A
presenta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, constituída por três
sextilhas (4 versos + 2 do refrão), da autoria de Afonso X, rei de Castela e
poeta, satiriza Sancha Anes, uma dona “velha fududancua” [o vocábulo remete
para uma atividade sexual contranatura] com aparência de “mostea” [carregada de
palha], mas não necessariamente uma soldadeira nem uma prostituta.
A
cantiga, na opinião de Graça Videira Lopes, constitui “uma cena da vida da
nobreza rural: num contrarretrato da senhor das cantigas de amor, uma
matrona atravessa as ruas de uma aldeia”. De facto, o sujeito poético encontra,
um dia, Sancha Anes cavalgando e, ao vê-la, conclui que e a mulher mais feia do
mundo (“ca nunca vi dona peior talhada”: a hipérbole enfatiza a feiura desta
mulher), quase jurando que era uma carrada de palha: “vi-a cavalgar per ua
aldeia / e quize jurar que era mostea” (vv. 5 e 6 – refrão). Montada a cavalo,
gorda e enroupada, assemelhava-se a um enorme fardo de palha.
A
comparação que inicia a segunda estrofe (“Vi-a cavalgar com um seu escudeiro, /
e non ia melhor um cavaleiro”), bem como a descrição presente no verso “mui bem
vistida em cima da mua”, aparentemente contraditório na cantiga, já que
elogiosos num primeiro momento, na realidade acirra o ridículo da cena, oiis
são irónicas: Sancha cavalgaria como um homem, montada sem feminilidade, e
estaria excessivamente vestida, o que ampliaria a sua forma redonda e cheia, ou
seja, um saco / um fardo de palha. O retrato que dela é apresentado até aqui é
o de alguém fisicamente feio e moralmente guloso e sodomita, para cuja
construção contribuem expressões coimo “dona peior talhada”, “tan gran mostea”,
“en cima da mua” e “velha fududancua”, que, no fundo, a retratam como uma
mulher velha e balofa. Em contraponto, a composição poética dá-nos igualmente
traços positivos, como “cavalgar per ua aldeia”, “com un seu escudeiro” e “mui
bem vistida”, que indiciam uma montada, um escudeiro e roupa de qualidade.
Atente-se
no facto de outros autores apresentarem uma versão diferente dos dois versos
iniciais da segunda estrofe: “Vi-a cavalgar, muach’e sendeiro, / e nom ia
milhor um cavaleiro”, em vez de “mua e sendeiro”. O termo depreciativo “muacha”
é usado por D. Dinis numa sua cantiga. Por outro lado, a expressão “caval’ e
sendeiro”, enquanto indicadora de subida de estatuto (cavalo para montar,
acompanhado de uma besta de carga), aparece numa cantiga satírica de Martim
Soares. Assim sendo, a paródia resultará neste passo exatamente dessa imagem
típica do cavaleiro (no caso, substituindo o cavalo pela mula).
Além da
hipérbole e da ironia já referidas, a comparação com uma “mostea” é bem
significativa. De facto, esta sugere que Sancha Anes é uma mulher de formas
avantajadas (“peior talhada”, “mostea”), é um saco de palha. Se juntarmos a sua
imagem de uma figura velha, gorda e desengonçada, desfilando pela aldeia
montada a cavalo, ficaremos com a noção de quão ridícula é a cena. No fundo,
estamos perante uma caricatura grotesca da personagem, ridicularizando o seu
aspeto físico e a sua compostura (PAREDES, Juan. “Introducctión”. Roma. 2010).
O trovador zomba da feiura de Sancha Anes, afirma que nunca viu uma mulher tão
mal feita (“ca nunca vi dona peior talhada”), jura que é um saco de palha
(“quize jurar que era mostea”) e insulta-a, apelidando-a “fududancua”, um
vocábulo obsceno. A sátira à feiura física concretiza-se através da descrição
da ridícula cena do seu passeio a cavalo pela aldeia, descrição essa que serve
para evidenciar a sua conduta devassa e imoral, já que pratica a sodomia
(“fududancua”), que gerava grande repulsa na Idade Média. Deste modo, podemos
concluir que a sátira ao seu aspeto físico serve, na verdade, para denunciar a
sai feiura moral. Note-se que a prática da sodomia na época era penalizada
legalmente em várias legislações medievais.
Por
outro lado, esta cantiga configura o antidiscurso burguês, nomeadamente por
causa do uso do nome “dona”, característico das cantigas de amor, bem como da
adjetivação disfórica “peior talhada”. Corral-Diaz, a este propósito, defende
que as conotações semânticas do nome “dona” são essencialmente de tipo social,
designando uma dama aristocrática ou, noutros casos, uma mulher casada. Dito
isto, nas cantigas de escárnio e maldizer, o termo é usado ironicamente, como é
comprovado pelo tratamento cortês que era dirigido a soldadeiras ou quando se
satirizava o tipo das abadessas. No caso de Ana Sanches, nada se sabe sobre
ela, pelo que não há como determinar se era uma soldadeira ou uma simples
matrona, mas é possível presumir que era uma mulher de elevada posição social
pelos motivos já aduzidos: possuía uma montada, um escudeiro e roupas ricas.
A
mulher é representada, hiperbolicamente, como feia, velha e gorda,
metaforicamente associada a um elemento inumano: a “mostea”, um fardo de palha.
Tendo em conta a roupa extravagante que vestia e que permitia que se destacasse,
o efeito cómico provocado pela visão da senhora passeando a cavalo com o seu
excesso de roupas e as suas formas avantajadas é óbvio de roupas e as formas
avantajadas que ele até se benze (“santiguei-m’).
As duas
palavras mais importantes da cantiga são, portanto, “fudaduncua”, cujo uso
constitui uma antonomásia de cariz ofensivo, e “mostea”, nome que pode
significar ”carrada de palha”, configurando uma metáfora que sugere as formas
volumosas de Sanch Anes, mas também uma doninha, um animal mamífero das família
dos furões, que, segundo certas crenças medievais, era caracterizada por atos
anti-natura, como, por exemplo, conceber através da boca e parir pelas orelhas.
Um
outro vocábulo significativo é o adjetivo “encavalgada”, uma metáfora que
representaria a realização do coito. Assim sendo, Eukene Lanz interpreta a cena
do passeio a cavalo como uma metáfora de uma presumível relação sexual de Ana
Sanches com outra mulher. Porquê com uma mulher? Para a estudiosa, a explicação
reside na duplicidade do significado de “mostea” como carrada de palha ou como
dominha de corpo pequeno e alongado, que poderia meter-se em qualquer buraco,
incluindo o órgão sexual feminino, além da possível aceção da palavra “mua” (v.
14) como barregã, concubina ou amante. Atentemos nas palavras da própria Lanz:
«Sancha, descrita fisicamente tanto como uma mulher grande, ou, ao contrário,
pequena e enérgica, como uma doninha, aparece cavalgando sobre alguém que, no
final, é uma mula, ou seja, outra mulher. O sentido de união contra a natureza
vem reforçado pela exclamação “Ai, velha fududancua”, que poderíamos traduzir livremente
para “Ai velha sodomita!”. Não se deve tomar ao pé da letra essa denúncia. Sancha
Anes, longe de representar a parte passiva, é, sem dúvida, a parte ativa que
cavalga sua mula e parece fazê-lo como uma doninha, introduzindo-se na toca”.
Assim sendo, a alusão ao facto de a mulher cavalgar sem a feminilidade esperada
(“e nom ia milhor um cavaleiro”) confirmaria a homossexualidade feminina,
vincada pelo estereótipo da mulher masculinizada.
Em
suma, Sancha Anes é uma mulher que se distancia duplamente do arquétipo de
beleza feminina do género lírico (cantigas de amigo e de amor), descumpre os
preceitos da doutrina cristã por não ser casta e usufruir da sua sexualidade
sem o objetivo de procriar, fora do matrimónio, bem como, se considerarmos como
válida a hipótese sodomita, desafiar a natureza, relacionando-se intimamente
com uma mulher.
Outras
interpretações sugerem uma relação da mulher com o escudeiro que a acompanhava,
bem como que o cerne da sátira se centraliza no palheiro, local do encontro
licencioso, de onde ela saiu coberta de palha, confundindo-se com ela (sinédoque).
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