● Assunto: informações
sobre o que se passou depois do incêndio do palácio de Manuel de Sousa (estendem-se
até à cena 3).
● Assuntos abordados no
diálogo das personagens
▪ tempo
decorrido desde a mudança para o palácio de D. João: aproximadamente uma
semana;
▪ assuntos:
- a reação de D. Madalena ao incêndio, à destruição
do retrato do marido e à mudança de palácio: estado doentio de angústia e
sociedade (“Há oito dias que aqui estamos nesta casa, e é a primeira noite que
dorme com sossego.”);
- a alteração da perspetiva de Telmo sobre Manuel de
Sousa, considerando-o agora “um português às direitas”;
- a delicadeza da situação política provocada pelo
incêndio (“Meu nobre pai! (…) Passar os dias retirado nessa quinta tão triste d’além
do Alfeite, e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com
que perigo!”);
- a contemplação e o significado dos retratos;
- os pressentimentos (relativamente à identidade da
figura representada no terceiro retrato) e o sebastianismo de Maria (e de
Telmo);
- a forma enigmática como a cena termina revela que
Maria pressente a verdade, ou parte dela, relativamente à história de D. João
de Portugal (“Mas o outro, o outro… quem é este outro, Telmo? […] e aquela mão
que descansa na espada, como quem não tem outro arrimo, nem outro amor nesta
vida…”.
● Estrutura interna
▪ 1.ª parte – Reações das
personagens ao incêndio e à mudança de palácio.
• Maria de Noronha:
- determinada / autoritária: “E não teimes, Telmo,
que fiz tenção, e acabou-se!”;
- possuidora de grande sensibilidade e imaginação,
citando a propósito a Menina e Moça;
- filha desvelada, pois revela grande preocupação em
não acordar a mãe e procura animá-la, não a afligir, fingindo que não acredita
em agouros (no entanto, nunca teve tanta fé em «agouros» e «sinas»);
- admiradora entusiasta de feitos grandiosos e
espetaculares (ex.: a forma fascinada como recorda o incêndio);
- muito convicta numa desgraça iminente;
- ama e admira imenso o pai (por exemplo, considera
que o incêndio foi um gesto patriótico, por isso o admira tanto);
- curiosa, intuitiva e crente em profecias e
agouros: Maria sabia já que o retrato era de D. João, o primeiro marido de sua
mãe, dada a reação desta aquando da primeira entrada na sala onde se encontrava
pendurado;
- sebastianista e obcecada com o passado, características
evidenciadas na contemplação dos retratos, sobretudo o de D. João:
. culto de D. Sebastião e crença
nas lendas messiânicas sobre o seu retorno, apoiada pela presença do retrato
real, de que Maria realça pormenores significativos;
. culto de Camões, poeta-profeta “que
lia nos mistérios de Deus” e que “está no céu. Que o céu fez-se para os bons e
para os infelizes”;
- pressente a existência de uma relação entre a
figura de D. João e a sua mãe e o seu pai;
-reação aos retratos:
. fascínio pelo retrato de D. Sebastião,
por causa da sua crença no regresso do rei e dos valores que ele representa;
. fascínio pelo retrato de Camões,
cuja figura simboliza para ela o aventureiro, amigo de Telmo, autor de Os
Lusíadas, dedicados a D. Sebastião, a quem profetizou o cometimento de
grandes feitos;
. curiosidade pelo retrato de D.
João de Portugal, suscitada pelo comportamento da mãe na noite em que entraram
no palácio e nos dias seguintes.
• D. Madalena:
- aterrorizada, inquieta, doente, cheia de pesadelos
com o incêndio, sobretudo porque não foi possível salvar o retrato do marido,
em cuja destruição vê “um prognóstico fatal de outra perda maior (…) de alguma
desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar” de Manuel, isto é, de que
uma tragédia se abaterá sobre a família;
- por este motivo, aumentou a sua inquietação, de
tal forma que não conseguiu dormir nos primeiros oito dias de residência no
antigo palácio de D. João;
- liga o incêndio à perda do seu marido, de que a
destruição do retrato é prognóstico fatal;
- “perdida de susto”, grita quando, na primeira noite
de permanência no palácio de D. João, avista o retrato deste, fugindo depois e
arrastando Maria;
- mais calma após uma conversa com Frei Jorge.
Nesta cena,
há uma inversão de papéis entre mãe e filha relativamente aos presságios de
desgraça. De facto, no Ato I, D. Madalena, apesar de viver aterrorizada pelos
seus medos e pelos agouros de Telmo, procurava passar a ideia de que não
acreditava em presságios, para tranquilizar a filha. No entanto, no início deste
ato, os papéis invertem-se: o terror e o pânico de D. Madalena quando entra no
palácio de D. João impedem-na de manter a aparência de tranquilidade que
assumira perante a filha. Agora, é esta quem assume o papel de adulta,
fingindo não acreditar em crenças e agouros para tranquilizar a mãe.
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• Telmo Pais:
- aterrorizado com as palavras e agouros de Maria;
- o incêndio alterou a sua posição em relação a
Manuel de Sousa: antes, admitia as suas qualidades, mas não o admirava; agora,
admira-o, dado que este seu último ato se ficou a dever:
. ao seu patriotismo;
. à lealdade;
. à honradez;
antes, Telmo
reconhecia algumas qualidades em Manuel de Sousa, mas não o considerava seu
amo, porque, na sua opinião, ele usurpava o lugar que pertencia a D. João. Por
isso, Telmo atormentava continuamente D. Madalena com os seus agouros e
presságios, que apontavam para o regresso do seu primeiro marido, que voltaria
para castigar uma família que considerava ilegítima. Todavia, neste momento,
Telmo está aterrorizado com a hipótese de que algo aconteça que ponha em causa
a existência da família. Com efeito, o incêndio fá-lo mudar a sua opinião
relativamente a Manuel de Sousa: o escudeiro apercebe-se de que o segundo
marido de D. Madalena tem “alma de português velho”, ou seja, de que, à
semelhança do que acontecia com os portugueses das gerações anteriores, é um
homem patriota, honrado e corajoso, que abdica dos seus bens para mostrar a sua
revolta contra um governo que considera ilegítimo, por estar ao serviço de
Castela. Deste modo, Telmo mostra-se profundamente arrependido por não ter dado
anteriormente o devido valor a Manuel de Sousa;
- lastima não o ter estimado “sempre no que ele
valia”;
- evita revelar a Maria a quem pertence o retrato de
D. João, daí as suas hesitações e omissões (esta postura justifica-se, porque,
na cena 2 do Ato I, prometeu a D. Madalena não alimentar as crenças de Maria e
evitar que descobrisse informações sobre o passado);
- fica também fascinado diante do retrato de D. João
I.
▪ 2.ª
parte – Contemplação dos retratos, símbolos do sebastianismo e da obsessão
pelo passado das duas personagens em cena.
• Retrato
de D. Manuel (recordação de antes do incêndio no outro palácio):
“… ele estava tão gentil-homem, vestido de cavaleiro de Malta com a sua cruz
branca no peito…” (“Como ele era bonito, meu pai! Como lhe ficava bem o preto…
e aquela cruz tão alva em cima!”, I, 4 → preto e cruz
são sinais de luto e morte, respetivamente) → significado:
intuição do malogro do casamento dos pais.
• Retrato
de D. Sebastião → significado:
a grandeza de Portugal e a recusa de um presente de submissão; a intuição de
que D. Sebastião poderá regressar [aqui o rei é uma personagem dupla (D.
Sebastião – D. João), ou seja, a esperança da restauração da grandeza perdida
de Portugal; o sebastianismo de Maria traduz a crença intuitiva no regresso do
primeiro marido de D. Madalena, sua mãe]. Essa crença adensa a atmosfera trágica,
dado que, se o rei não morreu, D. João poderá ter conhecido o mesmo destino.
• Retrato
de D. João: “Aquele aspeto tão triste, aquela expressão de
melancolia tão profunda… aquelas barbas tão negras e cerradas…” → significado: intuição de que ninguém amara D. João,
nem mesmo a esposa, sua mãe. Maria mostra grande curiosidade e pressente que se
trata de alguém muito importante na vida da sua mãe.
• Retrato
(romântico e lendário) de Camões: o herói aventureiro, representante do ideal de poeta
e guerreiro; génio incompreendido e desprezado pelos «grandes» do seu tempo,
cantor da epopeia do povo português e da glória de D. Sebastião, a quem incita
ao combate contra os inimigos da Fé, amigo e companheiro de Telmo, “nessa terra
de prodígios e bizarrias”. Esta imagem coaduna-se com a do poeta romântico, que
era apresentado como um indivíduo em permanente conflito com uma sociedade que
não o valorizava.
Telmo afirma
tê-lo conhecido pessoalmente e critica os nobres que, tendo sido contados n’Os
Lusíadas, não souberam agradecer-lhe e reconhecer a obra, pois morreu na
miséria.
Por outro
lado, o retrato de Camões evidencia a ligação de D. João e de D. Sebastião a
uma época passada de glória, que foi cantada pelo poeta na sua epopeia e que
contrasta com o presente, em que Portugal perdeu a sua independência e se
encontra sob domínio castelhano.
• Didascália
final da cena: anuncia a chegada/entrada em cena de Manuel de
Sousa, que surge “embuçado com o chapéu”, isto é, disfarçado. Manuel de Sousa,
após o incêndio do próprio palácio, escondera-se e assim estivera nos últimos
oito dias, até que a fúria dos governadores se acalmasse. A afronta que o
incêndio constituíra faz com que tenha de regressar a casa disfarçada e de
forma oculta.
A partir de
uma fala de Telmo (“Já o estava, se ele quisesse dizer que o fogo tinha pegado
por acaso.”), ficamos a saber que Manuel, se tivesse mentido, dizendo que o
incêndio se ateara acidentalmente, poderia ser ilibado mais rapidamente, porém
essa atitude levaria a que o seu ato patriótico perdesse grandeza (“… era
desculpar com a vilania de uma mentira o generoso crime por que o perseguem”).
● Elementos trágicos
▪ A presença do fatum.
▪ Pathos de D.
Madalena:
- crença em
agouros/presságios:
. de D. Madalena: “… não lhe sai da
cabeça que a perda do retrato é prognóstico fatal de outra perda maior, que
está perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar de
meu pai”;
. de Maria:
- a referência à Menina e Moça, uma novela
sentimental trágica;
- “Creio, oh, se creio! Que são avisos que Deus nos
manda para nos preparar. E há… oh! há grande desgraça a cair sobre meu pai…
decerto! E sobre minha mãe também, que é o mesmo.”;
- “Mas tenho cá uma coisa que me diz que aquela
tristeza de minha mãe, aquele susto, aquele terror em que está, e que ela
disfarça com tanto trabalho na presença de meu pai (também a mim mo queria
incobrir, mas agora já não pode, coitada!), aquilo é pressentimento de desgraça
grande…”;
- reafirma, clara e enfaticamente, a sua crença de
que D. Sebastião (e, por extensão, D. João) não morreu.
▪ Hybris de Manuel de
Sousa:
- recusa o
perdão dos governadores;
- sofre presumível perseguição, mas prefere estar
escondido, naquele “homizio”, como diz Maria, naquela “quinta tão triste d’além
do Alfeite, e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com
que perigo”.
Observemos agora a hybris de Manuel de
Sousa em confronto com as outras personagens:
1.º) dá resolução favorável ao
conflito com Telmo: “Oh, minha querida filha, aquilo é que é um homem! A minha
vida, que ele queira, é sua. E a minha pena, toda a minha pena é que o não
conheci, que o não estimei sempre no que ele valia”. A «generosidade» de Manuel
de Sousa venceu os ressentimentos, a má vontade, os «ciúmes» de Telmo: antes
dos acontecimentos que encerram o Ato I, Telmo apreciava Manuel de Sousa,
tinha-o “em boa conta”. Porém, após ter assistido a esse gesto patriótico, a
sua consideração por ele disparou, de tal modo que se declara disposto a dar a
vida por ele;
2.º) o espetáculo do incêndio encheu
Maria de «maravilha»: “… um espetáculo como nunca vi outro de igual majestade…”,
embora dê razão à interpretação da mãe, de que a “perda do retrato é
prognóstico fatal de outra perda maior, que está perto, de alguma desgraça
inesperada, mas certa, que a tem de separar de meu pai”. E acentua, dolorosamente,
que “… há grande desgraça a cair sobre meu pai… decerto! E sobre minha mãe, que
é o mesmo”.
▪
Agón:
- de D. Madalena com D. João de Portugal na estranha
reação que teve ao chegar à nova (e antiga) morada, quando encarou o retrato de
D. João;
- de Telmo:
. com Maria nas evasivas, nas
meias-verdades, nas reticências, na relutância em revelar a identidade da
personagem no retrato;
. com Manuel de Sousa: o conflito
entre ambas as personagens já fora resolvido (I, 7, 8 e 12), facto que esta
cena confirma através da admiração que Telmo passou a nutrir por ele após o
incêndio do próprio palácio;
- de Maria:
. com Telmo, a propósito da identidade
da personagem do retrato:
1. por um lado, há as meias
verdades, as evasivas de Telmo, que a todo o transe pretende ocultar-lhe o nome
do cavaleiro retrato;
2. por outro lado, os indícios
observados por Maria, nos momentos que passou ali mesmo com a mãe, no dia da
mudança para este palácio; e a intuição do segredo e a persistência em a
manterem na ignorância daquele “mistério”: “Não sei para que são estes
mistérios; cuidam que eu hei de ser sempre criança”;
3. Maria insiste: “Mas o outro, o
outro…quem é este outro, Telmo? Aquele aspeto tão triste, aquela expressão de
melancolia tão profunda… aquelas barbas tão negras e cerradas… e aquela mão que
descansa na espada, como quem não tem outro arrimo, nem outro amor nesta vida.”
TELMO (deixando-se
surpreender) – “Pois tinha, oh! se tinha!” (Maria olha para Telmo, como
quem compreendeu, depois torna a fixar a vista no retrato).
Que é que Maria intuitivamente compreendeu?
Maria compreendeu nesse momento que (1) o
único ser que amou o primeiro marido de sua mãe foi Telmo,(2) a mãe nunca lhe
tivera amor, (3) a origem de todos os sofrimentos da mãe provinham dos remorsos
da sua consciência atormentada. Assim, quando alguém (Manuel de Sousa) identifica
a figura do retrato (II, 2), Maria não fica surpreendida: “Bem mo dizia o
coração!”;
. com D. João:
- fica a saber, pela atitude da mãe, que a figura
representada no retrato e de quem ignora a identidade, é esse alguém
causador de todos os sofrimentos;
- daí a curiosidade e a persistência das perguntas a
Telmo;
- até à revelação da identidade do retratado;
- contudo, ela já o sabia “de um saber cá de dentro”
(II, 2).
▪ Adensamento
do clima
trágico: D. Madalena aproxima-se do primeiro marido, não já apenas por via
psicológica – como sucedeu no Ato I –, mas em presença física, por vida real: é
obrigada a entrar e viver no palácio de D. João (a causa dessa aproximação é,
obviamente, o incêndio).
●
Linguagem
• Interjeições – exprimem diversos
sentimentos:
- “Coitada!”: traduz a compaixão de Maria pela mãe;
- “Oh!”: traduz o entusiasmo de Maria quando se
refere ao espetáculo do incêndio, e terror quando, por duas vezes, admite a
iminência duma “desgraça” que atingirá o pai e a mãe.
• Frases
exclamativas e interrogativas e as reticências favorecem o
ritmo entrecortado próprio de um discurso emotivo.
• Repetição
anafórica do demonstrativo, a enumeração e a gradação
ascendente (“Aquele palácio a arder, aquele povo a gritar, o rebate
dos sinos, aquela cena toda…”) e outras repetições de palavras traduzem
a hesitação da fala.
• Alternância
de frases
longas (referentes aos acontecimentos trágicos evocados) e de frases
curtas, que traduzem as emoções.
Estes elementos da linguagem são
próprios do pendor oralizante do discurso.
●
Relação entre as cenas 1 dos atos I e II
Entre a cena 1 do Ato I e a cena 1
do Ato II existe uma relação de semelhança.
De facto, no ato inicial, D.
Madalena cita versos de Os Lusíadas, concretamente do episódio de Inês
de castro, em consonância com o seu estado de espírito: sofrimento amoroso.
Já nesta cena do Ato II, Maria cita
o início de Menina e Moça, romance de Bernardim Ribeiro, em consonância
com o seu perfil psicológico: obra misteriosa e sentimental, como misteriosa e
sentimental é Maria.
●
Importância da cena no desenvolvimento da ação dramática
▪ Progressão
da ação: esta é a cena em que se faz o enquadramento da ação no novo ato, expondo
os antecedentes da mesma (acontecimentos ocorridos após o incêndio do palácio –
ida para o palácio de D. João de Portugal, “Há oito dias”, durante a noite;
reação de D. Madalena ao ser confrontada com o retrato de D. João; estado de
saúde/espírito de D. Madalena na última semana).
▪ Indícios
trágicos:
- presságios de D. Madalena e Maria devido à perda
do retrato de D. Manuel e ao destaque assumido pelo retrato de D. João;
- citação da obra Menina e Moça (novela trágica)
por Maria;
- referência à morte pressentida por Camões;
- doença de Maria;
- referências de D. Manuel de Sousa Coutinho à morte
e ao convento;
- referência à inexistência de Maria, caso D. João
de Portugal estivesse vivo.
●
Características românticas da cena
▪ O caráter histórico.
▪ A exaltação
dos valores patrióticos e da identidade nacional (a crença no Sebastianismo, a
alusão a Camões, a luta pela liberdade).
▪ A presença
dos agouros/superstições (de Telmo, Maria, D. Madalena).
▪ A dimensão
apaziguadora da fé cristã.