terça-feira, 14 de setembro de 2021
Cantigas de amigo: análise e interpretação
Análise da cantiga "Quem a sesta quiser dormir"
Na segunda
cobla, o «eu» lírico relata a sua experiência pessoal. De facto, ele dormiu um
dia naquela cozinha e aí teve a melhor sesta da sua vida desde o dia em que
nasceu, visto que nela não havia moscas por ser muito fria, pois não havia lume
/ não estava acesa nem alimentos para cozinhar.
Na terceira,
o sujeito poético afirma que aquela cozinha, por ser tão fria, é um bom local
para se refrescar o vinho… se alguém o der ao infanção, pois também não existe
bebida em sua casa, visto que não possui dinheiro para o comprar (“e se vinho
gaar d’alguém”).
Através da
hipérbole, criticam-se as condições miseráveis (a falta de dinheiro, a fome,
etc.) em que o infanção vive. Com a comparação, enfatiza-se a excelente sesta
que o sujeito poético fez em casa do infanção e a ausência de moscas, que
provam a falta de lume e de alimentos para cozinhar). Por meio da ironia,
expõe-se a situação económica frágil do infanção.
▪ o nome da pessoa criticada é
omitido;
▪ os recursos
estilísticos usados eram a ironia e as palavras com duplo sentido.
▪ Rima:
- esquema rimático: ababccb;
- rima cruzada nos quatro
primeiros versos, emparelhada no quinto e no sexto e interpolada nos quarto e
sétimo.
domingo, 12 de setembro de 2021
Análise de "Conselho"
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça
Embora
estejamos na presença de uma única quadra, trata-se de uma verdadeira arte
poética, ou seja, um conjunto de princípios que orientam a produção de um texto
poético. A estrofe abre com um conselho dirigido ao «tu» para ser paciente.
Esse conselho assenta no recurso ao modo imperativo («Sê»), que pressupõe a
existência do «tu», do interlocutor do sujeito poético, que recebe a mensagem
deste último e dela extrai ensinamentos sobre a arte de escrever poesia. Deste
modo, é possível concluir que o texto pressupõe uma finalidade didática, visto
que se apresenta como um ensinamento dirigido a todos aqueles que procuram
exercer a atividade poética.
A “explicação”
desse “conselho” é desenvolvida no resto da composição poética a partir do
recurso à metáfora e a nova comparação. Estes recursos estilísticos destacam a
naturalidade que deve estar na origem do texto poético, associado
metaforicamente a um fruto que, depois de amadurecido, se desprende naturalmente
do ramo da árvore. A metáfora do amadurecimento pode também remeter para a
ideia da reformulação / reescrita do texto: o escritor escreve e, depois,
corrige, reformula até encontrar a «versão» que o satisfaça. Por outro lado, a metáfora
e a comparação insinuam também a paciência e a espera que o processo criativo,
o processo de escrita implicam.
sábado, 11 de setembro de 2021
11 de setembro de 2021: 20 anos
Análise do poema "Ver claro"
Este poema de Eugénio de Andrade centra-se na questão poética. Ele tem início com uma afirmação perentória: “Toda a poesia é luminosa” (v. 1). Quer isto dizer que a poesia contém a verdade que lhe é característica; o problema reside no facto de os sentimentos, as emoções ou os preconceitos do leitor (a metáfora “nevoeiro dentro de si”) o impedirem de “ver claro”, ou seja, de compreender o que lê.
Há, porém,
uma solução para essa incompreensão: o contacto contínuo com o texto poético,
ideia traduzida pela reiteração “outra vez”. Esse contacto continuado com a
composição poética, por causa da forma insistente como é feito, acabará por
familiarizar o leitor com os processos característicos do texto poético, o que
fará com que a poesia se torne clara (atente-se na expressividade da hipérbole “ficará
cego de tanta claridade” – v. 10).
Note-se, porém,
que o alcançar dessa luminosidade é apresentado sob a forma de condição,
traduzida pela oração subordinada adverbial condicional presente entre os
versos 6 e 9. Assim sendo, não é certo que o leitor chegue mesmo à compreensão
do texto; pelo menos, se não mantiver o tal contacto ativo e continuado com
ele.
Essa dúvida
permanece no último verso do texto, através do qual o sujeito poético parece
querer abençoar todo o leitor que “viu a luz, a luminosidade” da poesia: “Abençoado
seja se lá chegar”.
Tendo em
conta esta análise, o título do texto torna-se ele próprio claro:
apontará para uma definição de «poesia», dado que remete para o seu principal
objetivo, que passa por observar sem constrições as ideias ou sentimentos
expressos pelo sujeito poético.
Análise do poema "Salmo"
é o bago de uva
macerado
nos lagares do mundo
e aqui se diz
para proveito dos que vivem
que a dor
é vã
e o vinho breve.
De facto, a
vida é associada a um “bago de uva” que, depois de “macerado / nos lagares do
mundo”, se transforma em «vinho». Note-se que, neste contexto, o vinho
simboliza a vivência humana, nomeadamente a sua brevidade, o seu caráter
efémero.
Por outro
lado, o adjetivo «macerado» (v. 3) remete para a dor e o sofrimento, dado que o
resultado da ação de macerar o bago de uva (a vida) é o seu esmagamento. Não
obstante, “a dor / é vã / e o vinho / breve”, ou seja, a dor e o sofrimento são
inúteis, visto que o resultado da maceração, ainda que aprazível (o vinho), é
breve, não dura muito, graças à passagem veloz do tempo.
Dado que o
poema constitui uma reflexão sobre a vida, o tempo verbal predominante é o
presente do indicativo, que, tendo em conta as ideias expressas no poema,
traduz a importância que o agora, o presente assume.
Relativamente
ao poema, o nome «salmo» refere-se a um hino através do qual se enaltece ou
engrandece algo; no entanto, neste poema, esse significado não se aplica. De
facto, a composição constitui uma reflexão sobre a vida e a sua efemeridade,
pelo que não se afigura como um livro de louvor, mas antes como um desabafo
sobre a temática abordada.
Análise do poema "Testamento", de Alda Lara
Análise de "Perfilados de medo"
Este poema de Alexandre O’Neill está escrito na primeira pessoa do poema, remetendo assim para um universo alargado que inclui o sujeito poético, mas que está para além de si.
Este «nós»
vive num estado permanente de medo, desorientação e passividade, pois
conformou-se com a situação, incapaz de reagir. Esse estado de espírito
justifica-se pelo facto de haver forças que instilam o medo, o oprimem (“dentes
oprimidos”) e perseguem (“pelo medo perseguido”).
A primeira
estrofe assenta na antítese entre medo e coragem. O «nós» apresenta-se
«perfilado» de medo, contudo, ironicamente, agradece esse mesmo medo. Porquê?
Esse sentimento pode ter um lado positivo, pois impedirá que se cometam atos
corajosos de revolta, de insubordinação («loucura»), que poderiam acarretar consequências
graves. Só deste modo se pode compreender o agradecimento pela existência do
medo. Assim sendo, face ao medo, a coragem tem muito pouca valia.
O oxímoro e
a ironia do verso 4 são muito significativos: “e a vida sem viver é mais segura”.
Estes recursos, por um lado, sugerem que a existência do «nós» é uma vida em
que não lhe é permitido viver e ser livre; por outro lado, indiciam que uma
existência sem decisões, sem riscos é mais segura para esse coletivo.
A segunda
estrofe veicula uma visão temporal tripartida: passado, presente e futuro. No
presente, o nós, “Aventureiros já sem aventura”, combate fantasmas. Neste ato,
procura recuperar um estado passado (“Aventureiros”, “do que fomos”) em que não
vivia imerso no medo e pretende preparar um futuro em que viverá sem receio e
com confiança e livre. Os “fantasmas” referidos no verso 7 simbolizam o medo
sentido pelo «nós», mas, no verso 11, são o próprio «nós», ou seja, são as
pessoas, pois não vivem a sua vida: o medo transformou-os em espectros que não
têm existência consoante com o ser humano e os seus atos não têm consequências.
Na terceira
estrofe, o medo em silêncio, com angústia, transforma o «nós» em loucos, em
fantasmas. Ele encontra-se “sem mais voz” e com o “coração nos dentes oprimido”.
Ora, o coração é o espaço dos sentimentos e das emoções (a revolta, o desejo de
liberdade, a coragem, etc.); estando «oprimido», tal significa que as pessoas
estão silenciadas, não têm liberdade de expressão, não podem dizer o que
sentem; assim sendo, de facto, não têm voz.
A última
estrofe apresenta o nós como um rebanho perseguido pelo medo, indiciando que se
trata de um conjunto que perdeu a individualidade. Por outro lado, essas
pessoas perderam o sentido da vida e, apesar de viverem em comunidade (“já
vivemos tão juntos e tão sós”) cada um sente-se isolado.
Outro
recurso destacado no poema é a anáfora presente nos versos 1, 6 e 9 (“Perfilados
de medo”), que reforça a ideia de que o «nós» vive «sem viver», devido ao medo;
vive de forma mecânica, devido ao medo; vive-se a vida em silêncio, sem
questionar a realidade que se «vive», devido ao medo. Em suma, as pessoas não vivem
plenamente, devido (sempre) ao medo.
A
compreensão da mensagem do poema não pode ser desconectada do contexto em que
foi produzido. Com efeito, ele surgiu pela primeira vez na obra Poemas com
Endereço, publicada em 1962, isto é, em pleno regime ditatorial de Salazar –
o Estado Novo, caracterizado por um ambiente de medo, perseguição e opressão
que se abateu sobre o povo português, que viveu décadas sem liberdade, em
constante medo e oprimido pelo tal regime.
Em suma, o
texto revela a oposição do poeta a uma forma de estar medrosa por parte dos
portugueses, por isso podemos considerar que se trata de um panfleto contra o
espírito conformado dos portugueses, que O’Neill abomina.
Formalmente,
o poema é um soneto constituído por 2 quadras e 2 tercetos, num total de 14
versos, todos decassilábicos. A rima é cruzada e emparelhada (de acordo com o
esquema abab / baba / cdc / dcd), consoante (“loucura”/”segura”), pobre
(“combatemos”/”seremos”) e rica (“voz”/”nós”).
Análise de "O seu santo nome"
O título do poema remete para a Bíblia, que, em determinado passo, adverte o crente para não invocar o santo nome de Deus em vão.
Neste caso,
o «santo nome» em causa refere-se ao amor, apresentado como tão divino quanto o
símbolo do sagrado. Assim sendo, não deve ser pronunciado em vão.
Toda a
composição poética assenta na anáfora, uma anáfora de carácter negativo. De
facto, o advérbio de negação que está presente nos versos 1, 2, 3, 4, 5 e 8 estrutura
esta espécie de lição sobre o amor em termos negativos, dado que o sujeito
poético enumera um conjunto de atitudes que não devem ser tomadas face ao
sentimento amoroso, para que o leitor aprenda o comportamento «correto» a
adotar face ao amor.
O primeiro
verso do texto sugere, desde logo, tratar-se de uma palavra sagrada, daí ser
necessário ter respeito por ela: “Não facilite com a palavra amor”. De seguida,
o «eu» poético sugere que é perigosa, fugidia no que diz respeito ao seu
significado, podendo mesmo gerar ambiguidade e complicações para quem a emprega.
Mais do que usar de forma leviana a palavra «amor», o sujeito lírico defende
claramente que, antes, se deve conhecer o seu valor, ou seja, deve saber-se
primeiramente sentir aquilo para que ela remete.
Note-se que
a negação presente no poema é totalmente irónica. De facto, o «eu» adverte o
leitor/tu sobre os perigos do amor, mas acaba por incitar à sua procura, no
contexto de um mundo sem sentido e insensível. Neste seguimento, o último verso
aponta para a necessidade de sentir. O santo nome do amor não deve ser
pronunciado, mas, antes, sentir-se.
quinta-feira, 9 de setembro de 2021
Análise de "O Recreio"
Este poema é
constituído por seis estrofes, três quadras e três tercetos intercalados entre
si (o que exprime o ritmo monótono e regular do baloiço), nu cair no poço e m
total de 18 versos, todos em redondilha maior, com rima cruzada e versos
brancos (o 5, 11 e 17).
Aparentemente,
a composição descreve uma situação “simples”: uma criança brinca num baloiço
situado à beira de um poço, correndo perigo de vida desde logo, aumentado pelo
facto de a corda estar a esgarçar-se. A criança em questão é de tenra idade,
dado que está de bibe, está sempre a brincar e revela total inconsciência do perigo
a que está sujeita, como é evidenciado pela sua atitude negligentemente
perigosa: baloiça perto de um poço, num baloiço em mau estado, cuja corda está
esgarçada e, portanto, se encontra prestes a partir. Não obstante a
probabilidade de cair no poço e morrer afogada, continua a baloiçar
tranquilamente.
O sujeito
poético observa a situação e reage de forma indiferente e displicente, já que
tem noção de que a corda está esgarçada, mas isso não parece incomodá-lo. Além
disso, nada faz para retirar a criança da situação de perigo e até acaba por
ironizar, ao afirmar que, se ela morrer afogada, se acabará a «folia», a
brincadeira. Mais: acrescenta que poderia, se quisesse, mudar a corda, mas não
o fará, pois essa mudança exigiria um grande esforço (“Seria grande estopada…” –
v. 12) da sua parte. Perante a possibilidade de o menino morrer afogado, o
sujeito poético não encara o facto como grave nem a possibilidade de o salvar.
Pelo contrário, defende que deve continuar a baloiçar, isto é, a divertir-se
enquanto está vivo. E conclui o poema (re)afirmando que seria fácil mudar a
corda, mas admite que tal ideia nunca lhe ocorreu.
O título
é outro elemento bastante importante para a perceção do poema. De facto, se
atentarmos na palavra de forma isolada, o nome «recreio» remete para um espaço
que está associado a crianças, no qual estas brincam alegremente. Assim sendo,
trata-se de um local conotado com a alegria e a diversão. As referências, no
início do poema, ao «balouço» e ao «menino de bibe» parece, comprovar essas
características do espaço do recreio. Contudo, à medida que a composição
poética se desenvolve, a noção de recreio passa a estar associada à noção de
perigo e eventual morte, inclusive da aceitação natural da mesma.
Note-se,
porém, relendo o primeiro verso, que o «balouço» está a baloiçar na alma do
sujeito poético. Ora, isto significa que a leitura do texto não será tão
simples como à partida pareceria. A imagem da Alma como sede de um baloiço
(metáfora de instabilidade), à beira de um poço (símbolo de uma situação de
risco), com a corda «esgarçada» (reveladora de perigo iminente) e utilizado por
uma criança (totalmente inconsciente do perigo), configura uma forma insensata
e insegura de viver. Esta noção é acentuada pelo movimento do baloiço, que pode
traduzir o vazio repetitivo da sua vida.
Neste
contexto, o título terá uma dupla dimensão: descritiva (o baloiço, o
menino a brincar) e irónica (a recusa da vida adulta e a aceitação da morte
prematura).
As duas
primeiras estrofes descrevem a situação presente, no entanto, a partir da
terceira, somos projetados para o futuro e para a incerteza que o caracteriza.
Esse contraponto entre passado/presente e futuro é sugerido por várias
antíteses e contrastes: presente/futuro, criança/adulto, sonho/realidade,
ilusão/desilusão, vida/morte. Estes contrastes, por outro lado, são traduzidos
pela ideia do movimento do baloiço, no seu constante vaivém.
A corda que
prende o sujeito aos polos positivos (a infância, o sonho, a ilusão) está a
romper-se. Note-se que o verso entre parênteses remete para o interior do
sujeito poético: o «eu» reconhece a situação perigosa em que se encontra, mas
nada fará (mudar a corda) que a altere. Tratar-se-á de orgulho ou de uma saída,
drástica, mas definitiva, para o seu problema existencial. Que tudo isto remete
para a infância (enquanto tempo da ingenuidade, da inconsciência, da ausência
de pensamento e de razão, e da alegria e felicidade) é confirmado pela
expressão «Era uma vez» (v. 9), uma fórmula usada nos contos tradicionais
populares e nas históricas infantis, traduzindo um tempo indefinido e
indeterminado.
O sujeito
poético prefere a morte a uma mudança de vida e prefere morrer enquanto
criança, em vez de no estado de adulto: “Mais vale morrer de bibe/Que de casaca…”
– vv. 14-15). É preferível continuar a ser feliz enquanto se vive. Tratar-se-á
de uma situação em que o «eu» recusa a vida adulta («de casaca») e prefere
morrer prematuramente («de bibe»). Se quisesse, poderia mudar a corda, mas
recusa tal ideia; ora, isto metaforicamente significa que o «eu» não quer mudar
o seu «interior», não quer deixar de ser criança e tornar-se adulto, dado que
as crianças não têm preocupações como os adultos, são ingénuas e felizes.
Estas ideias
são desenvolvidas em estrofes que alternam entre a quadra e o dístico (cada um
iniciado por travessão): nas quadras descreve-se a situação, enquanto os
dísticos constituem uma espécie de apartes, onde o sujeito poético revela a sua
indiferença, o seu cinismo e até sadismo relativamente ao perigo e à morte.
Esta alternância regular de três quadras e três dísticos gera um ritmo (binário)
que traduz o movimento balanceado da imagem poética e, ao mesmo tempo, do
desdobramento temático em duas instâncias: o narrador e a personagem (o
«menino»). Por outro lado, tendo em conta as leituras do poema, o tom do texto,
à primeira vista, ser ligeiro e inocente, na realidade, é de profunda tristeza
e amargura.
Note-se,
ainda, que a composição poética contém uma estrutura narrativa, dado que
o texto é desenvolvido com quem conta uma história, com as categorias próprias
da narratividade:
• espaço: a «Alma»
com o seu «balouço» e o seu «poço»;
• tempo: «sempre»,
«um dia» (presente – futuro);
• ação: os atos de
baloiçar e brincar por parte da criança;
• personagens: o
sujeito poético (o narrador) e o «menino de bibe».
Esta caráter narrativo do poema cria um efeito de
distanciação, sugerindo o desdobramento do «eu».
Estilisticamente,
há a assinalar, além dos recursos já identificados, o apelo às frases
reticentes, que deixam por concluir os comentários do sujeito poético, podendo
também sugerir a sua indiferença. Por outro lado, são visíveis marcas de
oralidade de registo familiar e expressões típicas da linguagem popular («Era
uma vez»; «Cá por mim»; «Grande estopada»).