3.1. Crise
económica e conflitos sociais
A época que assistiu ao nascimento de Fernão Lopes
caracterizou-se por grave crise económica, uma verdadeira recessão, devido à quebra demográfica, provocada por:
-
fomes e epidemias, que tiveram como origem:
. a diminuição da produtividade;
. maus anos agrícolas;
. más condições climatéricas.
A epidemia mais grave foi a peste negra que, vinda da Crimeia, alastrou pela Europa entre 1347
e 1350. Pressupõe-se que provocou a morte a um terço da população europeia.
Em Portugal, a peste negra surgiu em 1348 e instalaram-se
o pânico e a desolação, devido ainda às guerras, que originaram também a morte
de muitas pessoas.
A situação social piorava, a burguesia acusava os
senhores de saques, de cobrar grandes taxas e de lhes fazer uma concorrência
desleal no comércio.
Assim, vivia-se uma grande instabilidade social e os
levantamentos populares aconteciam de uma forma constante, uniões, como resposta à desvalorização da moeda e às flutuações dos
preços. E as gentes miúdas, cansadas de tanta exploração, atacavam os castelos,
numa revolta sem par, lutando já pelos seus direitos.
Portugal, à semelhança da Europa, atravessou grandes
dificuldades, pois, além das epidemias, também teve que se haver com a guerra
com Castela, que enfraqueceu o país, precipitando-o numa grande crise económica
e social:
. revoltas estalaram nos campos e nas
cidades;
. as aldeias e o interior ficaram
despovoados;
. deu-se o êxodo rural em direcção às
cidades;
. a mão de obra diminuiu;
. a produção agrícola diminuiu
consequentemente.
Os reis criaram uma série de mecanismos na tentativa de
solucionar esta crise:
. o tabelamento de preços;
. a obrigação de ociosos e vadios
trabalharem;
. leis que objectivavam travar o aumento dos
salários;
. a lei
das sesmarias.
Com esta lei, publicada em 1375, D. Fernando obrigava os
camponeses ao cultivo da terra, assim como os vadios, os falsos religiosos e
mendigos, mediante salários tablados, enquanto os senhores da terra não podiam
abandonar as suas terras com risco de as verem divididas em pequenas parcelas –
sesmos - , que seriam distribuídas por quem as
desejasse cultivar.
Todavia, estas leis vieram agravar as relações entre
senhores e camponeses que não estavam dispostos a cumpri-las; as queixas
multiplicaram-se e os conflitos agudizaram-se.
Com a morte de D. Fernando, o país viu-se em grandes
dificuldades económicas. Apesar de o pai, D. Pedro, ter deixado o tesouro bem
fornecido, as constantes guerras com Castela consumiram tudo. Só com a terceira
guerra se negociou a paz, em 2 de Abril de 1383, pelo tratado de Salvaterra de
Magos.
Um dos pontos desse tratado previa o casamento de D.
Beatriz, filha primogénita e herdeira do rei de Portugal, com o rei de Leão e
Castela. Como forma de acautelamento do reino, o tratado previa que, caso D.
Fernando morresse, a rainha D. Leonor assumiria a regência, enquanto o seu
hipotético filho não atingisse os catorze anos, idade com que assumiria o
trono.
O povo não viu com bons olhos o casamento de D. Fernando
com Leonor Teles, a lavrador de Vénus,
que simbolizava a grande nobreza fundiária.
Vejamos o que a respeito deste assunto nos diz A. José
Saraiva (in As Crónicas de Fernão Lopes).
«No século XIV e durante parte do século XV, o rei
funciona por vezes como um árbitro entre (...) os "vilãos", isto é,
os habitantes das "vilas" que cresciam à volta dos castelos (...) e
os senhores de grande poder ou simples fidalgos. Os do castelo e os da vila
pertencem a mundos diferentes, que vivem em tensão, prontos a guerrear-se ao
primeiro pretexto; e se os do castelo obedecem ao preceito da fidelidade feudal
ao rei, seu senhor, os da vila tendem a considerar-se um poder autónomo, e
reúnem-se de moto próprio para deliberar sobre os casos importantes, tais como
o casamento do rei, a sucessão do Reino ou a defesa da própria vila contra os
invasores. (...)
Se o rei D. Pedro aparecia mitologicamente ao seu povo
como um protector e um pai porque mandava cortar a cabeça aos fidalgos que
dormiam com as filhas dos cidadãos, e porque não lançava tributos nem quebrava
moeda, à custa da subsistência deles, o rei D. Fernando é pelo mesmo povo
amaldiçoado (...) porque provocava guerras para conquistar terras alheias e
satisfazer caprichos sentimentais; porque repetia, a seu bel-prazer, quebras de
moeda (isto é, desvalorizações) que arruinavam o povo; porque mandava apanhar
homens pelas aldeias e trazê-los acorrentados em baraços para o serviço das
naus que enviava a guerrear o rei de Castela. (...) Ele não tinha força para se
recusar a ir a um comício proposto em nome da gente de Lisboa por um alfaiate;
mas escapava-se clandestinamente ao compromisso assumido, e mandava assassinar
pela calada, ou a favor da fraca memória colectiva, os caudilhos populares que
antes fingira acatar.
Entre a vila e o castelo a tensão só esperava a ocasião
propícia para se transformar em guerra. A crise dinástica levantada pela morte
do rei foi o detonador. (...)
A insurreição foi possível graças ao enfraquecimento da
autoridade, resultante da morte do rei na ausência do seu sucessor, e ainda da
incerteza que havia acerca da regência de Leonor Teles, contestada pelo
castelhano. Naquele momento quem mandava?
Foi a dúvida sobre este ponto que enfraqueceu de momento
a estrutura feudal e tornou possível a sua subversão pelas forças inimigas que
até aí se equilibravam com ela.
Logo após a morte do rei, os cidadãos de Lisboa,
colectivamente, apresentam-se perante D. Leonor para lhe recomendarem normas de
governo, incluindo um Gabinete de que fizesse parte certo número de cidadãos
representantes das várias províncias do Reino, e para reclamarem entre outras
coisas a abolição do direito de aposentadoria. Mas um velho cidadão premeditava
uma insurreição em forma, a pretexto de vingar a honra do rei defunto, com a
morte de um dos seus mais importantes conselheiros, acusado de ser o amante da
rainha viúva. Este conde era de facto a personalidade mais saliente do Governo
responsável pelas guerras de D. Fernando, e particularmente pelo flagelo que
foi a vinda a Portugal das tropas inglesas. O seu assassínio serviu para derrubar
em Lisboa a ordem estabelecida, e lançar um caudilho que pela sua própria obscuridade
e mediocridade pessoal podia ser um agente passivo dos promotores da revolução
vilã. Sendo o último dos candidatos possíveis ao trono, D. João, mestre de
Avis, filho bastardo do rei D. Pedro, foi, no entanto, proclamado pelo povo da
cidade Regedor e Defensor do Reino. Um dos primeiros actos que subscreveu foi
que nada dentro da Cidade poderia ser resolvido sem a aprovação de dois representantes
de cada um dos doze ofícios reconhecidos.
A revolução alastrou bem depressa ao Porto, e a outras
vilas, especialmente no Alentejo. (...)
Mas todas estas revoluções somavam uma, ao fim e ao cabo:
a vila derrotava o castelo. O esquema repete-se: o castelo proclamava a rainha
feudalmente legítima, a vila deliberava não a aceitar, e punha cerca ao
castelo, que depois de tomado era derrubado, pelo menos na parte que dava para
a vila. Não contentes com a demolição, os vilãos, em muitos casos, coroavam a
vingança com o incêndio das muralhas e das torres.
O novo direito, o direito do povo a escolher um chefe da
sua nacionalidade e confiança, revogando os laços de vassalagem senhorial,
triunfou nas Cortes de Coimbra, pela palavra de João das Regras. (...)
Em resumo, o equilíbrio instável entre as duas grandes
forças que se afrontavam na época de D. Pedro e de D. Fernando rompeu-se
momentaneamente a favor dos homens das vilas. As instituições feudais
persistiam, é certo, e não chegara ainda o tempo da sua abolição.»
3.2. A crise de
1383-1385
A chamada revolução de 1383-1385 teve dois momentos: o de 1383, realizado pelo «povo miúdo», de carácter de protesto contra as condições de vida e contra a aclamação de D. Beatriz; o de 1385, levado a cabo pelos burgueses quando reconheceram que os seus interesses estavam em causa e que poderiam aproveitar-se da força popular em seu benefício.
D. Fernando, último rei da 1.ª dinastia, morreu em 1383,
deixando como herdeira do trono a infanta D. Beatriz, única filha que vingou do
seu casamento com Leonor Teles. Mas D. Beatriz casara meses antes com D. João
I, rei de Castela. O contrato do casamento previa que D. Leonor Teles
conservasse a regência até que D. Beatriz tivesse filho varão, maior de catorze
anos, que seria o herdeiro da coroa portuguesa, mas não da de Castela, visto
que o rei castelhano tinha filhos de anterior casamento.
A aclamação de D. Beatriz como rainha foi mal aceite
pelos que consideravam que o trono devia pertencer a um irmão de D. Fernando, o
infante D. João, filho de D. Pedro I e Inês de Castro. Os burgueses citadinos
reagiram contra a regência de D. Leonor Teles que significava a continuação da
orientação política do reinado anterior.
A revolta deflagrou em Lisboa. Alguns nobres e os grandes
burgueses decidiram a morte de João Fernandes Andeiro, conde de Andeiro, amante
de D. Leonor Teles, um fidalgo galego que tinha sido o principal obreiro do
tratado de casamento de D. Beatriz com o rei de Castela, tratado que na prática
equivalia à entrega de Portugal a Castela.
Para essa arriscada missão foi escolhido D. João, mestre
da Ordem de Avis, filho bastardo de D. Pedro I e de uma dama galega, Teresa
Lourença. O assassinato do Conde de Andeiro teve lugar em Dezembro de 1383.
A população de Lisboa, alertada para dar apoio a este
golpe, assumiu a direcção dos acontecimentos. Os mesteirais e o «povo miúdo»
proclamaram o mestre de Avis regedor e defensor do reino, isto é, regente.
Ficaram célebres as palavras de um tanoeiro perante a hesitação dos mais
honrados da cidade. Falando em nome da população que se reunira à volta da casa
da Câmara, afirma: "Vós outros que
estais assim fazendo? Quereis vós aceitar o que vos dizem? Ou dizei que não
quereis, porque eu nesta cousa não aventurei mais que este pescoço, e quem isto
não quiser aceitar é preciso que logo o pague pelo seu antes que daqui
saia." Este argumento foi decisivo.
O mestre organizou um conselho de governo com legistas e
mercadores, sendo criada a Casa dos Vinte e Quatro, conselho constituído por
vinte e quatro homens, dois de cada um dos doze mesteres mais importantes, que
funcionava na Câmara de Lisboa.
Perante este estado revolucionário, a regente D. Leonor
Teles pede auxílio ao rei de Castela. Este, considerando a impopularidade da
regente como o maior obstáculo à aceitação pelos portugueses da sucessão de D.
Beatriz, obrigou-a a desistir da regência em favor dele, rei de Castela. Em
fins de Maio de 1384 pôs cerco a Lisboa com um poderoso exército. Todavia, teve
que regressar a Castela em Outubro para reunir forças, devido a uma mortífera
epidemia de peste.
No Alentejo, D. Nuno Álvares Pereira consegue, com um
bando de camponeses, derrotar um forte corpo de cavalaria castelhana. Foi a
batalha de Atoleiros em 6 de Abril de 1384. Esta vitória evidenciou a força do
povo e a possibilidade de uma resistência vitoriosa. D. Nuno conseguiu
mobilizar toda a força dos camponeses para a defesa da causa do mestre de Avis.
Em Abril de 1385, reuniram Cortes em Coimbra. Aí, por
pressão dos representantes dos conselhos, orientados pelo célebre jurista João
das Regras, o mestre de Avis foi aclamado rei. Decidiu-se também que o conselho
do rei fosse formado por dois representantes de cada um dos grupos sociais:
clero, nobreza, letrados e cidadãos.
O rei de Castelo volta a invadir Portugal com um numeroso
e poderosos exércitos, onde se integrava a maioria da nobreza portuguesa. No
dia 14 de Agosto de 1385, em Aljubarrota, os dois exércitos encontraram-se. As
tropas portuguesas, muito menos numerosas, utilizando a técnica do quadrado,
infligiram uma notável derrota aos castelhanos, com consequências políticas
definitivas. D. Nuno Álvares Pereira teve acção decisiva nessa batalha. A
guerra prosseguiu durante alguns anos, limitada a pequenos confrontos
fronteiriços, o mais conhecido dos quais é a batalha de Valverde, em Outubro de
1385, vencida por D. Nuno Álvares Pereira, na região de Mérida. A paz veio a
ser assinada em 1411.
3.3. A revolução de
1438-1439
Não se pode, portanto, ler a 1ª parte da Crónica sem a
relacionar com a situação política da época em que foi escrita, e cujos
interesses e paixões se reflectem na interpretação dada por Fernão Lopes à
revolução que nos descreve.
No capítulo CXXIII, não longe do fim do livro e
precisamente no capítulo que tem a função estética e lógica de epílogo, o
escritor fixou a data em que escrevia: 1443. O início da redacção deve datar de
dois ou três anos antes. Além de escritor, Fernão Lopes era burocrata e tinha
de passar boa parte do seu tempo a fazer buscas e passar certidões. Se admitirmos,
como base de cálculo, a produção média de um capítulo por semana, encontraremos
como data do início da obra a segunda metade de 1439 ou a primeira do ano
seguinte.
Estava-se então no início do reinado de D. Afonso V, que
nascera em 1432 e tinha, portanto, sete ou oito anos. Quem governava era o
infante D. Pedro, que conquistara o poder através de um movimento cujos
principais episódios tinham decorrido em Lisboa durante os anos de 1438 e 1439.
Entre as crises políticas que levaram ao poder o Mestre
de Avis em 1383-1385 e o infante D. Pedro em 1438-1439 há muitas
dissemelhanças, quer nos factos em que elas se revelaram quer nas causas de que
procediam. Apesar disso, há, nos respectivos relatos (o da primeira devido a
Fernão Lopes, o da segunda a Rui de Pina, na Crónica de D. Afonso V),
coincidências surpreendentes que obrigam a relacionar as duas revoluções e a
perguntar até que ponto a primeira não foi descrita a partir do modelo proporcionado
pela segunda.
=> Em ambas as revoluções o conflito surgiu a propósito
da regência: discutia-se se o governo devia ser exercido pela rainha viúva,
como ficara escrito (no século XIV a rainha era Leonor Teles e o escrito era o
contrato de casamento de D. Beatriz com D. João I de Castela; no seguinte, a
rainha era D. Leonor de Aragão e o escrito era o testamento de D. Duarte,
falecido em 1438), ou se por um irmão mais novo do falecido rei.
=> As opiniões dividiam-se do mesmo modo: os nobres
estão do lado da viúva, os oficiais mecânicos e o povo miúdo preferem o governo
do irmão.
=> O conflito eclode num momento semelhante: em ambos
os casos, na altura das cerimónias fúnebres por morte do rei.
=> Os fidalgos começam por, imprudentemente, minimizar
a importância das forças do povo: «por parte do infante D. Pedro, quando muito pudesse ser,
seria o povo e gente miúda, que, sem cabeceiras, não teria força nem daria
ajuda», pensam
os nobres do século XV, reunidos em Torres Novas; «tal sandice qual levantam dois
sapateiros e dois alfaiates não era cousa para ir por diante», pensam os nobres do século
XIV, reunidos em Alenquer.
=> Em ambos os casos é o povo de Lisboa quem
desencadeia o impulso revolucionário. Os nobres ocupam com os seus soldados o
castelo da cidade, para desse modo se oporem ao movimento popular; mas o povo
cercou a fortaleza, impediu os de dentro de receberem socorros de fora e os
nobres tiveram de desistir da resistência.
=> A
rainha, alarmada com os alvoroços da cidade, vai, no século XV, do mesmo modo
do que no século XIV, refugiar-se em Alenquer. E dali ambas as Leonores
escreveram à gente de Lisboa no intuito de a tranquilizar, assegurando, em
troca da submissão, o perdão da rebeldia. Mas, enquanto faziam isso, mandavam
correios para Castela a pedir o auxílio de tropas para jugularem a revolução.
=> Até os termos com que ameaçam são semelhantes:
dizia D. Leonor Teles (ou Fernão Lopes a faz dizer) que não sossegaria enquanto
não visse os tonéis cheios das línguas das mulheres maldizentes de Lisboa;
diziam os criados de D. Leonor de Aragão que ainda haviam de ver as canastras
da Ribeira cheias de pés e mãos decepados, como se fossem pescado.
=> Mas o povo não cede. Reúne-se em S. Domingos e
aclama ruidosamente o seu herói. Diz o relato do século XIV: «não esperando que falasse um por
todos, mas quantos hi eram juntos...»; diz o do século XV: «tantas vozes que nenhuma não se ouvia».
=> Os homens ricos não mostravam o mesmo entusiasmo,
temerosos dos riscos da aventura; mas a sua hesitação acabou do mesmo modo. No
século XIV foi o tanoeiro que lhes mostrou o gume cortante da espada e lhes
disse que salvariam as fortunas, mas não salvariam as gargantas, «e todolos que hi estavam do povo miúdo
aquela mesma razão diziam»; no século XV o burguês timorato teve de fugir para salvar a vida «a que o rumor do povo começava já de
ser contrário».
E poderiam fazer-se mais aproximações. Dir-se-ia que a
história se repetiu. Ora a história nunca se repete: o que se pode repetir são
os olhos com que nós a vemos.
Em suma, a crise de 1383-85 desenvolveu-se com as seguintes etapas:
Em suma, a crise de 1383-85 desenvolveu-se com as seguintes etapas:
- 2 de abril de 1383: Tratado de Salvaterra de Magos (acordo do casamento entre D. Beatriz e D. João I de Castela);
- 22 de outubro de 1383: morte de D. Fernando; D. Leonor Teles assume a regência; o rei de Castela ambiciona o trono de Portugal;
- 6 de dezembro de 1383: o Mestre de Avis mata o conde Andeiro;
- de maio a setembro de 1384: guerra com Castela - cerco castelhano à cidade de Lisboa;
- 6 de abril de 1385: cortes de Coimbra - D. João I é aclamado rei de Portugal;
- 14 de agosto de 1385: Batalha de Aljubarrota.
3.4 A autoridade da
nobreza e o início da expansão ultramarina
O
episódio culminante das lutas da regência é o acto revolucionário de 1439, pelo
qual a cidade de Lisboa, num comício, elege D. Pedro «regedor e defensor» e
declara solenemente assumir o compromisso de defender em cortes e sustentar
pelas armas esta eleição. Pela segunda vez em menos de sessenta anos, o povo da
cidade, enfrentando a oposição da nobreza, assumia o direito de eleger o chefe
do Estado e conseguia fazer confirmar esta eleição pelo voto das Cortes e
torná-la efectiva pela força armada.
Mas as forças populares e burguesas não estavam ainda em
condições de constituir um Poder perdurável. Passada a época da anarquia e da
partilha do poder, a hierarquia tradicional foi restaurada, embora com
alterações. Em Portugal, a Batalha de Alfarrobeira (1449) marca o fim deste intermezzo e o regresso da nobreza ao
seu tradicional papel de governante. Nela foi morto o infante D. Pedro, regente
por eleição popular, que avançava em som de guerra contra o rei, manejado pela
coligação dos nobres. A cidade de Lisboa emudeceu neste emergência, como se se
tratasse de um duelo militar entre hostes senhoriais, que não lhe dizia
respeito. A partir de então as insurreições populares cessaram e a autoridade
da nobreza tornou-se incontestada.
Fernão Lopes é ainda contemporâneo do início da expansão
ultramarina. Em 1415, é conquistada Ceuta por D. João I; em 1437, os
Portugueses, sob o comando do infante D. Henrique, são derrotados em Tânger,
onde ficou preso o infante D. Fernando e com ele um filho de Fernão Lopes, seu
médico. Ceuta resiste a vários assaltos. Só depois de Alfarrobeira se volta às
empresas de conquista em Marrocos, com a expedição de D. Afonso V, em 1457.
Simultaneamente, as caravelas portuguesas vão abordando e descobrindo a costa
africana, em direcção ao sul, e as ilhas do Atlântico. Nas ilhas inicia-se a
colonização agrícola; na África a exploração económica toma de início o
carácter de assalto armado com vista à captura de escravos, cujo comércio se
organiza e amplia a partir de 1431, juntamente com o de vários produtos, como o
marfim, a malagueta e, finalmente, o ouro.
As
tensões e lutas sociais referidas reflectiam-se na orientação da expansão
ultramarina, cujo principal promotor, o infante D. Henrique, é a mais
considerável personagem do partido da nobreza. O desastre de Tânger deu lugar a
uma larga polémica e foi discutido em Cortes se se devia ou não trocar a
liberdade do infante refém pela cidade de Ceuta. No entanto, a expansão,
abrindo aos nobres e alguns mercadores oportunidades de enriquecimento,
contribui, finalmente, para apaziguar as tensões antigas.
A. José Saraiva, Fernão Lopes
3.5. A solução atlântica
3.5.1. Ceuta
e a política africana
Em 1415, decorridos apenas quatro anos sobre a assinatura
da paz com Castela, o rei de Portugal, à frente de uma enorme expedição militar
(19 000 combatentes, 1700 marinheiros, 200 navios), conquistou Ceuta, no Norte
de África, facto considerado como o ponto de partida da política oficial da
expansão ultramarina.
Que razões levaram os portugueses a Ceuta?
A explicação tradicional era a da crónica de Zurara: os
infantes combinaram pedir a D. João I a realização de um grande torneio,
durante o qual fossem armados cavaleiros, mas o vedor da Fazenda, João Afonso,
convenceu-os de que os cavaleiros devem ser armados em campanhas a sério, não
em alegres passatempos, e insinuou o projecto da expedição ao Norte de África.
A versão de Zurara é, portanto, a que está mais de acordo
com tudo quanto conhecemos e também com a mentalidade da época. D. João I
fizera o voto de que, se chegasse a ver concluída com êxito a sua guerra com
Castela, realizaria uma festa como ninguém ainda vira. Esse projecto de
comemoração evolui depois, e em vez de festa de cavalaria faz-se uma expedição
cavaleiresca, que tinha a vantagem de proporcionar o proveito do saque. Além
disso, um grande triunfo militar viria contribuir para o prestígio do rei de
Portugal, um rei bastardo, revolucionário e cujo direito era posto em dúvida
por muita gente. O papel do voto comemorativo deve ter sido decisivo. Como se
sabe, foi de um voto desse género que nasceu a construção do Mosteiro da
Batalha. Ora, como D. João I explicou aos seus fidalgos reunidos em Torres
Vedras, as pazes de 1411 não eram menos importantes que Aljubarrota; por isso,
afirmou, meditara muito tempo numa comemoração condigna e o projecto de Ceuta
parecia-lhe a mais indicada.
Com a conquista portuguesa, Ceuta, que tinha sido um
activo centro comercial, converteu-se numa cidadela em luta constante e que
tinha de ser abastecida pelo mar, com recursos idos de Portugal. Em 1425, o
infante D. Pedro escreveu que Ceuta se tornava num «mui bom sumidoiro de gente, de armas e
de dinheiro»,
acrescentando que em Inglaterra se pensava que a conservação da cidade era um
erro.
Apesar de tudo, Ceuta foi mantida e a ideia de uma
expansão militar no Norte de África foi uma das constantes da política
portuguesa até aos finais do século XVI.
Em 1437 fez-se nova expedição, que tinha por objectivo a
conquista de Tânger, Arzila e talvez ainda outras regiões. A empresa terminou
por um completo desastre militar. Para poderem reembarcar, os Portugueses
comprometeram-se a restituir Ceuta aos Mouros. O infante D. Fernando, irmão do
rei D. Duarte, ficou como refém do cumprimento da promessa. As Cortes, chamadas
a pronunciar-se sobre o assunto, não aprovaram a negociação e o infante morreu
no cativeiro.
3.5.2. A
exploração da costa africana
A exploração do litoral africano começou talvez pouco
depois da conquista de Ceuta. Há notícia de uma viagem de exploração ordenada
pelo infante D. Henrique em 1416. Mas o primeiro grande feito marítimo que
inicia a progressiva descoberta do contorno marítimo da África é a ultrapassagem do cabo Bojador, feita em
1434 por Gil Eanes. A última etapa foi a passagem
do cabo da Boa Esperança, extremo sul da África, por Bartolomeu Dias, em
1487. O reconhecimento da costa ocidental da África demorou portanto cinquenta
e três anos.
D. Henrique morreu em 1460 e não há dúvida de que com a
sua morte coincide um abrandamento no reino dos descobrimentos. Em 1469, um
rico mercador de Lisboa, Fernão Gomes, arrendou à coroa, pelo período de cinco
anos, o exclusivo do comércio com a Guiné, nome que então se dava à zona
conhecida da África além do Bojador, com excepção do Castelo de Arguim,
construído poucos anos antes e que servia de entreposto comercial com a região
do Rio do Ouro. Também era exceptuando o litoral em frente das ilhas de Cabo
Verde, zona de negócio reservada aos moradores das referidas ilhas. A zona cujo
comércio se arrendava era portanto só a que ficava a sul do cabo Verde, até à
serra Leoa, na extensão de cerca de 800 quilómetros. O preço que Fernão Gomes
devia pagar eram duzentos mil réis por ano, o que mostra que o valor deste
comércio não era grande; seis anos depois, o abade de Alcobaça vendia o seu
cargo ao cardeal de Alpedrinha por cento e cinquenta mil réis anuais e esse
facto causou escândalo, porque a quantia foi considerada irrisória em relação
ao verdadeiro rendimento da abadia. Mas, além do preço, o mercador assumia uma
outra obrigação: devia descobrir em cada ano 100 léguas de costa.
Até 1474 esteve a cargo do negociante a exploração da
costa africana, o que significa que esta obedeceu a objectivos comerciais.
Navegadores a soldo de Fernão Gomes descobriram de facto as costas do golfo da
Guiné até ao sul do Equador. Atribui-se-lhes também a descoberta das ilhas de
S. Tomé e Príncipe, Ano Bom, Fernão Pó. Quando o contrato expirou, o mercador
foi nobilitado e recebeu por brasão de armas um escudo com cabeças de negros
enfeitadas de arrecadas de ouro nas orelhas, nos narizes, no pescoço. Era um
brasão expressivo: negros e ouro tinham sido o seu serviço à coroa. Mais tarde,
foi nomeado para o conselho do rei.
Em 1474, o herdeiro do trono, futuro D. João II, passou a
dirigir pessoalmente as navegações, e é nessa altura que o objectivo de atingir
a Índia contornando a África se torna claro. As navegações passam a ser
acompanhadas de uma enérgica e hábil acção diplomática. No Tratado de
Alcáçovas, que se destinava a regular questões completamente diferentes (as
aspirações de D. Afonso V ao trono de Castela), foi introduzida uma cláusula
que punha termo à concorrência que os barcos espanhóis nos faziam nas águas
africanas: o mundo a descobrir foi dividido em duas metades, delimitadas pelo
paralelo das Canárias. Para o norte ficaria para a Espanha, para o sul pertencia
a Portugal.
Em 1482-1483, o Príncipe Perfeito ordenou uma importante
viagem, que possivelmente se destinava a encontrar a passagem para o Índico: a de
Diogo Cão. Pela primeira vez os navios levavam a bordo padrões já preparados
para serem colocados nas terras a descobrir. Eram verdadeiros marcos destinados
a assegurar e comprovar a prioridade portuguesa. É graças a essa original
espécie de monumentos que hoje se pode estabelecer com grande exactidão o
caminho seguido por Diogo Cão e também verificar até que ponto são inexactas as
informações constantes das fontes narrativas.
Na sua viagem, Diogo Cão descobriu 1500 km de costa
africana. Chegou até hoje um documento datado de 8 de Abril de 1484 pelo qual o
rei o «retira
do número dos plebeus» e lhe concede, além de uma tença anual, um curioso brasão de nobreza:
dois padrões erigidos em dois montes, em campo de prata que simboliza o mar.
J. Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal
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