geral – era a chave natural de todo o Estado. E Nassau, o chefe escolhido pela Companhia das Índias Ocidentais para realizar a conquista, aliando brilhantes qualidades de chefe político a superiores virtudes de chefe militar, fundeia a 16 de abril de 1638, ao norte da cidade.
            Situação aflitiva. Salvador, com a sua guarnição reduzida a 1500 homens, a que se somavam os 1000 que o General Conde de Bagnuolo havia trazido do Recife, rechaçados pelo inimigo. Impossível qualquer socorro do Sul, porque, vigiando os mares e batendo as costas, por lá andava a esquadra de Lichthardt.
            Felizmente, nem aos sitiados faltou a coragem, nem aos sitiantes sobrou a perícia estratégica. Os combates realizaram-se fora da cidade, em trincheiras, uma das quais, junto da igreja de Santo António, foi a mais intensamente martelada. Os holandeses, apesar da superioridade numérica, não conseguiram, vencendo a resistência, entrar na cidade. E a táctica do seu general toda se reduziu a evitar aos seus homens passar de sitiantes a sitiados, preparando-lhes uma retirada sem aumento de perdas.
            Vieira comemorou em dois sermões o triunfo português. Fê-lo admiravelmente, numa estranha aliança de realismo e de profetismo, mas atento à verdade histórica. Lucidamente a via em todas as circunstâncias, mas, sobreposto a ela e adaptando-se-lhe sempre, o plano do transcendente bíblico, pelo qual tudo era explicado; porque entre o natural e o sobrenatural não vê ele apenas uma relação de semelhança, mas de causalidade, mais de uma vez os ligando como a profecia com a realidade em que se verifica. Ao seu realismo fantástico, não basta afirmar a assistência de Deus à defesa, pelos Portugueses, do Seu reinado na terra; é preciso que tudo seja circunstancialmente explicado por uma divina protecção antecipadamente inscrita na economia religiosa do Mundo, prefigurada frequentemente na história do povo hebreu.


O contexto de produção do Sermão de Santo António aos Peixes


            São Luís do Maranhão foi tomado aos franceses em 1615. O seu território estendia-se pelas duas margens do Amazonas, até às indefinidas fronteiras do Peru. O estado do Maranhão, independente do do Brasil, foi oficialmente criado em 1621. Integrava duas grandes capitanias-gerais: a do Pará, com sede em Belém do Pará, e a de São Luís do Maranhão, que era a capital de todo o estado.
            Ainda em 1662, depois da partida do Padre Vieira, apenas algumas centenas de portugueses, menos de um milhar, povoavam essa imensa região. Todos eles viviam do trabalho dos índios, em grandes fazendas auto-suficientes. Algumas produções, sobretudo o açúcar e o tabaco, constituíam o grosso das exportações para a metrópole, que, em troca, enviava artigos manufacturados. O tecido de algodão era a moeda corrente.
            Exploravam-se os índios como trabalhadores “livres” ou como escravos. No primeiro caso, eles dependiam das autoridades reais; no segundo, eram, na sua maior parte, propriedade privada dos colonos ou moradores. Geravam-se conflitos, por vezes sangrentos, entre os moradores e os funcionários do rei, já que ambos os campos pretendiam apoderar-se do maior número possível de índios. O rei devia arbitrar esses conflitos tendo em conta que o auxílio e a boa vontade dos índios eram indispensáveis à defesa da soberania portuguesa contra os holandeses, que continuavam a dominar ao norte do Brasil, e ainda à expansão em direcção ao Peru.
            Para esta tarefa, o rei contava com o precioso apoio das ordens religiosas. Depois de uma breve experiência dos jesuítas, em 1642 as missões são confiadas, em todo o território, aos franciscanos. Estes deparam, por volta de 1636, com o seu próprio fracasso, em boa parte devido ao facto de, não querendo ou não podendo explorar o trabalho dos índios, terem de se contentar com uma doação real que, além do mais, não lhes era entregue com a devida regularidade. Defrontavam, ainda, como adversários, alguns dos jesuítas que se tinham deixado ficar sob a direcção do Padre Luís Figueira.
            Depois do fracasso dos franciscanos, os jesuítas preparam uma grande investida missionária e obtêm, em 1643, a exclusividade das missões do Maranhão. Segue de Lisboa uma missão, dirigida pelo Padre Figueira, mas a maior parte dos seus elementos perecem num naufrágio na costa da ilha de Morajó.
            No que respeita ao estatuto jurídico dos índios em todo o Brasil, sucediam-se leis contraditórias, num movimento pendular, desde a de 1570, que havia proibido a escravidão dos índios. Mais recentemente, a lei de 30 de junho de 1607 estabelecera a igualdade de direitos entre os índios e os portugueses; mas uma outra, de 10 de setembro de 1611, estabelecera a escravatura dos índios feitos prisioneiros em guerra “justa”, assim como a dos índios encontrados em vias de serem mortos por outros índios (índios de corda), sendo o tempo desta última espécie de escravatura limitado a dez anos. Inspirada pelos jesuítas, a lei de 1609 punha todos os índios sob a administração e protecção dos padres. Em contrapartida, a de 1611 colocava as aldeias de índios “livres” sob o governo de administradores laicos, chamados capitães, que tinham o encargo de repartir pelos colonos a mão-de-obra índia. Tal era a lei quando o novo estado foi criado.
            A lei promulgada, regulando a liberdade dos índios e suas restrições, foi sofismada até sua quase completa inutilidade. O Padre Vieira, reconhecendo-a, ineficaz, enquanto não fosse evitada a intervenção civil na cristianização e civilização dos selvícolas, pela entrega do seu governo exclusivamente aos seus párocos, procurou obter a assinatura de todos os principais da cidade de S. Luís, afetos à Companhia, para uma representação a dirigir ao rei. Logo que os colonos tiveram do caso conhecimento, houve celeuma breve, e é em tal momento que a pugnacidade de Vieira atira do alto do púlpito, contra os inimigos da sua política indígena, os dardos tão brilhantes como percucientes desta sátira. A causticidade da ironia, a expressividade dos símbolos, o poder de observação no descritivo, com trechos de imperecível beleza clássica, o relevo, o brilho, a graça da linguagem, até a própria orgânica do sermão – primeiro a alegoria da vida colonial em conjunto, depois as várias alegorias representando em várias espécies de peixes os vários tipos de colonos mais susceptíveis de caricatura, tudo na peça é de novidade impressionante.
            Em suma, é dentro do contexto das lutas que opõem os jesuítas e os colonos, por causa da exploração desumana dos indígenas, que Vieira , defensor dos seus direitos e da abolição das leis que os tornavam cativos, profere este discurso. Tentou comunicar, por cartas, a D. João IV a situação que se vivia no Brasil, à qual se seguiram outras. Foi por não ver sucesso nesta sua empresa que embarcou para Lisboa a 14 de junho de 1654, para colocar o rei ao corrente de tudo. Aproveitando o facto de 13 de junho ser, no calendário litúrgico, o dia de Santo António, pronunciou o Sermão de Santo António aos Peixes, que deixou enraivecidos os colonos.
            Em Lisboa, após uma viagem atribulada, tentou alterar as leis, de forma a limitar o poder dos colonos sobre a exploração dos índios.
            Finalmente, em abril de 1655, conseguiu que fosse dada a «exclusividade da faina das missões» aos jesuítas. Daí que uma das temáticas do Sermão de Santo António seja a denúncia das atrocidades que os índios sofriam às mãos dos colonos portugueses. Toda a crítica assenta na utilização da alegoria, pois os símbolos simbolizam os vícios dos homens.


A Contrarreforma e o sermão

            A 31 de outubro de 1517, Lutero, «mestre em Filosofia» (1505) pela Universidade de Erfurt, monge agostiniano, professor de Filosofia, de Teologia e de Exegese bíblica, apresenta as 95 Teses na Universidade de Wittenberg sobre e contra a prática das indulgências. Dois anos depois, em junho, em Leipzig, propugna a autoridade individual (isto é, de cada indivíduo) na hermenêutica bíblica, destronizando a papal autoridade exclusiva nesta matéria. É um rombo na infalibilidade do Papa, da Igreja da Roma Católica. A 10 de dezembro, em Wittenberg, Lutero queima, em plena praça pública, a bula pela qual o papa Leão X o excomungou. Imediatamente, multiplicam-se os discípulos à sua volta, mesmo entre homens de Estado, dentro e fora da Alemanha. Na mesma orientação antipapal surgem outros mentores: Melanchthon, que se torna o chefe do Luteranismo depois da morte de Lutero em 1546, Zwingli, Calvino, Henrique VIII, etc. Este movimento não pára. É o movimento da Reforma Protestante. Assiste, assim, o século XVI a uma revolução religioso-cultural, que retira grande parte da Europa à obediência ao Papa romano. E, deste modo, nascem as Igrejas Protestantes.
            A teoria do livre-arbítrio, proposta por Lutero, é agora a autoridade basilar na exegese bíblica, os alicerces do pensamento católico ficaram abalados. Roma tem de reagir. E reage com a Contrarreforma, cujas finalidades principais se podem detectar no restabelecimento espiritual e na reconquista das almas e dos países que se tinham separado do papa. Não passe, porém, esquecido o seguinte facto: quando Lutero chegou, o estado espiritual de Roma já andava muito por baixo, bem longe da elevação exigida pelos fundamentos bíblicos.
            A Contrarreforma estabelece uma estratégia e uma prática: Paulo III reconstitui a Inquisição em 1542, visando com esta o ataque às pessoas e o Índex em 1543 na ofensiva às ideias.
            É necessário criar uma prática contra-reformadora mais incisiva. Urge defender e ensinar. A autêntica ofensiva resulta da convocação de um Concílio: Trento. Este, interrompido várias vezes por razões de ordem política e religiosa, dura de 1545 a 1563. Daqui Roma propõe aos seus fiéis o repensar da vida e da doutrina próprias, por meio da interpretação mais precisa da Tradição e das Escrituras. Fixa o cânone da Bíblia no primeiro Decretum da quarta sessão, de 8 de abril de 1546, ano da morte de Lutero. Fixa o texto bíblico (definitivamente só em 1592) em latim, de que a Vulgata de S. Gerónimo se tornou modelo e aí se prescreve o modo de interpretação das Escrituras, modo que não pode contrariar o sentido que Roma definiu, pois só a esta cabe o verdadeiro sentido e interpretação da Bíblia, em conta se devendo ter o unânime consenso dos padres da Igreja; é o segundo decreto da mesma sessão. Intensificam-se os instrumentos de luta recorrendo à confissão auricular, ao ensino e à pregação para reconquistar os reformados.
            O sermão é o instrumento mais directo de ensino da doutrina e da sua defesa. É o instrumento por excelência da cultura de massas. O púlpito transformou-se verdadeiramente no meio quase exclusivo de catequese e apologética. Proliferam os pregadores, como Filipe de Néri (1515-1595), Bernardino Ochino, fundador da ordem reformada dos Capuchinhos (1564). O sermão será o sismo do cisma da Reforma.
            São as Ordens religiosas que vão ter um papel importante neste combate à Reforma. Os jesuítas, pelo ensino nos seus Colégios de formação profunda e disciplinada e pela pregação, tornar-se-ão num sério e temível adversário dos Reformadores.
            Relativamente ao culto, o acento tónico é posto na exteriorização, no sensível; sentir a religião é o que a Contrarreforma quer do crente. Insiste-se no culto da presença real de Cristo, no da Virgem e dos Santos materializados numa proliferação maciça e universal de imagens, exactamente contra o que os reformadores apregoavam e praticavam na sua iconoclastia. O visível devia predominar no culto: eis a pompa das cerimónias concretizadas na arquitectura barroca das grandes proporções onde a luz penetra larga e abundantemente, onde a exuberância sensorial e/ou sensual e a riqueza de adornos decorativos, multiplicando-se, devem atestar a vitalidade e a jovialidade da religião. A Igreja de Jesus dos jesuítas, em Roma, serviu de modelo para a arquitectura e a pintura barrocas, a ponto de o estilo barroco ter sido designado de «estilo jesuíta». O grande barroco setentrional, Rubens (1577-1640), amigo dos jesuítas, ilustrou este estilo nas suas pinturas – em que o triunfo da religião, da fé e do papado são evidentes. De Bernini (1598-1680), fundador do barroco monumental e decorativo, afamado arquitecto, escultor e pintor ao serviço de Urbano VIII e de outros papas, ainda hoje podemos admirar o gosto e a realização de cenografias animadas e de efeitos monumentais, movimentados e imprevistos. Aqui, de facto, nasce a arte barroca, que se pode considerar a expressão artística essencial da Contrarreforma. Daqui, como as ideias de Trento, embarcou o barroco para os países católicos onde acabou por se impor renovando completamente os temas da iconografia religiosa e proporcionando um novo e grandioso desenvolvimento da arte sacra que, por sua vez, marcou a própria arte profana, bem visível por essa Europa fora. Uma curiosidade: a única vez que Bernini deixou Roma foi a pedido de Luís XIV e de Colbert para construir a fachada principal do Louvre, cujo projecto o monarca francês acabou por rejeitar, tendo, porém, Bernini esculpido o busto de Luís XIV (Museu de Versalhes). A arte profana, influenciada pelo barroco romano, também proliferou, dando lugar à chamada «arte de Corte» em que, à semelhança da papal, a pompa dos monarcas, o fausto dos príncipes, a grandiosidade dos nobres campearam. Era o absolutismo que se manifestava também no exterior, permitindo-nos verificar que, se a arte também expressar (a) verdade, então é a arte, em todas as suas manifestações, que mais verdade fala acerca da época em que o absolutismo triunfou. Ou seja, o barroco é um dado histórico tanto quanto o é artístico, em todas as suas formas realizadas.
            Dentro deste contexto, o sermão acabou por sobrevalorizar o delectare, isto é, o provocar o deleite quer no pregador quer nos ouvintes; assim, ficou prejudicado o docere, isto é, o ensinar a doutrina cristã. Contra esta pecha se insurgiu Vieira, nem sempre com êxito.
            A literatura traduziu com relevo o movimento, concedendo o primado à sensação e à emoção sobre a ideia que de todo não negligencia, evidenciando o gosto do patético violento, a embriaguez e o arrebatamento do espírito na livre criação das formas, recriando uma retórica expressiva, feita de imagens entusiasmantes de ênfase, de hipérboles, de anacolutos, de antíteses, de paradoxos, etc., e alimentada pelo jogo das palavras e dos conceitos. Mesmo que remotamente, o barroco literário foi fruto da Contrarreforma, considerada esta não tanto no seu aspecto fundamentalmente religioso, mas nas consequências prático-artísticas que estão implícitas e explicitadas na busca da manifestação formal, sensível e esplendorosa, que a arquitectura, como primeira, materializou em obediência ao imperativo do fausto que o papado lhe quis imprimir.

O século XVII em Portugal e o sermão

            A situação de instabilidade de um Portugal pós-Restauração (independente mas em crise, pressionado pela constante ameaça estrangeiro aos nossos domínios ultramarinos), e a defesa dos direitos humanos, nomeadamente dos índios do Brasil escravizados pelos colonos, bem como dos Cristãos-Novos perseguidos pela Inquisição, são preocupações a que Vieira se manteve sempre fiel até ao fim da sua vida.
            Ao assumir o poder, D. João IV teve de enfrentar um país moralmente exausto e financeiramente decadente em consequência da longa luta travada com Castela. A monarquia encontrava-se ameaçada e perigosamente vacilante, despojada como estava de órgãos de autoridade capazes de lhe garantir o poder absoluto.
            Os cofres estavam vazios, muito por culta do deslizamento das receitas portuguesas (representadas principalmente pelo ouro que nos vinha de África e pelas especiarias originárias do Oriente) das mãos trémulas de um Portugal periclitante, para as implacáveis presas da Holanda e da Inglaterra, que reclamavam a sua parte de leão.
            Mesmo as minas de ouro descobertas no Brasil, precisamente quando ocorreu a morte do Padre António Vieira, só viriam a servir para alimentar a pobreza moral, como o profetizara já o orador em 1656, no sermão proferido no Grão-Pará, intitulado Sobre as Verdadeiras e as Falsas Riquezas (Sermão da 1.ª Oitava da Páscoa). Em terras brasileiras, o trabalhador comum, possesso pela miragem do vil metal, viria a abandonar as terras, os bens, a família, para enveredar por atalhos, não poucas vezes do crime e da desonra, em demanda do ilusório pássaro azul que obstinadamente porfiava em alcançar. Na Metrópole, a nobreza passaria a dar largas a um fausto desenfreado e efémero, sem cuidar de produzir algo de útil para o bem comum ao utilizar o «maná» que jorrava então do Brasil.
            Recordemos que o século seguinte assistiu ao arrecadar de um milhão de libras esterlinas nos cofres da rapace Inglaterra, pago integralmente por Portugal com o ouro proveniente das minas do Brasil. Deste modo, mais uma vez se veio a verificar a lastimável negligência lusitana, que desprezou uma ocasião ímpar de valer à pátria debilitada.
            Na época de Vieira já Portugal se debatia em desesperada luta para reconverter a economia e caminhar lado a lado com os outros países europeus. estes manifestavam-lhe, porém, uma marcada indiferença, mas opunham-se á sua entrada nos tratados internacionais. Mero peão num jogo de interesses entre nações omnipotentes, Portugal erra arrastado numa torrente de ambições e encontrava-se preso nas malhas tecidas por potências interessadas em lucros rápidos e vantajosos. Por seu lado, a Santa Sé recusava-se teimosamente a reconhecê-lo como nação independente.
            A Restauração só poderia subsistir se fosse financiada pelos «homens de negócios» que orientavam em Portugal as grandes transacções. Foi, com efeito, sobre os recursos económicos dos Cristãos-Novos que o País se apoiou nas horas difíceis do recomeço mediante a isenção do confisco inquisitorial que lhes foi concedida pelo monarca a conselho de Vieira.
            A causa dos Cristãos-Novos advogada por Vieira, para além do incontestável carácter humanitário, do patriotismo e da solidariedade para com a Companhia de Jesus (a qual tomava partido contra a Inquisição, sua eterna rival), tinha também uma finalidade económica, pois visava mitigar a miséria nacional através dos largos proventos dos Hebreus. Contudo, a mentalidade tacanha dos opositores de Vieira, incapaz de assimilar a sede de Infinito do cosmopolita, habituado a vastos espaços e ideias), não se detinha na marcha do seu fanatismo impenitente para considerar um eventual interesse económico. Cuidava somente em velar pela defesa do sangue incorrupto, livre de qualquer contaminação dos hereges.
            Representando uma apreciável parcela da burguesia nacional e o principal suporte financeiro e mercantil da nação, os Cristãos-Novos desempenharam um papel decisivo no comércio externo e contribuíram para uma notável transformação na sociedade portuguesa. Supremo esteio de um Estado financeiramente dependente, este grupo social viu ser contra si movida uma feroz perseguição levada a efeito pelo Santo Ofício, mas instigada pela nobreza em dependência directa da Coroa.
            Foram-se, entretanto, implantando influentes comunidades de cristãos-novos portugueses em Amsterdão, Hamburgo, Ruão e Veneza, dando origem a uma verdadeira rede internacional de comércio. A repressão de que foram vítimas e, sobretudo, os processos diabólicos utilizados pela Inquisição, justificam a incansável defesa dos direitos desta raça segregada feita por Vieira.
            Era, pois, angustioso o clima que se vivia então em Portugal, tanto no aspecto económico, como político, como social. A Nação definhava em consequência das perdas sofridas. Os Holandeses haviam-se apoderado de cinco capitanias do nordeste brasileiro e para as suas mãos resvalara também Angola e São Tomé. Era urgente reconquistar esses territórios, mas impunha-se, igualmente, a celebração de uma aliança entre os dois países para esmagar Castela. Interessava a Portugal a influência da Holanda no xadrez político para a sua admissão no Tratado de Vestefália, pois tal equivaleria ao reconhecimento da independência por parte da Europa.
            Vieira chegou a Haia em abril de 1646, onde projetava negociar a paz com a Holanda através da entrega de Pernambuco. Contava o jesuíta, para realizar os seus planos, com o auxílio de judeus portugueses de Amsterdão. A Inquisição, porém, interveio e prendeu um importante cristão-novo que conduzia os negócios, lançando o descrédito sobre o enviado régio.
            A ideia de entregar Pernambuco aos Holandeses, de que Vieira parece ter sido um dos principais promotores, conheceu pertinaz oposição. Na opinião geral, o «Judas do Brasil» pecava, sobretudo, por falta de patriotismo. No entanto, como se depreende da leitura do «Papel Forte» por ele redigido, a velha raposa matreira ocultava, sob aparente capa de generosidade gratuita, a astuta decisão de se vir a reaver o que por ora se fingira dar de boa mente: «Desta maneira damos Pernambuco aos Holandeses, e não dado, senão vendido pelas conveniências da paz, senão a retro aberto, para a tornarmos a tomar com a mesma facilidade, quando nos virmos em melhor fortuna; que agora, é querer perder isto e o demais.»
            Por atitudes como esta, Vieira tem sido bastas vezes acusado de ter proposto soluções políticas nem sempre isentas de duplicidade; porém, há que considerar o próprio comportamento desleal dos outros países. A Holanda, por exemplo, com quem mantínhamos relações de paz na Europa, não se esquivava a atacar-nos no Brasil, enquanto que a Espanha estava secretamente ligada a essa nação que Vieira descrevia como pátria de anfíbios, composta de «peixe e homem».
            De outras missões diplomáticas se encarregou Vieira. A França foi ajustar o casamento da filha do Duque de Orleães, a vigorosa «Grande Demoiselle», com o jovem e frágil D. Teodósio, príncipe herdeiro. Não foi feliz nessa missão porque a ela se opôs tenazmente o cardeal Mazarino. Provocar em Nápoles um movimento de revolta contra os Castelhanos e promover o casamento de D. Teodósio com a filha de Filipe V eram os propósitos que animavam António Vieira na sua viagem a Itália em janeiro de 1650, numa empresa condenada uma vez mais ao fracasso. Não obstante, o seu espírito combativo não cessava de vibrar.
            Um dos eventos históricos que já vinha recrudescendo ao longo de toda a dominação filipina foi o Sebastianismo, forma de louca ânsia messiânica num rei justo e redentor de uma pátria mergulhada em letargia. As profecias do sapateiro de Trancoso, amálgama insipiente de citações bíblicas e de lendas populares, traduziam o anseio de liberdade e a esperança projectada num herói libertador. Ideal cristalizado na memória de um povo sedento de autonomia, a crença sebastianista no predestinado incitou os espíritos à luta pela independência nos anos sombrios da repressão castelhana. À semelhança dos seus contemporâneos, Vieira não se mostrou insensível ao apelo profético, que ia aliás tão ao encontro do seu marcado pendor, avivado por uma educação escolar propícia a cogitações visionárias. Do alto do púlpito, desafiando corajosamente os algozes da Inquisição, o jesuíta modela um Sebastianismo novo, ajustado ao contexto da Regeneração. É o mito judaico do Quinto Império transferido para o solo português, berço de um rei eleito de Deus que será o Imperador da Terra em serena aliança com o Pontífice de Roma, entidade centralizadora do poder espiritual.
            D. João IV torna-se o Messias que, após sessenta anos de humilhante subordinação a Castela, vem libertar o país e devolver-lhe o estatuto de nação escolhida para os desígnios do Eterno. O monarca é o novo Encoberto capaz de redimir o seu povo e conduzi-lo à Salvação. Resgatada a pátria, urge dilatar a Fé que há-de congregar em torno de si judeus e indígenas, sem distinção de raça ou credo, unidos na condição comum de filhos de Cristo e portadores da centelha divina. Mas o visionarismo em Vieira não se limita a uma mera atitude passiva; antes o conduz de imediato à acção a partir do momento em que deixa de combater o Sebastianismo para se empenhar com toda a fé na crença de um novo Encoberto. Sensível ao fascínio dos mistérios da Bíblia que procura explicar, Vieira consegue, no entanto, conservar intacta a sua atenção à realidade política e social, pronto a denunciar abusos e a condenar prepotências. No seu grito de revolta esconde-se a crítica enérgica a uma sociedade injusta e corrupta.


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