O capítulo volta a Piedade, aos seus lamentos e aflições pela ausência do marido, que a levam a partir em sua busca. Mas encontra Rita e o contraste entre ambas é evidente e acabam por lutar. Esta luta de mulheres acaba por se transformar numa luta de facções: os portugueses, que apoiam Piedade, e os brasileiros, que estão do lado de Rita Baiana. Mas a luta é interrompida por um novo acontecimento: a chegada dos habitantes do "Cabeça-de-Gato" para vingarem a morte de Firmo.
domingo, 15 de dezembro de 2024
Análise do capítulo XV de O Cortiço
Referência a Florinda, que apenas procura um homem que trate bem dela, que lhe dê comida e vestuário. Quando tal não acontece, muda de homem. Temos a enumeração de factos com um certo grau de sordidez e repugnância.
Mas o fundamental do capítulo é a vingança encetada por Jerónimo. Firmo é morto e, então, nada já impede a relação de Jerónimo e Rita, que reconhecem o amor e a paixão que os juntava.
A indicação do caráter da personagem era mais subtil no Realismo, ao contrário do que aqui acontece, onde temos a explicação e apresentação do que provocou a mudança do caráter de ambos. Morto Firmo, unem-se como se estivessem cumprindo um destino; a união é um condicionamento da raça e o clima. O sujeito da mudança é Rita, símbolo dessa raça e desse clima. A relação que se vem a verificar entre ambos ainda é aquela que menos foge à normalidade, ao contrário, por exemplo, da de Pombinha e Léonie.
O que leva também Rita a aproximar-se de Jerónimo é a procura de uma raça superior: "... e Rita preferiu no europeu o macho da raça superior."
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Análise do capítulo XIV de O Cortiço
A relação de Rita e Firmo começa a desmoronar-se e ele apercebe-se disso. O fim tem o auge quando Rita não comparece a um encontro marcado por ambos. Isto acontece precisamente no dia em que Jerónimo deixa o hospital e a sua principal ambição é vingar-se de Firmo, conseguindo ao mesmo tempo afastá-lo de Rita, o que favorece a sua aproximação.
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Análise do capítulo XIII de O Cortiço
Temos a descrição da evolução do cortiço e o aparecimento de um outro, o "Cabeça-de-Gato", estabelecendo-se entre ambos uma grande rivalidade.
O afastamento de Rita e Firmo acentua-se, pois, enquanto ela mora no cortiço de J. Romão, ele mudara-se para o cortiço inimigo.
Porém, o capítulo centra-se nas transformações operadas em João Romão, ao nível do vestuário, dos hábitos e costumes. Mas a modificação é apenas física e exterior; interiormente continua na mesma. Miranda começa a aceitar Romão e o fosse entre este e Bertoleza acentua-se cada vez mais.
Começa a ganhar relevo a figura de Botelho, personagem muito prática, que vai incrementar o casamento de J. Romão com a filha de Miranda, que não é mais que um negócio.
Romão é convidado para a casa de Miranda. Fica a ideia de que a sociedade é apenas exterior. A família de Miranda e Romão apenas são diferentes em termos exteriores.
Bertoleza começa a ser sentida como um obstáculo para os objetivos ambiciosos de J. Romão.
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Análise do capítulo XII de O Cortiço
Também em relação a Pombinha se confirma a hipótese da influência do meio sobre as personagens, tal como já acontecera em relação a Jerónimo e a João Romão.
Algo vai distinguir Pombinha das outras personagens do cortiço: alcança um grande grau de consciência do que a rodeia e dos seus sentimentos. A mudança é visível a nível físico, mas subtil a nível psicológico e tem como causas a relação com Léonie e o ciclo menstrual, que lhe dá uma nova visão das coisas, e ainda a carta de Bruno para a mulher Leocádia. Apercebe-se da relação entre homem e mulher e tem uma visão irónica e cínica. Isto revela uma certa superioridade e acaba por ser vítima da sua própria inteligência. Prova-se a tese proposta: influência da raça, meio e momento na personalidade. O homem não tem capacidade de resistir ao condicionamento causado pelos três fatores apontados.
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Análise do capítulo XI de O Cortiço
Denuncia-se o autor do incêndio: a bruxa. É importante referir o processo de construção da forma e estrutura do romance: por exemplo, acerca do fogo já nos tinham sido dados indícios nos capítulos interiores (cap. X, por exemplo, na conversa entre a bruxa e Marciana). Criam-se expectativas que depois se realizam. Isto dá orientação e organicidade à narrativa.
Este processo marca uma diferença em relação à literatura anterior: há uma maior preocupação pela forma e pela estrutura: os indícios obrigam a que a narrativa se oriente num certo sentido.
Na romagem que fazem à polícia, mais uma vez se evidencia o comportamento de grupo, o espírito coletivo, que se levanta em coro para dar uma resposta na delegacia.
Mas, neste capítulo, há outros aspetos importantes: Rita rendera-se à atitude atenciosa de Jerónimo, o que provoca cada vez mais a aproximação entre ambos.
Referência ainda à contínua evolução de João Romão e seu progressivo afastamento de Bertoleza.
Mas por um maior processo de evolução passa Pombinha. Temos o recurso à analepse para explicar o porquê dessa evolução. Mais uma vez, temos o anúncio de expectativas que se vão concretizar.
Durante o jantar oferecido por Léonie a D. Isabel e Pombinha, verifica-se que D. Isabel aceita tudo o que vem da prostituta, o que a aproxima do resto do cortiço. Pombinha vai passar uma experiência que vai ter nela importantes repercussões: a homossexualidade, que é uma prática pouco aceite na época.
A descrição de A. A. é nua e crua: dá conta de todas as reações do corpo aos sentidos e fica uma ideia de animalidade e bestialidade. Pombinha aceita, mas fica cheia de pudor e vergonha. Daí a sua necessidade de ficar só.
O final do capítulo pauta-se por uma certa individualidade em relação a Pombinha, o que só acontece com as personagens principais e contrasta com a ideia de grupo que fica do resto da obra. O que ela sente é ambíguo: sente arrependimento, mas também surpresa face ao prazer que é possível sentir. O sonho aparece mais como uma alegoria do prazer de ser possuída. Há uma sobreposição do plano onírico e do plano físico. Isto vai provocar grandes transformações em Pombinha, que vão continuar no capítulo seguinte.
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Análise da cantiga "Ansur Moniz, mui’houve gram pesar", de Afonso X
Esta
cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Afonso X, constituída
por três sétimas de rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABBACCB,
satiriza Ansur Moniz, numa chufa em que, ironicamente, defende este cavaleiro
que tinha tido problemas com os seus porteiros. O indivíduo é apresentado como
um fidalgo rural de pouco importância que aspirava a ser um grande senhor, uma personagem
desconhecida, talvez a mesma que aparece em duas cantigas de Vasco Peres
Pardal, daí a queixa por os porteiros o terem incluído no grudo dos escudeiros,
de baixa condição social.
No
verso inicial, o sujeito poético expressa o seu grande pesar (obviamente
irónico) por os porteiros (o porteiro era uma figura importante nas cortes medievais
– reais e senhoriais –, visto que era a si que competia fazer a triagem dos
visitantes e indicar-lhes o lugar) terem colocado Ansur Moniz, de forma vil ou
como um vilão (“vilanamente” – advérbio de modo), entre os escudeiros. O
advérbio enfatiza o modo desonroso como o alvo da sátira foi tratado. Ansur
Moniz é uma personagem desconhecida que, de acordo com o texto, possuía
pretensões de grande senhor (tratar-se-á talvez do mesmo que surge em duas
cantigas de Vasco Pardal), havendo que interpretar a queixa por os porteiros o
incluírem no grupo dos escudeiros, de baixa categoria social. Em sinal de
discordância, o «eu» lírico censura-os (atente-se na fórmula exclamativa de
jura “Per boa fé”), condenando o tratamento dedicado a Ansur Moniz, pois este
provém “dos de Vilan’Ansur de Ferreiros”. Note-se que este topónimo se refere a
um lugar situado na província de Burgos: Villasur de Herreros. Por outro lado,
o trovador faz nestes versos um jogo com o nome do fidalgo (vilão Ansur), bem
como com o topónimo, algo em torno de “vilão ao sul de Ferreiros”. Neste
sentido, podemos interpretar a fala do sujeito poético, ao referir-se às
origens de Moniz, como significando que ele provém de uma linhagem mais
humilde.
Na segunda
estrofe, o trovador continua a detalhar a ascendência de Ansur Moniz, referindo
que também descende dos “d’Escobar” e de Campos, mas não dos de Cizneiros.
Estes três topónimos pertencerão, provavelmente, ao mesmo território, isto é,
Escobar referir-se-ia a Escobar de Campos, concelho da atual província de Leão,
ao passo que Cizneiros será Cisneros, um concelho localizado no centro-sul da
província de Palência; finalmente, Campos fará referência ao anteriormente
citado Escobar de Campos ou, também, Terra de Campos, uma extensa comarca que
se estende pelas províncias espanholas de Leão, Zamora, Valladolid e Palência.
Ou seja, Ansur Moniz descende da família de Vilanansur, Escobar e Campos,
<apelidos brasonados importantes, menos que os de Cisneros, que contrastam
com a humilde procedência de lavradores e carvoeiros, profissões baixas na escala
social. De facto, o alvo da sátira parece proceder de lavradores e carvoeiros.
O facto de estes dois vocábulos surgirem maiusculados parece sugerir que se
trataria também de eventuais formas onomásticas, o que vai contra a lógica
discursiva da cantiga.
Outro
ramo da família é os “d’Estepar”, um município da província de Burgos, na mesma
comarca que Vilanansur de Ferreiros, em Castela-Leão, bem como “d’Azeved”,
provavelmente a atual Acebedo, em Leão, não obstante haver estudiosos que a associem
a uma povoação localizada perto de Caminha. É possível ainda que haja aqui um
equívoco com o azevém, uma planta para forragens. É aí que estão sepultados os
seus pais (“u jaz su padr’e sa madr’outro tal”) e repousarão, no futuro, ele
próprio e os seus filhos (“e jará el e todos seus herdeiros.”).
Ao longo
da sua vida, Ansur Moniz tomou iniciativas destinadas a melhorar a sua posição,
indiciando a sua preocupação e a sua demanda de prosperidade e reconhecimento,
tendo ganhado mais do que os seus antepassados (“er foi el gaanhar / [mui] mais
ca os seus avoos primeiros”), superando o estatuto desses seus familiares em
termos de posses e riqueza. Os versos 17 e seguintes são de muito difícil
leitura. Aparentemente, Ansur Moniz comprou foices, terra e trabalhadores e
ainda a povoação de Vilar de Paos para o seu sustento (provavelmente,
tratar-se-á da antiga Villar de Palos – atualmente, Villadepalos – , povoação
do concelho de Carracedelo, também em Leão, que surge citada num censo
populacional do século XVI). Outra leitura desses versos sugere que Ansar Moniz
teria comprado foice, estrume, cabreiros e Vilar de Rates (campo com buracos de
toupeira), para o seu sustento. No entanto, perante a inexistência de um
topónimo igual ou similar a Vilar de Paes (ou Vilar de Raes) devemos supor a
existência de um erro de transmissão. Prosseguindo a leitura inicial, as aquisições
da propriedade “pera seu corp’” significam que o fez para seu uso e benefício
pessoais, pois não está no seu feitio ser e viver pobre. De acordo com outra
interpretação, a expressão “e diz ca nom lh’em cal” significa “que não se
importa”, o que, neste caso, quererá dizer que Ansur Moniz diz que não se
importa de viver pobre. Nos dois últimos versos, encontramos a conclusão: a quem
falha consigo mesmo falham-lhe os companheiros, ou seja, quem não se cuida
deixa de ter amigos.
De acordo
com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, a ironia desta cantiga reside na utilização
de nomes comuns e socialmente marcados na enumeração da sua linhagem e
propriedades. Na esteira da Farsa dos Almocreves, de Gil Vicente, ou do Lazarilho
de Tormes, estamos perante um daqueles casos de um fidalgo pobre que de
tudo é capaz, incluindo passar fome, para salvar as aparências.
sábado, 14 de dezembro de 2024
Análise da cantiga "Abadessa, Nostro Senhor", de Gonçalo Anes do Vinhal
Esta
cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), constituída por
quatro sétimas e uma finda (estrofe final que remata uma cantiga, formada por
um, dois ou três, raramente quatro), satiriza uma abadessa, em forma de
agradecimento pela forma generosa como foi acolhido no mosteiro (a todos os
níveis, incluindo o sexual).
De
facto, o trovador dirige-se ao seu interlocutor – uma abadessa desconhecida –
para lhe agradecer por o ter recebido no mosteiro e pelo bom tratamento que lhe
dedicou, incluindo o sexual: “Abadessa, Nostro Senhor / vos gradesca, se lhi
prouguer, / porque vos nembrastes de mi”. Pelos versos transcritos, percebe-se
que ele deseja que Deus agradeça à mulher por esta o ter acolhido quando chegou
ao mosteiro em busca de um abrigo: “u cheguei a vosso logar, / que tam bem
mandastes pensar / i do vosso comendador!”. O último verso da primeira estrofe
identifica o sujeito poético como “comendador”. Relativamente à sua identidade,
o Projeto Littera apresenta três leituras possíveis: esse comendador seria o próprio
trovador (o “herdeiro” desse mosteiro) e a mudança de sujeito, no final de cada
estrofe, constituiria uma maneira irónica de afirmar que o tratamento a que
tinha direito teria deixado a desejar; a segunda hipótese apontaria para o
comendador ser outra pessoa, que recebe todos os favores, enquanto o viajante
cansado fica à porta (qual Castelhano, no Auto da Índia, esperando, nos
quintais da Ama, que esta lhe abra a porta e o receba, enquanto ela se diverte,
dentro de casa, com o outro amante, o Lemos), ou seja, neste caso, a cantiga seria
uma queixa deita pelo trovador por não ter sido tão bem tratado como o
comendador; a terceira possibilidade apontaria para uma usurpação dos legítimos
direitos do trovador em matéria de comendas (situação semelhante à denunciada
por um outro trovador, João Soares Coelho, numa cantiga que dirige a Airas
Peres Vuitorom: “Dom Vuitorom, o que vos a vós deu”).
Partindo
do pressuposto de que o comendador é o próprio trovador, a abadessa teria
oferecido um serviço completo a um visitante, que estava morto de cansaço, e
foi tão bem recebido que lhe perguntavam se seria capaz de retribuir o gesto
que tanto lhe agradou: “e todos me perguntaram / se vos saberei eu servir /
quam bem o soubestes guarnir / de quant’el havia sabor.”
Por
isso, na terceira estrofe, o «eu» lírico deseja que Deus a recompense, por se
ter lembrado dele, por o ter tratado tão bem. Se algo falhou relativamente ao
acolhimento, não foi por falta de espaço da abadessa: “o comendador i chegou /
e se el bem nom albergou, / nom foi por vosso coraçom” (vv. 19 a 21). Isto
permite supor que o tratamento ao qual ele se refere seria também de cariz sexual,
pela ênfase dado no final de cada estrofe. Nos versos 17 e 18, por exemplo, o
trovador refere que ela se lembrou dele da maneira que era conveniente (“por
que vos nembrastes de mim, / u m’era mui mester assaz”) e que, como conclui nos
versos seguintes se alguma falha ocorreu, não foi por falta de esforço da parte
da abadessa.
Na
quarta estrofe, reitera o agradecimento por o ter recebido no mosteiro: “Deus
vos dê por en galardom / por mui, que eu nom poderei, / porque vos nembrastes
de mim, / quand’a vosso logar cheguei;”. De seguida, o trovador declara que,
quando o comendador chegou ao mosteiro, foi tão bem suprido de amor e prazer
que não seria possível fazer melhor: “ca já d’amor e de prazer / nom podestes
vós mais fazer / ao comendador entom”.
Na
finda, constituída por três versos, o «eu» poético exprime o desejo de que a
abadessa seja recompensada cem vezes mais, pois serviu ao comendador tudo o que
havia no mosteiro: “Cento dobr’hajades por en / por mi, que lhi nom minguou rem
/ de quant’havia na maison.” (o termo “maison” é um galicismo que significa “casa”,
em geral religiosa).
Ao
contrário de diversas outras cantigas de escárnio e maldizer, nesta não existe
vocabulário obsceno, sendo as ideias transmitidas de forma subtil, maliciosa.
Por outro lado, é evidente uma mistura entre religiosidade e sexualidade, por
exemplo, quando agradece ou quando deseja que Deus recompense a abadessa: “Nosso
Senhor / vos gradesca”; “Hajades por en galardom / de Deus”; “Deus vos dê por
em galardom / por mim”. A insistência exagerada na ideia da retribuição divina
e na impossibilidade de o próprio comendador retribuir a abadessa contribui
para a formação do tom de malícia.
Nota,
por último, para a presença da palavra perduda (verso de uma estrofe que não
rima com nenhum outro, mas que pode ou não rimar com os versos correspondentes
das estrofes seguintes), concretamente no terceiro verso de cada estrofe, incluindo
a finda: “porque vos nembrastes de mi” (v. 3); “mais nembrastes-vos bem de mim”
(v. 10); “porque vos nembrastes de mim” (v. 17); “porque vos nembrastes de mim”
(v. 2); “de quant’havia na maison” (v. 31).
Esta
cantiga satiriza os religiosos que têm comportamentos inadequados ou mesmo
luxuriosos. O foco são os agradecimentos de um comendador em razão dos cuidados
que recebeu durante a sua estada num mosteiro. A expressão, repetida ao longo
do poema, “nembrastes-vos bem de mi” enfatiza, em cada estrofe, os “bons
cuidados” que a abadessa lhe dedicou. Ela acolheu-o no convento, quando ele aí
chegou, depois de uma longa viagem, muito cansado e necessitado de cuidados que
poderão contemplar também o próprio corpo da mulher.
A já
referida subtileza que caracteriza esta composição poética é exemplificada, por
exemplo, pela expressão que podemos encontrar no verso 5 da primeira estrofe: “cheguei
a vosso logar”. Ora, a interpretação da mesma pode resultar dúbia, pois pode
ser entendida como referenciando o final de um trajeto, como também pode ser
lida com o sentido de “aproximar-se” (com valor erótico). Outro exemplo
encontra-se no termo “maison”, um provençalismo que, além do significado já
apontado, remete para uma casa de dimensões consideráveis, e que concretiza o “logar”
referido noutras estrofes, mas que pode ser lido de forma literal ou
metafórico, enquanto alusão à vagina. Assim, ficamos na dúvida se o comendador
agradece à abadessa o facto de o ter “recebido” e tratado prazeirosamente na
sua própria “maison” metafórica, ou se os vocábulos “logar” e “maison” se
referem apenas e só ao mosteiro real onde a religiosa o recebeu e agasalhou com
tudo o que havia naquela habitação, incluindo os favores sexuais dela mesma ou
de outra mulher que lá morasse também.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
Análise da cantiga "A um corretor que vi", de Estêvão da Guarda
Esta
cantiga de escárnio e maldizer de refrão, escrita por Estêvão da Guarda, é
constituída por três sétimas, com rima emparelhada, segundo o esquema AAABBCC,
e satiriza o caso de um casal em apuros por dificuldades económicas, que o
obrigam a vender ao desbarato as suas roupas com peles, mesmo se já muito
usadas.
A
cantiga estrutura-se a partir de um diálogo jocoso entre o trovador e o
corretor, isto é, o intermediário, responsável pela venda das roupas. É fácil
imaginar o cenário: o sujeito poético, certo dia, viu o corretor a vender roupa
que ele tinha visto, revestida então de “penas veiras”, isto é, feita com pele
matizada. O corretor é, pois, um simples intermediário na venda.
Quem dá
início ao diálogo é o trovador, que identifica a pessoa a quem pertencem as
roupas: a esposa de alguém com estatuto, como se pode depreender do tratamento
por “Dom” (“– Da molher som de Dom Foam.”), que, apesar do título, deverá estar
a viver uma situação financeira bastante difícil. A expressão “Dom Foam” era
uma fórmula usada habitualmente para esconder uma identidade concreta.
O
corretor responde ao trovador, confirmando que são essa figura e a esposa quem
estão a vender tudo quanto possuem: “– Vendem quant’ham, / el e aquesta sa
molher”. Essa confirmação reforça a ideia da decadência e da extrema
necessidade que atingem o casal: a situação é tão difícil que teve que recorrer
à venda dos próprios bens, incluindo a roupa, para sobreviver. Os dois versos
que separam o sexto verso do refrão funcionam como forma de introduzir a
explicação para a venda da roupa: “ham-no mester, ham-no mester!”, isto é, têm
necessidade, o que confirma que tudo se deve a dificuldades económicas. Além
disso, a repetição presente no refrão indicia a urgência do casal.
Os dois
versos iniciais da segunda estrofe confirmam que as roupas que estão a ser
vendidas são de mulher. Ironicamente, refere que esta ficará quase despida, o
que significa que está a vender quase todo o vestuário, em virtude da
necessidade extrema. A mulher fica quase nua ao olhar público por vender a
roupa, enquanto essa mesma venda deixa igualmente a nu a depauperada situação
financeira do casal. A btítulo de curiosidade, convém ter presente o
significado da expressão “ver grós”, a qual, segundo Gema Valin (in “La
indumentaria en la lírica Gallego-Portuguesa: algunas consideraciones sobre el
uso y el significado de las penas veiras”), constituiria uma outra designação
para as “penas veiras”, a partir do francês “vair gros”, cuja técnica “consistia
en combinar el gris del lomo y el blanco del vientre de la ardilla formando um
damero, y cuandolos cuadrados eran de mayor tamaño se le daba el nombre de gros
vair”. Seja qual for a interpretação, esta passagem da cantiga indicia que os
“panos” são de baixa qualidade de tão usadas.
O
trovador insiste na questão: por que razão a mulher deseja vender as vestes por
vontade própria, se tal atitude a deixa quase nua? A resposta do intermediário é
imediata: ele tem a certeza de que (“– Sei eu, de pra,”) o casal o faz por necessidade
financeira, de acordo com o refrão. Mas como pode o corretor ter tanta certeza,
passe a redundância, acerca da razão da venda? Foi a própria mulher quem lho
disse: “– Sei eu, de pram, / per ela, quanto vos disser:”. A citação indireta
funciona como uma espécie de argumento de autoridade que assegura a veracidade
do que é dito.
A sátira
acerca da penúria em que vive o casal intensifica-se na terceira estrofe. O trovador
afirma que é difícil acreditar que “eles” – o casal –, por falta de recursos
financeiros, vendam a roupa da mulher por um valor extremamente baixo. Ora,
esta atitude reflete o desespero e a extrema necessidade do par, ficando assim
exposta a gravidade da sua situação de pobreza, que os leva a sacrificar a
própria dignidade.
Mais
uma vez, o interlocutor do sujeito poético faz luz sobre os acontecimentos e
explica, de novo, que é a necessidade extrema (“Per com’ estam”) que os faz
descer àquele ponto: eles necessitam de vender aqueles “panos”, mesmo que por
um valor muito baixo, porque nada mais lhes resta.
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
Análise da cantiga "Achou-s’um bispo que eu sei um dia", de Airas Nunes
Esta
cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), da autoria de
Airas Nunes, é constituída por quatro sétimas, sendo que a última está bastante
danificada, cujos fragmentos são transcritos apenas pelo Cancioneiro da
Biblioteca Nacional.
A
composição poética consiste num diálogo entre duas personagens do alto clero,
um bispo e o seu arcebispo, este último eleito mas ainda não confirmado. O
episódio datará talvez de 1286/1289 e relacionar-se-á com a nomeação papal de
Rodrigo González como arcebispo de Santiago de Compostela, uma nomeação que foi
muito contestada pelo claro local, que não via com bons olhos a ânsia
moralizadora e reformista do novo arcebispo. Note-se que o trovador – Airas Nunes
– era ele próprio clérigo. Sucede que o bispo passou pelo Eleito e não deu por
ele, o que fez com que este se zangasse. Há críticos que sugerem a hipótese de
o “eleito” de que fala a cantiga talvez não seja exatamente um bispo, mas, sim,
o Papa. Um simples bispo eleito não trataria mal um bispo mais antigo e já
sagrado. Além disso, o “eleito” mora num lugar onde todos os bispos têm
obrigação de o conhecer e de lhe falar. Isto só sucederia na Cúria Romana.
Neste caso, a ironia tem origem na ignorância do bispo que vai a Roma e não
sabe quem é o Papa, exceto se se tratar de um bispo eleito há pouco e cheio de
prosápia, todo zangado por um bispo simplório não dar pela sua nova dignidade.
É uma leitura possível, mas pouco provável.
A
primeira estrofe dá conta que que um bispo que o trovador conhece (“Achou-s’um
bispo que eu sei”) encontrou o arcebispo eleito e não lhe falou (“cõn’o eleit’e
sol nom lhe falou”), o que causou o espanto deste último, pelo que se dirigiu à
outra figura e a questionou acerca da sua postura (“- Que bispo sodes, se Deus
vos perdom, / que passastes ora per mim e nom / me falastes e fostes vossa via?”).
A expressão “sol nom lhe falou” evidencia o silêncio do bispo ao passar pelo “eleito”
e o não reconhecimento deste, o que indicia que era estranho ou incomum que uma
figura eclesiástica se cruzasse com uma autoridade da Igreja e não a
reconhecesse e saudasse. A forma verbal “maravilhou” traduz o efeito causado
pelo comportamento do bispo no arcebispo: surpresa. A expressão inicial “um
bispo que eu sei” dá nota de que o trovador conhece a sua identidade, porém não
a revela. A interrogação retórica “Que bispo sodes” traduz o espanto do
arcebispo com a atitude do outro religioso e, em simultâneo, pode entender-se
como uma provocação, questionando essa postura e insinuando que a mesma é
inadequada. A expressão “se Deus vos perdom” é irónica, pois apresenta a
ausência de saudação como um “pecado” muito grave, tão grave que apenas poderá
ser colmatado por um perdão divino, que não é certo.
A
gravidade que se espera de questões religiosas não é propriamente a desta
situação. Por último, a expressão “fostes vossa via” (= seguistes o vosso
caminho) sugere a indiferença do bispo, enfatizando o facto de este ter
ignorado o “eleito”, uma figura que se considera bastante importante.
A
segunda estrofe contém a resposta do bispo, que alega não conhecer o
interlocutor (e invoca o testemunho divino em seu favor: “se Deus me valha”),
pois nunca tinha falado com ele nem alguma vez o tinha visto, pelo que não o
poderia (re)conhecer. Por estes motivos, alerta-o para o facto de, se a
situação voltar a ocorrer, isto é, os dois se cruzarem de novo e não o conhecer
nem lhe falar, não se admirar nem considerar que tal sucederá por “vilania”, ou
seja, por falta de respeito. Esta fala do bispo torna claro que ele fingiu não
reconhecer o arcebispo, pois, se naquela ocasião, tinha justificação para a
ausência de saudação, o mesmo não sucederá no futuro, já que a desculpa de
nunca ter visto nem falado com o arcebispo deixou, a partir daquele momento, de
se verificar, pois estão a falar um com o outro. Por outro lado, a alegação de
que não o conhecia pessoalmente não é aceitável, já que, mesmo que tal fosse
verdade, não poderia deixar de reconhecer a figura de um arcebispo.
Este,
porém, não aceita a justificação do bispo. Desde logo, afirma que “todos aqui m’ham
de conhecer”, ou seja, reforça o seu estatuto e a sua importância, bem como a
alta estima em que se tem, que eram tais que todas as pessoas o conheciam
(hipérbole). Depois, acrescenta que o bispo o ignorou intencionalmente, fingiu
não o reconhecer (“e o que o assi nom quer fazer / nom é bispo nem val ua
mealha”), daí atacá-lo pessoalmente, questionando o valor do bispo enquanto
pessoa, bem como a sua legitimidade enquanto tal. O uso do nome “mealha” (moeda
de pouco valor) simboliza o desprezo que o “eleito” tem pelo seu interlocutor. A
expressão “quem me sõo eu” evidencia o alto valor e a importância que o
arcebispo se atribui, sugerindo que considera a sua posição e o seu estatuto
tão elevados e óbvios que o bispo o deveria ter reconhecido de imediato, sem
qualquer hesitação. Daí provém o seu espanto, a sua indignação e o orgulho
ferido. Nova hipérbole (“nem dades por mi valor d’ua palha”) intensifica a
sensação de desrespeito e desprezo que a atitude do bispo gerou no “eleito”.
A
quarta e última estrofe apresenta seis versos estropiados, salvando-se o
terceiro, o único que está completo. Do escasso texto que chegou até nós, fica
a sensação de que o bispo reforça a sua justificação / argumentação e a sua verdadeira
intenção, ao clarificar que não quer o mal, mas também o bem, do arcebispo. Ora,
esta afirmação indicia a total indiferença do bispo pelo seu superior
hierárquico, bem como o desprezo pela sua opinião e indignação, que contrasta com
o valor e a importância, bem como o desejo de reconhecimento, que o arcebispo
atribui a si próprio.
Em
suma, esta cantiga critica, na pessoa do arcebispo, os membros do alto clero
que se deixam deslumbrar pela vaidade, pelo orgulho, pelo deslumbramento e
egocentrismo, resultantes da eleição para cargos dentro da hierarquia
religiosa. De facto, o arcebispo, recentemente eleito, fica indignado e
julga-se ultrajado na sua dignidade pelo simples facto de não ter sido
reconhecido por um bispo.
sábado, 7 de dezembro de 2024
Análise da cantiga "Achei Sanch’Eanes encavalgada", de Afonso X
A
presenta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, constituída por três
sextilhas (4 versos + 2 do refrão), da autoria de Afonso X, rei de Castela e
poeta, satiriza Sancha Anes, uma dona “velha fududancua” [o vocábulo remete
para uma atividade sexual contranatura] com aparência de “mostea” [carregada de
palha], mas não necessariamente uma soldadeira nem uma prostituta.
A
cantiga, na opinião de Graça Videira Lopes, constitui “uma cena da vida da
nobreza rural: num contrarretrato da senhor das cantigas de amor, uma
matrona atravessa as ruas de uma aldeia”. De facto, o sujeito poético encontra,
um dia, Sancha Anes cavalgando e, ao vê-la, conclui que e a mulher mais feia do
mundo (“ca nunca vi dona peior talhada”: a hipérbole enfatiza a feiura desta
mulher), quase jurando que era uma carrada de palha: “vi-a cavalgar per ua
aldeia / e quize jurar que era mostea” (vv. 5 e 6 – refrão). Montada a cavalo,
gorda e enroupada, assemelhava-se a um enorme fardo de palha.
A
comparação que inicia a segunda estrofe (“Vi-a cavalgar com um seu escudeiro, /
e non ia melhor um cavaleiro”), bem como a descrição presente no verso “mui bem
vistida em cima da mua”, aparentemente contraditório na cantiga, já que
elogiosos num primeiro momento, na realidade acirra o ridículo da cena, oiis
são irónicas: Sancha cavalgaria como um homem, montada sem feminilidade, e
estaria excessivamente vestida, o que ampliaria a sua forma redonda e cheia, ou
seja, um saco / um fardo de palha. O retrato que dela é apresentado até aqui é
o de alguém fisicamente feio e moralmente guloso e sodomita, para cuja
construção contribuem expressões coimo “dona peior talhada”, “tan gran mostea”,
“en cima da mua” e “velha fududancua”, que, no fundo, a retratam como uma
mulher velha e balofa. Em contraponto, a composição poética dá-nos igualmente
traços positivos, como “cavalgar per ua aldeia”, “com un seu escudeiro” e “mui
bem vistida”, que indiciam uma montada, um escudeiro e roupa de qualidade.
Atente-se
no facto de outros autores apresentarem uma versão diferente dos dois versos
iniciais da segunda estrofe: “Vi-a cavalgar, muach’e sendeiro, / e nom ia
milhor um cavaleiro”, em vez de “mua e sendeiro”. O termo depreciativo “muacha”
é usado por D. Dinis numa sua cantiga. Por outro lado, a expressão “caval’ e
sendeiro”, enquanto indicadora de subida de estatuto (cavalo para montar,
acompanhado de uma besta de carga), aparece numa cantiga satírica de Martim
Soares. Assim sendo, a paródia resultará neste passo exatamente dessa imagem
típica do cavaleiro (no caso, substituindo o cavalo pela mula).
Além da
hipérbole e da ironia já referidas, a comparação com uma “mostea” é bem
significativa. De facto, esta sugere que Sancha Anes é uma mulher de formas
avantajadas (“peior talhada”, “mostea”), é um saco de palha. Se juntarmos a sua
imagem de uma figura velha, gorda e desengonçada, desfilando pela aldeia
montada a cavalo, ficaremos com a noção de quão ridícula é a cena. No fundo,
estamos perante uma caricatura grotesca da personagem, ridicularizando o seu
aspeto físico e a sua compostura (PAREDES, Juan. “Introducctión”. Roma. 2010).
O trovador zomba da feiura de Sancha Anes, afirma que nunca viu uma mulher tão
mal feita (“ca nunca vi dona peior talhada”), jura que é um saco de palha
(“quize jurar que era mostea”) e insulta-a, apelidando-a “fududancua”, um
vocábulo obsceno. A sátira à feiura física concretiza-se através da descrição
da ridícula cena do seu passeio a cavalo pela aldeia, descrição essa que serve
para evidenciar a sua conduta devassa e imoral, já que pratica a sodomia
(“fududancua”), que gerava grande repulsa na Idade Média. Deste modo, podemos
concluir que a sátira ao seu aspeto físico serve, na verdade, para denunciar a
sai feiura moral. Note-se que a prática da sodomia na época era penalizada
legalmente em várias legislações medievais.
Por
outro lado, esta cantiga configura o antidiscurso burguês, nomeadamente por
causa do uso do nome “dona”, característico das cantigas de amor, bem como da
adjetivação disfórica “peior talhada”. Corral-Diaz, a este propósito, defende
que as conotações semânticas do nome “dona” são essencialmente de tipo social,
designando uma dama aristocrática ou, noutros casos, uma mulher casada. Dito
isto, nas cantigas de escárnio e maldizer, o termo é usado ironicamente, como é
comprovado pelo tratamento cortês que era dirigido a soldadeiras ou quando se
satirizava o tipo das abadessas. No caso de Ana Sanches, nada se sabe sobre
ela, pelo que não há como determinar se era uma soldadeira ou uma simples
matrona, mas é possível presumir que era uma mulher de elevada posição social
pelos motivos já aduzidos: possuía uma montada, um escudeiro e roupas ricas.
A
mulher é representada, hiperbolicamente, como feia, velha e gorda,
metaforicamente associada a um elemento inumano: a “mostea”, um fardo de palha.
Tendo em conta a roupa extravagante que vestia e que permitia que se destacasse,
o efeito cómico provocado pela visão da senhora passeando a cavalo com o seu
excesso de roupas e as suas formas avantajadas é óbvio de roupas e as formas
avantajadas que ele até se benze (“santiguei-m’).
As duas
palavras mais importantes da cantiga são, portanto, “fudaduncua”, cujo uso
constitui uma antonomásia de cariz ofensivo, e “mostea”, nome que pode
significar ”carrada de palha”, configurando uma metáfora que sugere as formas
volumosas de Sanch Anes, mas também uma doninha, um animal mamífero das família
dos furões, que, segundo certas crenças medievais, era caracterizada por atos
anti-natura, como, por exemplo, conceber através da boca e parir pelas orelhas.
Um
outro vocábulo significativo é o adjetivo “encavalgada”, uma metáfora que
representaria a realização do coito. Assim sendo, Eukene Lanz interpreta a cena
do passeio a cavalo como uma metáfora de uma presumível relação sexual de Ana
Sanches com outra mulher. Porquê com uma mulher? Para a estudiosa, a explicação
reside na duplicidade do significado de “mostea” como carrada de palha ou como
dominha de corpo pequeno e alongado, que poderia meter-se em qualquer buraco,
incluindo o órgão sexual feminino, além da possível aceção da palavra “mua” (v.
14) como barregã, concubina ou amante. Atentemos nas palavras da própria Lanz:
«Sancha, descrita fisicamente tanto como uma mulher grande, ou, ao contrário,
pequena e enérgica, como uma doninha, aparece cavalgando sobre alguém que, no
final, é uma mula, ou seja, outra mulher. O sentido de união contra a natureza
vem reforçado pela exclamação “Ai, velha fududancua”, que poderíamos traduzir livremente
para “Ai velha sodomita!”. Não se deve tomar ao pé da letra essa denúncia. Sancha
Anes, longe de representar a parte passiva, é, sem dúvida, a parte ativa que
cavalga sua mula e parece fazê-lo como uma doninha, introduzindo-se na toca”.
Assim sendo, a alusão ao facto de a mulher cavalgar sem a feminilidade esperada
(“e nom ia milhor um cavaleiro”) confirmaria a homossexualidade feminina,
vincada pelo estereótipo da mulher masculinizada.
Em
suma, Sancha Anes é uma mulher que se distancia duplamente do arquétipo de
beleza feminina do género lírico (cantigas de amigo e de amor), descumpre os
preceitos da doutrina cristã por não ser casta e usufruir da sua sexualidade
sem o objetivo de procriar, fora do matrimónio, bem como, se considerarmos como
válida a hipótese sodomita, desafiar a natureza, relacionando-se intimamente
com uma mulher.
Outras
interpretações sugerem uma relação da mulher com o escudeiro que a acompanhava,
bem como que o cerne da sátira se centraliza no palheiro, local do encontro
licencioso, de onde ela saiu coberta de palha, confundindo-se com ela (sinédoque).
quarta-feira, 4 de dezembro de 2024
Análise do 10.° parágrafo do conto "A Aia"
1.
Vários homens / inimigos chegam à porta da câmara onde os bebés dormem,
destacando-se um dentre todos. Trata-se de um indivíduo «enorme» (adjetivo que
dá conta da sua grande envergadura), de «face flamejante» (adjetivo que destaca
o tom do rosto do homem, agitado pela luta travada até chegar ali, ou sugere
uma aparência demoníaca), envergando “um manto negro sobre a malha de cota”. O
adjetivo «negro», que qualifica o manto, associa mais uma vez a personagem ao
Mal, enquanto a cota de malha simboliza a proteção e a prontidão para a
batalha. O contraste / antítese entre o negro e a face flamejante intensifica a
ideia de que a figura em questão transporta consigo uma ameaça. Simbolicamente,
o homem, com o seu manto negro, representa o mal, a destruição e a morte.
2.
A ação do homem, provavelmente o próprio tio bastardo, é marcada pela rapidez e
pela violência. Desde logo, a sua chegada é qualificada, através do advérbio
«bruscamente», como brusca e repentina. O facto de se fazer referência a outros
homens que o acompanham indicia que não está e não age sozinho.
3.
Ao entrar, olhou em direção aos berços, o que revela o seu objetivo: o
principezinho. A sequência de ações que se seguem e o modo direto e cru como
são descritos evidenciam a urgência e a agressividade da personagem. Assim, ela
correu para o berço de marfim, “arrancou a criança como se arranca uma bolsa de
oiro” (esta comparação acentua, por um lado, a violência e a brusquidão do
rapto do bebé e, por outro, a sua motivação; além disso, ao comparar a criança
a uma bolsa de ouro, o narrador sugere que aquela é vista como um objeto de
grande valor, não como um ser humano).
Por
último, o homem abafa os gritos da criança, gesto que reforça a brutalidade do
rapto e a tentativa de a silenciar, de modo que ninguém se aperceba e o persiga,
e abala furiosamente. O manto negro que é usado para abafar o bebé pode ser
analisado como uma metáfora da supressão da sua vida.
Atente-se
na expressividade das formas verbais, todas de ação (“olhou”, “correu”, “arrancou”
e “abalou”), as quais revelam a violência e a rapidez com que o rapto é
consumado.
domingo, 1 de dezembro de 2024
Críticas à obra de Verney
Crítica à obra de Verney:
. algumas ideias são desastrosas e exageradas (ex.: a literatura não se pode ver como
passível de crítica científica);
. em rigor, nem sempre terá havido da sua parte uma atenta reflexão pedagógica, mas
sim uma preocupação de divulgar as ideias vigentes;
. as suas ideias não são sempre originais, limitavam-se a transmitir as ideias que vigo-
ravam na Europa e/ou em outros casos adapta essas ideias ao ensino em Portugal.
Não se pode falar em orifinalidade total. É uma síntese de ideias que permitiu a chegada do Iluminismo até nós. Ele entendia que a cultura em Portugal estava voltada de costas para a evolução científica da Europa e, por isso, havia falta de progresso e a sociedade e mentalidade portuguesas eram atrasadas.
Ele propunha o que de mais avançado se produzia na Europa, sobretudo no campo dos métodos de investigação. Era uma autêntica reforma no campo do ensino. Por exemplo, nos estudos linguísticos, propunha que o Português devia ser o centro dos estudos linguísticos e não o Latim.
Em vez da retórica, do ornato, sem finalidade persuasiva, entendia que se devia optar pela apresentação de um discurso elaborado segundo a perspetiva da razão. Muitas destas ideias chegaram a Portugal por via dos estrangeirados, entre os quais se destaca a figura de Luís António Verney. As suas ideias foram bem aceites, quer no reinado de D. João V, quer no reinado de D. José. É nesta altura que D. João dá grande importância à cultura, nomeadamente aos livros publicados nos outros países e foi ainda criada a Real Academia Portuguesa da História, que contribuiu para a renovação dos métodos de investigação histórica. Por isto se vê a importância que este rei dedicou à cultura. Segue-se D. José, que escolheu novo governo e teve como seu colaborador direto o Marquês de Pombal, que não foi muito bem aceite pela nobreza tradicional. Em 1759, é promovido a Conde Oeiras e, em 1770, a Marquês de Pombal.
A grande renovação cultural dá-se neste reinado por ação do Marquês de Pombal,que vai assumir o papel do déspota iluminado. As transformações introduzidas assemelham-se aos efeitos que o terramoto produziu em 1755.
Foi de tal maneira significativa a ação do Marquês de Pombal que é difícil não haver controvérsias em relação às suas decisões. D. José socorreuse deste homem para modificar o clima cultural do país, nomeadamente a reforma do ensino. Devido ainda à ação do Marquês, terminaram os autos de fé e acabou a perseguição aos cristãos-novos. Mas a sua principal ação foi a expulsão dos jesuítas. Isto é importante sobretudo porque o ensino lhes estava entregue.Confisca os bens da Companhia e tenta influenciar o papa Clemente XIV para que extinga a Companhia. Para isso contribui a sua acusação anti-jesuíta, chamada Dedução Cronológica, na qual pretende justificar que todo o mal que aconteceu ao país foi culpa dos jesuítas e que a única forma de trazer a felicidade ao povo era a sua expuslão. A Companhia foi extinta em 1773 e só foi restaurada em 1814. O Marquês teve assim tempo para fazer as reformas.
O final do século XVIII foi um período de estabilidade política; até a Igreja começou a ser obediente, temendo represálias. O Marquês chegou pensar numa remodelação danobreza tradicional
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O século XVII em Portugal
Em Portugal:
Enquanto estas teorias faziam furor na Europa culta, que vivia uma época áurea no campo das artes, em Portugal, no século XVII, fazia-se uma travessia no deserto no campo das artes por razões políticas.
Vivia-se uma decadência com duas grandes causas:
a) por um lado, a repressão da Inquisição,que causa uma estagnação cultural;
b) por outro lado, vivíamos numa crise política e económica, que veio a culminar com a
perda da independência.
Isto explica o desinteresse pelas letras nacionais.
À estagnação aliava-se a Inquisição e a censura política do governo espanhol, que procurava eliminar tudo o que exaltasse o caráter patriótico. O passado era uma compensação para o presente.
Os que tinham mais imaginação refugiavam-se no passado, porque não ia tanto contra o domínio espanhol. Procuravam na história temas para a sua escrita. Temos, por exemplo,uma obra de Frei António de Brito e Frei António Brandão, que é uma verdadeira história de Portugal. Este patriotismo é exaltado pelo domínio espanhol como forma de não recusar os valores tradicionais. No domínio filipino, a língua mais falada era o espanhol, se bem que era aceite o bilinguismo. O Português passou a ser visto como uma espécie de tesouro a preservar. Os estudos linguísticos entravam na moda.
É desta época a famosa Corte na Aldeia (Rodrigues Lobo), datada de 1611. É constituída por dezasseis diálogos em prosa, em que se realça o cultivo do saudosismo da época em que Portugal era independente e assim se procurava escrever o Português com esmero. O autor pretende dar como exemplo uma linguagem castiça, autêntica e atual.
Os autores estavam sarciados em fronteiras por motivos políticos. Isto ainda com a independência em 1680.
Nos reinados seguintes, a cultura começa a assumir uma importância crescente, nomeadamente no reinado de D. José com o Marquês de Pombal,que renovou inclusive as universidades.
Estes factos têm importância, enquanto Portugal começaa fugir à estagnaçãoi em que viveu no passado século XVII,que foi um século de atraso cultural para Portugal. No reinadode D. José, em parte devido às transações comerciais, desenvolveu-se o aspeto cultural.
Estrangeirados:
Na Europa, vamos encontrar emigrados portugueses não só exilados,mas também intelectuais que aí procuram um novo processo de aculturação.
Tempos, pois, portugueses que se fixam em certos países europeus devido a missões diplomáticas ou fugidos à censura inquisitorial.
São os estrangeirados. No primeiro grupo, temos Francisco Oliveira, Marquês de Pombal, D. Luís da Cunha, etc. No segundo grupo, temos Ribeiro Sancho e Luís António Verney.
O pensamento dos esrangeirados, iluminados por princípios iluministas aliados ao empirismo ou utilitarismo, veio provocar alterações em Portugal.
A crise mental portuguesa do século XVII mais não era do que a consequência da falta de cultura e esta era devida ao tipo de ensino feito em Portugal, entregue nas mãos dos jesuítas.
A importância de Luís António Verney:
O pensamento dos estrangeirados vem na linha do Iluminismo / Utilitarismo.
Nesta crise cultural de Portugal, temos que ter em conta o tipo de ensino entregue aos jesuítas com uma orientação tradicional de verdades reveladas. Era um ensino especulativo, dognático e teológico.
Para os estrangeirados, era necessário substituir os mestres, pois os princípios científicos não se adaptavam aos dogmas antigos. Era necessário dar lugar àobservação dos factos e à sua comprovação pela experiência. Estamos perante os ventos vindos da Europa, com Newton, Rousseau, Voltaire, etc.
Os estrangeirados eram portugueses que viviam no estrangeiro e que modificara, a estrutura mental do país, uma vez que iam recolhendo as novas correntes do pensamento europeu da altura.
Estrangeirados é uma designação dada pelos que cá viviam e que se chocavam com as ideias que eles traziam. Os estrangeirados intervinham efetivamente na vida cultural portuguesa, escrevendo textos que causaram polémica.
Um dos estrangeirados mais importantes foi Luís António Verney (1713-1792). Teve uma educação primorosa, entregue aos jesuítas e vai voltar-se contra o ensino que praticavam, precisamente porque o conhecia por dentro. Elenão condena apenas os jesuítas, mas todo o ensino que tinha como base dogmas.
A sua obra O Verdadeiro Método de Estudar foi publicada em 1746 e é a compilação de dezasseis cartas que ele envia de Roma para Portugal. Na segunda publicação da obra, ele escreveu sob o pseudónimo de Barbadinho. Esta obra é um marco histórico no Portugal de então. Deu lugar a uma grande polémica e, segundo uns, marca o reinado da escolástica em Portugal. Continha as bases de uma reforma profunda em todos os campos do saber,abandonan-se à autoridade dos filósofos antigos.
A crítica e estudo de Verney estenderam-se a vários domínios:
i) ensino universitário;
ii) ensino da teologia (critica as subtilezas inúteis com que se entretinha a teologia, devendo preocupar-se mais com os textos bíblicos);
iii) ensino do Direito, que se limitava a especulações metafísicas;
iv) ensino da Medicina, que se convertera em erudição e comentários de autores antigos;
v) ausência do ensino da língua materna, porque só se estudava a gramática latina;
vi) outros domínios.
Por detrás desta obra está subjacente a teoria dos mestres do Iluminismo.
Para Verney, "filosofar é igual a raciocinar cientificamente". Ele diz que o exemplo dos juízos sobre princípios evidentes é a Matemática. É um projeto de reforma do ensino em Portugal, por detrás da qual está o princípio do materialismo mecanicista.
Até na literatura Verney pretende defender os princípios científicos. A condição fundamental da poesia é a verdade, pois o que se sabe ser falso não interessa ao leitor. Chega mesmo a afirmar que alguns passos da lírica camoniana carecem de sentido lógico, porque o poeta usa a mitologia, logo não se fundamenta na verdade e não tem sentido lógico.
A obra de Verney traduz princípios racionalistas que vão talvez longe demais, porque tudo o que se escrevesse deveria estar de acordo com a experiência e contemplar apenas os fenómenos da natureza; devia ter um fim pragmático e para ele ela é apenas um ornamento.
Esta obra é constituída por 16 cartas dirigidas a um professor de Coimbra e cada uma ocupando-se de uma disciplina do plano de estudos vigente. Critica, fundamentalmente, o estudo que se fazia e propunha reformas. A maior reforma traduzia um novo espírito de orientação global mais do que propriamente uma planificação.
O conteúdo das suas cartas era o seguinte:
=> carta I: língua portuguesa;
=> cartas II-IV: gramática latina e latinidade: Grego, Hebraico, línguas modernas;
=> cartas V-VII: retórica e poesia;
=> cartas VIII-XV: lógica, metafísica, medicina, direito civil, direito canónico, teologia,
física e ética;
=> carta XVI: regulamentação geral dos estudos.
No sentido genuíno da palavra, esta obra não pode ser considerada literária, mas incluir-se dentro da bibliografia pedagógica de cariz didático. Em cada carta há uma crítica aos estudos vigentes e depois apresenta propostas de reformas.
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sábado, 30 de novembro de 2024
Análise do 9.° parágrafo do conto "A Aia"
No que
diz respeito à categoria tempo, este parágrafo confirma o seguinte: a
maioria dos acontecimentos do conto tem lugar à noite. Neste caso, o evento é a
invasão do palácio pelo tio bastardo e da sua horda, na tentativa de matar o
principezinho e subir ao trono.
O facto
de se tratar de uma noite escura e de silêncio ajuda criar um ambiente de suspense
e de mistério, bem como de ameaça iminente. Com a escuridão, os sentidos das
personagens estão mais alerta, daí que estejam mais atentos a pequenos ruídos
ou movimentos. Por outro lado, a noite é uma fase do dia em que as pessoas se
encontram mais vulneráveis, pois encontram-se maioritariamente a dormir. Em
terceiro lugar, a ausência de luz facilita a aproximação dos inimigos ao
palácio, todavia o silêncio é um obstáculo ao ataque, dado que qualquer ruído
será mais facilmente escutado pelos vigias.
Quando
às personagens, é o que sucede com a aia, que, quando se prepara apara
adormecer, com os sentidos ainda assim despertos, “adivinhou, mais que sentiu,
um curto rumor de ferro e de briga, longe…”. Ou seja, a protagonista pressente o
que está a acontecer, no seu permanente estado de alerta para proteger o
príncipe.
Determinada,
a ama procura confirmar o seu pressentimento e, após tê-lo feito, perante a
ameaça iminente (“Num relance tudo compreendeu – o palácio surpreendido, o
bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe!”), não hesita e troca os
bebés de berço para proteger o príncipe. A sua ação é rápida e firme, sem espaço
para hesitação: “Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida arrebatou o
príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga – e tirando
o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real…”.
Deste
modo, a aia sacrifica o seu próprio filho por um bem maior: a defesa do
príncipe e, consequentemente, do reino. Por outro lado, com este gesto, a
protagonista confirma o seu forte senso de dever e lealdade… mas a que custo!
Além
disso, a troca de bebés mostra que a aia é uma mulher decidida e astuta. De
facto, ela não pensa sequer em confrontar os invasores, optando por fazer uso
de uma estratégia engenhosa para os enganar e, assim, salvar o príncipe,
deitando-o no berço simples e pobre. Os assaltantes concluem, como se verá no
parágrafo seguinte, que o príncipe dorme no berço rico, de acordo com a sua
condição nobre. O plano da aia é simples, mas eficaz.
Apesar
da astúcia, frieza e racionalidade demonstradas na troca de bebés, o seu amor
de mão está sempre presente, como se constata pela intensa emoção que evidencia
(“entre beijos desesperados”) quando concretiza a sua ação.
Por que
razão uma mãe como a aia sacrificaria o seu próprio filho tão amado?
1.º) Por lealdade ao rei
e à rainha.
2.º)
Por um bem maior: o de todo o reino.
3.º)
Por acreditar na vida além da morte.
4.º)
Por acreditar que a vida depois da morte é uma continuação da vida terrena.
Relativamente
à linguagem, a deste parágrafo espelha alguma formalidade, mático e
elevado. É o que sucede, por exemplo, através do recurso a expressões como “arrebatou
o príncipe” ou “atirando os cabelos para trás”, que conferem à narrativa uma
certa grandiosidade.
Outro
recurso importante são os verbos de ação. Formas verbais como «descerrou»,
«arrebatou», «atirou» ou «cobriu» criam uma sensação de movimento, de dinamismo
e urgência. Por exemplo, o verbo «arrebatar» evidencia a rapidez e a
determinação com que a aia troca os bebés de berço. Por outro lado, a presença
de outras formas verbais, no pretérito perfeito («adivinhou», «escutou») remete
para ações já concluídas.
Em
terceiro lugar, destacam-se as sensações, nomeadamente as visuais e auditivas.
A alusão ao som de “passos pesados e rudes” (hipálage e adjetivação) e de um
corpo “tombando molemente” (advérbio de modo) criam a noção de imagens
auditivas intensas, vívidas, o que sucede igualmente com as sensações visuais,
como “um clarão de lembranças, brilhos de armas…”.
Outro
recurso relevante é a antítese. Esta é visível, por exemplo, entre o silêncio
inicial e o súbito som de luta, ou entre a nobreza e o requinte que rodeiam o
príncipe e a humildade e simplicidade do escravozinho. A troca de berços para
salvar o príncipe reflete esses contrastes, pois o que permite, à partida, aos
invasores, saber qual dos dois bebés é o príncipe é exatamente o berço: o mais
rico é aquele onde dorme a vítima que buscam.
Como é
característico do conto, o narrador socorre-se da economia de diálogos, ou
seja, não existe diálogo, havendo apenas a registar uma única fala em discurso
direto, da autoria da aia. O efeito da ausência de diálogos prende-se, por um
lado, com a construção de uma ação rápida e, por outro, com o aumento da tensão
narrativa.
A
adjetivação é bastante expressiva, como sucede ao longo do conto. Assim, o
adjetivo «curto», em “curto rumor de ferro e de briga”, sugere que o ruído que
a aia ouviu ou pressentiu é breve, mas é o suficiente para a deixar em alerta.
Por seu turno, a dupla adjetivação “pesados e rudes” a qualificar os passos
sugere a aproximação de alguém ameaçador e rude. De facto, além da adjetivação,
podemos vislumbrar na expressão a presença da hipálage, que consiste na
atribuição de uma característica que pertence a uma pessoa a algo relacionada
com ela. Assim, a lentidão e a rudeza, que, na realidade, pertencem à pessoa
que caminha, são transferidas para os seus passos. Por outras palavras, o
indivíduo que a aia ouve a caminhar é pesado e rude. Quanto ao adjetivo
«desesperados», qualifica os beijos que a aia dá ao filho quando o retira do
seu berço e o coloca no do príncipe, enfatizando o desespero e a dor infinita
que sente ao fazê-lo e, assim, condená-lo à morte. No fundo, a protagonista vive
um drama pessoal intensíssimo, dividida entre o seu instinto de mãe e o dever
de proteger a vida do príncipe.
A obra
de Eça de Queirós inovou bastante no uso do advérbio. Neste excerto, a locução
adverbial “à pressa” dá conta da rapidez com que a aia se veste por causa da
urgência da situação: ela tem de se certificar rapidamente da causa e origem do
barulho que ouviu. Da celeridade da sua atuação, depende a vida do príncipe.
Por sua vez, o advérbio «violentamente» enfatiza a ânsia e a tensão que se
apoderam da protagonista e a necessidade de agir rapidamente. Além disso, dão
nota da necessidade de correr a cortina para evitar que alguém, a partir do
exterior, consiga ver o que ela vai fazer: trocar os bebés de berço. Na frase
imediatamente anterior, deparamos com «molemente», advérbio que traduz o modo
como o corpo cai, já sem vida ou resistência. Já «rapidamente» expressa a
celeridade com que a aia agiu, sem hesitação.
Por
último, a comparação “um corpo tombando molemente sobre lajes, como um fardo”
caracteriza o modo como o corpo de um interveniente na luta caiu no chão, isto
é, de forma simultaneamente mole e pesada.
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