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quarta-feira, 7 de junho de 2023

Análise do poema "Pois que nada que dure ou que durando"


                 Esta ode de Ricardo Reis é composta por três quadras de versos decassilábicos (os três iniciais) e hexassilábicos (o quarto), com rima irregular: toante na primeira quadra (“durando” / “obramos”), consoante interpolada na segunda entre o primeiro e o quarto versos e cruzada entre o terceiro e o primeiro da seguinte (“presente” / “somente”); versos brancos ou soltos (vv. 1, 3, 4, 6, 10, 11 e 12).

                O tema da composição poética é a transitoriedade e a precariedade da vida, bem como o valor dos atos que nela são praticados. Tudo passa, nada dura, ou, se dura, é breve, e o valor do presente, que é hipotecado ao futuro, é igualmente precário. Será que o próprio instante, dado que pode ser o derradeiro daquilo que julgamos ser, é apenas nosso?

                A composição poética pode ser dividida em três momentos: a primeira quadra compreende a justificação daquilo que se afirma no segundo momento; na segunda quadra e na primeira frase da terceira, o sujeito poético defende a superioridade do momento presente em relação ao futuro, visto que este (“amanhã”) não existe, pelo que a procura (“cura”) do futuro é absurdo, já que priva o ser humano do bem presente; o terceiro momento (de “Meu somente…” até ao final) é constituído por uma interrogação retórica, por meio da qual se questiona se o instante presente será apenas seu, o que indicia que o ser humano não controla o seu destino.

                A mensagem do poema é clara: nada que o ser humano faz no mundo é duradouro, ou, sendo-o, não tem valor, e até as coisas que lhe são úteis rapidamente ele perde, por isso deve preferir o prazer do momento presente à procura insensata do futuro, pois este exige o mal do presente em troca do seu bem. Mas surge a dúvida: será esse momento apenas do ser humano? Será o indivíduo apenas quem existe nesse instante que pode ser o último daquele que finge ser? Atente-se na referência ao fingimento, uma temática tão do agrado de Pessoa ortónimo, por exemplo, em “Autopsicografia” e “Isto”.

                A musicalidade do poema assenta na aliteração (em /t/: “existe / Neste instante” e /d/: “pode o derradeiro”) e no jogo das homónimas «ser» (“… que pode o derradeiro / Ser de quem finjo ser?”). Além disso, o encavalgamento ou transporte percorre, praticamente, todo o poema.

                No que diz respeito às formas verbais, predominam as que se encontram no presente do indicativo, sugerindo a ideia de continuidade, e no presente do conjuntivo, remetendo para o campo da possibilidade (“Pois que nada dure ou que durando / Valha…”) ou exprimindo um desejo (“O prazer do momento anteponhamos”). Por outro lado, nas duas primeiras quadras, é usada a primeira pessoa do plural, enquanto na última ocorre a primeira do singular, o que confere à interrogação final um acentuado grau de subjetividade, com a focalização no «eu» daquilo que, anteriormente, tinha sido enunciado como próprio do coletivo, do ser humano em geral. Por seu turno, a reiteração do vocábulo «cedo» (verso 4) realça a ideia de efemeridade da vida.

                É curioso notar que, na prática, o poema é constituído somente por três frases: uma inicial de tipo declarativo, que abrange as duas primeiras quadras; uma segunda, igualmente declarativa, mas bastante mais curta (“Amanhã não existe”), e uma terceira, de tipo interrogativo, que finaliza o poema.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Amor de Perdição - Introdução, Capítulos I e X


O acidente do Pai Natal

Jacques Parnel
 

Análise do poema "Quando, Lídia, vier o nosso outono", de Ricardo Reis


Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
                      Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa –
O amarelo atual que as folhas vivem
                      E as torna diferentes
 
                Esta ode surgiu na revista Presença em 16 de março de 1930.

                Ao gosto horaciano, Ricardo Reis usa o plural «nosso» e o vocativo para se dirigir a uma interlocutora presente em vários dos seus poemas, a sua amada Lídia. O outono que se aproxima, com tudo o que transporta já de inverno, e esquecido já do verão, indicia o acentuar da decadência e a proximidade da morte, em decorrência da passagem inexorável do tempo.

                Deste modo, o amarelecer das folhas tem ainda o tom dourado da vida; já é já o estio, mas também não é ainda o inverno, a morte. Neste contexto, é preciso aproveitar cada momento (carpe diem), mesmo que seja o último. O outono simboliza a decadência, a velhice; o inverno, a morte, e a primavera, o recomeço ou a renovação. Como esta última já passou, logo não lhe pertence (“… é de outrem” – v. 4), e o inverno (a morte) se aproxima, o sujeito poético assume que é necessário que tanto ele como a sua amada reservem “um pensamento (…) para o que fica do que passa – o amarelo atual”. É visível aqui o autodomínio, a contenção, o contentamento com o prazer relativo tão característicos da poesia de Ricardo Reis.

                No fundo, a mensagem do poema pode resumir-se a uma única frase: é preciso usufruir de cada momento que passa, sem lamentar o passado e sem se inquietar com o futuro. A transmissão desta mensagem é feita através de uma linguagem sóbria e um discurso lógico, no qual o pensamento prevalece sobre a forma, e assenta na simbologia das estações do ano e no predomínio do verso decassílabo (apenas os quarto e oitavo versos são hexassílabos), bem como no encavalgamento e no uso cuidado da pontuação, nomeadamente da vírgula e do travessão.

domingo, 4 de junho de 2023

Benfica é campeão de hóquei feminino pela décima vez consecutiva


Análise do poema "Segredo", de Miguel Torga


                 Este poema, da autoria de Miguel Torga, é constituído por duas estrofes – uma quintilha e uma oitava –, de métrica irregular e com rima emparelhada, cruzada e interpolada, segundo o esquema ABAAB / CDDCEEDC.

                Começando a análise pelo título, o nome «segredo» remete para algo que não é divulgado, que é do conhecimento de apenas um ou poucos indivíduos. No caso do poema, o segredo em questão é aquilo que a personagem – presumivelmente uma criança – guarda só para si, que apenas ela conhece: a descoberta de um ninho com um ovo dentro, do qual nascerá um passarinho de quem pretende ser amigo.

                É exatamente isso que anuncia o primeiro verso: “Sei um ninho.” O menino «descobriu» um ninho, conhece (“Sei”) – atenta-se na diferença entre «sei um ninho» e «sei de um ninho» – a sua localização, e essa informação é exclusiva dele. Os versos seguintes expandem a informação relativa a esse segredo: o ninho contém um ovo, redondinho (o diminutivo sugere a sua beleza e a perfeição), que, por sua vez, encerra dentro de si um passarinho (de novo o recurso ao diminutivo afetivo).

                O que torna o ninho tão importante para o sujeito lírico é precisamente o facto de conter um ovo com uma ave no seu interior. É essa expectativa de uma nova vida que está prestes a nascer que o entusiasma e desperta em si sentimentos de carinho, de ternura, de afetividade, indiciados – repita-se – pelo uso do diminutivo («redondinho», «passarinho»).

                A segunda estrofe mostra-nos a determinação do «eu» em, «egoisticamente», guardar o segredo só para si, mesmo que alguém, aparentemente, insista com ele para o revelar: “Mas escusam de me atentar: / Nem o tiro, nem o ensino”. Assim sendo, vai resistir à pressão para desvendar aos outros o seu segredo e tirar o ninho, ou seja, resistindo à tentação de retirar o ninho do local onde se encontra e de revelar a sua localização. De seguida, esclarece os motivos que estão na base dessa sua decisão. De facto, afirma querer ser «um bom menino», isto é, deseja agir corretamente, não revelando o ninho e a sua localização, para o proteger, porque receia que os «outros» lhe façam mal, lhe mexam, o perturbem, e quer ser amigo do passarinho que vai nascer. É fácil imaginar que, se o «eu» revelasse o seu segredo, todos a quem o revelasse seriam picados pela curiosidade de acorrer ao local e «perturbar« o ninho e a avezinha quando esta nascesse. Por outro lado, o passarinho deixaria de ser o seu amigo em exclusivo.

                Os dois últimos versos remetem para a liberdade: a avezinha voará pelos céus, espaço amplo, infindável e sem portões, limites, barreiras, e aí poderá fazer o pino, exatamente porque será livre para fazer o que quiser, incluindo virar-se de pernas para o ar.

                Este poema relaciona-se com outro texto da autoria de Miguel Torga, concretamente o conto “Jesus”: o assunto é o mesmo, isto é, a revelação de uma descoberta por parte de um menino – um ninho – e a sua atitude de respeito para com o ovo que contém e a avezinha que irá nascer.

                O conto narra a história de um menino que subiu a um enorme cedro e descobriu nela um ninho que tinha um ovo. De seguida, deu um beijo no ovo, que, de imediato, estalou e do seu interior saiu um passarinho. Este texto viu a luz do dia em 1940. Quinze anos depois, em 1955, nasceu Clara Crabbé Rocha, filha de Miguel Torga, que escreveu o poema “Segredo”, lembrando-se do conto: o primeiro verso (“Sei um ninho.”) é uma repetição exata da frase que o menino do conto solta durante a ceia com os pais.

                Ora, o ninho do poema, numa leitura biográfica, é o lar do escritor, e o ovo com o seu passarinho é a nova vida que nele existe: a filha. O ovo é redondinho, como a barriga de uma mulher em adiantado estado de gravidez. E, nos primeiros anos de vida, os pais são os melhores amigos dos seus filhos, aqueles a quem estes confidenciam os seus segredos e sonhos. Este pai, por sua vez, deseja a criar a sua filha em liberdade, fornecendo-lhe asas que lhe permitam voar e fazer o pino no ar.

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