Português: Análise da cena 2 do ato II de Hamlet

domingo, 7 de julho de 2024

Análise da cena 2 do ato II de Hamlet

    Na cena mais longa da peça, Cláudio e Gertrudes procuram esmiuçar o estado de espírito de Hamlet. Se os objetivos da mãe parecem ser os mais sinceros e honrados, já os do atual marido são bem diferentes. Quando pede a Rosencrantz e Guildenstern que animem Hamlet, está a ser falso e manhoso, pois está a usar os amigos mais próximos do príncipe para o espionar, manipular e, no fundo, neutralizar qualquer ameaça que possa representar para o seu poder. Por outro lado, Cláudio finge também estar preocupado com o Hamlet para agradar e conquistar Gertrudes.
    Outra questão abordada na cena prende-se com o regresso dos embaixadores enviados à Noruega, que traz o jovem príncipe Fortinbras para a ação da peça, para o fazer contrastar com a figura e comportamento de Hamlet: o primeiro é um homem de ação, enquanto o segundo se mostra hesitante, indeciso e até fraco. O contraste torna-se mais evidente se tivermos em conta as similitudes entre ambos: Fortinbras é o filho enlutado de um rei morto, um príncipe cujo tio herdou o trono no seu lugar, tal como Hamlet. Porém, enquanto procura vingar a morte do pai, o outro hesita, inquieta-se, reflete, mas não. Neste contexto, o facto de o tio de Fortinbras o ter proibido de atacar a Dinamarca, mas lhe autorizar o ataque à Polónia, atravessando exatamente o país de Hamlet, pode constituir uma tentativa de enganar Cláudio para que este permita a entrada de um exército inimigo no seu território. Espantosa é a reação de aparente indiferença de Cláudio ao facto de um inimigo poderoso poder penetrar no país que governa com a sua possível autorização. De facto, ele parece muito mais preocupado, para não dizer exclusivamente, com a ameaça que Hamlet pode representar. Deste modo, outro contraste parece desenhar-se aqui: de um lado, o falecido rei Hamlet, um guerreiro poderoso que, ao longo do seu reinado, se preocupou em expandir o poder da Dinamarca no seu exterior; do outro, o seu assassino, um governante apenas preocupado com a conservação do seu poder e as ameaças internas.
    Outro ponto importante da cena é a chegada da companhia de atores, constituindo uma situação de uma peça dentro da peça e apontando para um antiquíssimo tema literário: a vida real enquanto encenação. Por outro lado, a vinda dos atores proporciona a Hamlet a oportunidade de comprovar a culpa do tio. Além disso, a forma como o ator mostra uma emoção tão intensa quando representa a pedido do príncipe, envolvendo-se com a história que está a representar, remete para a forma como o comum das pessoas responde a situações da vida real com emoções e atitudes que não se baseiam em conhecimentos que possuem. É isto que Hamlet se recusa a fazer, isto é, a agir como se soubesse o que estava a fazer, quando, na realidade, não sabe. Em qualquer caso, o plano do príncipe para comprometer o tio rei, através da criação de uma situação que leve a uma resposta emocional, não é nada fiável.
    Até ao momento, o plano de Hamlet para se vingar de Cláudio é claro: fingir-se de louco, tornando-se imprevisível e, assim, mais difícil de ser compreendido pelas outras personagens, como, por exemplo, Polónio, o conselheiro de confiança do rei. Todavia, esse seu plano tarda em surtir efeito, desde logo por causa do caráter indeciso do jovem: assassinar Cláudio é algo com que reluta, daí protelar o ato, o que o deixa envergonhado e em conflito consigo mesmo. A armadilha que decide estender ao tio, usando a companhia teatral, é um sinal inequívoco das suas dúvidas e da sua preocupação com a moralidade de matar Cláudio. Se é verdade que o jovem não quer cometer o assassinato sem estar certo da culpabilidade do tio, não o é menos a evidente relutância que tem em cometer o crime, independentemente das circunstâncias. Neste sentido, o seu estratagema de encenar a peça não passa de mais uma forma de protelar agir. Por outro lado, o plano depende da crença de que emoções intensas vêm à tona quando as pessoas são apanhadas de surpresa, desprevenidas, eliminando o comportamento fingido e fruto do autocontrole.
    A sensação com que se fica é a de que Hamlet agirá apenas por sentir que esse é o que se espera de si, isto é, que vingar a morte do pai é o seu dever, é aquilo que a sociedade exige. Todavia, tal implicar cometer um assassinato. Desta forma, parte da inação e da hesitação do príncipe deve-se ao facto de a sociedade, simultaneamente, apoiar a vingança relacionada com a defesa da honra e tolerar o assassinato em sentido lato. Além disso, convém não esquecer que essa sociedade em que vive Hamlet é uma sociedade cristã, que considera matar alguém um pecado mortal. Assim sendo, o príncipe revela ser um homem com escrúpulos. Certificando-se da culpabilidade do tio, pelo menos Hamlet poderá alegar que a vingança configura uma defesa da honra do pai. Matar o tio sem ter a certeza de que Cláudio é culpado será imoral.

Sem comentários :

Enviar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...