Na cena mais
longa da peça, Cláudio e Gertrudes procuram esmiuçar o estado de espírito de
Hamlet. Se os objetivos da mãe parecem ser os mais sinceros e honrados, já os
do atual marido são bem diferentes. Quando pede a Rosencrantz e Guildenstern
que animem Hamlet, está a ser falso e manhoso, pois está a usar os amigos mais
próximos do príncipe para o espionar, manipular e, no fundo, neutralizar
qualquer ameaça que possa representar para o seu poder. Por outro lado, Cláudio
finge também estar preocupado com o Hamlet para agradar e conquistar Gertrudes.
Outra
questão abordada na cena prende-se com o regresso dos embaixadores enviados à
Noruega, que traz o jovem príncipe Fortinbras para a ação da peça, para o fazer
contrastar com a figura e comportamento de Hamlet: o primeiro é um homem de
ação, enquanto o segundo se mostra hesitante, indeciso e até fraco. O contraste
torna-se mais evidente se tivermos em conta as similitudes entre ambos:
Fortinbras é o filho enlutado de um rei morto, um príncipe cujo tio herdou o
trono no seu lugar, tal como Hamlet. Porém, enquanto procura vingar a morte do
pai, o outro hesita, inquieta-se, reflete, mas não. Neste contexto, o facto de
o tio de Fortinbras o ter proibido de atacar a Dinamarca, mas lhe autorizar o
ataque à Polónia, atravessando exatamente o país de Hamlet, pode constituir uma
tentativa de enganar Cláudio para que este permita a entrada de um exército
inimigo no seu território. Espantosa é a reação de aparente indiferença de
Cláudio ao facto de um inimigo poderoso poder penetrar no país que governa com
a sua possível autorização. De facto, ele parece muito mais preocupado, para
não dizer exclusivamente, com a ameaça que Hamlet pode representar. Deste modo,
outro contraste parece desenhar-se aqui: de um lado, o falecido rei Hamlet, um guerreiro
poderoso que, ao longo do seu reinado, se preocupou em expandir o poder da
Dinamarca no seu exterior; do outro, o seu assassino, um governante apenas
preocupado com a conservação do seu poder e as ameaças internas.
Outro ponto
importante da cena é a chegada da companhia de atores, constituindo uma
situação de uma peça dentro da peça e apontando para um antiquíssimo tema
literário: a vida real enquanto encenação. Por outro lado, a vinda dos atores
proporciona a Hamlet a oportunidade de comprovar a culpa do tio. Além disso, a
forma como o ator mostra uma emoção tão intensa quando representa a pedido do
príncipe, envolvendo-se com a história que está a representar, remete para a
forma como o comum das pessoas responde a situações da vida real com emoções e
atitudes que não se baseiam em conhecimentos que possuem. É isto que Hamlet se
recusa a fazer, isto é, a agir como se soubesse o que estava a fazer, quando,
na realidade, não sabe. Em qualquer caso, o plano do príncipe para comprometer
o tio rei, através da criação de uma situação que leve a uma resposta
emocional, não é nada fiável.
Até ao momento,
o plano de Hamlet para se vingar de Cláudio é claro: fingir-se de louco,
tornando-se imprevisível e, assim, mais difícil de ser compreendido pelas
outras personagens, como, por exemplo, Polónio, o conselheiro de confiança do
rei. Todavia, esse seu plano tarda em surtir efeito, desde logo por causa do
caráter indeciso do jovem: assassinar Cláudio é algo com que reluta, daí
protelar o ato, o que o deixa envergonhado e em conflito consigo mesmo. A
armadilha que decide estender ao tio, usando a companhia teatral, é um sinal
inequívoco das suas dúvidas e da sua preocupação com a moralidade de matar
Cláudio. Se é verdade que o jovem não quer cometer o assassinato sem estar
certo da culpabilidade do tio, não o é menos a evidente relutância que tem em cometer
o crime, independentemente das circunstâncias. Neste sentido, o seu estratagema
de encenar a peça não passa de mais uma forma de protelar agir. Por outro lado,
o plano depende da crença de que emoções intensas vêm à tona quando as pessoas
são apanhadas de surpresa, desprevenidas, eliminando o comportamento fingido e fruto
do autocontrole.
A sensação
com que se fica é a de que Hamlet agirá apenas por sentir que esse é o que se
espera de si, isto é, que vingar a morte do pai é o seu dever, é aquilo que a
sociedade exige. Todavia, tal implicar cometer um assassinato. Desta forma,
parte da inação e da hesitação do príncipe deve-se ao facto de a sociedade,
simultaneamente, apoiar a vingança relacionada com a defesa da honra e tolerar
o assassinato em sentido lato. Além disso, convém não esquecer que essa
sociedade em que vive Hamlet é uma sociedade cristã, que considera matar alguém
um pecado mortal. Assim sendo, o príncipe revela ser um homem com escrúpulos.
Certificando-se da culpabilidade do tio, pelo menos Hamlet poderá alegar que a
vingança configura uma defesa da honra do pai. Matar o tio sem ter a certeza de
que Cláudio é culpado será imoral.
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