Português: Análise da cena 5 do ato IV de Hamlet

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Análise da cena 5 do ato IV de Hamlet

    Há algo muito podre no reino da Dinamarca: Polónio morreu e foi sepultado em segredo; Hamlet prepara-se para partir, forçado, para Inglaterra; Ofélia parece cada vez mais ensandecida; o povo está perturbado e murmurando entre si. Para compor o ramalhete, Laertes está de volta à Dinamarca e possui a legitimidade moral que falta a Cláudio por vários motivos e a que Hamlet perdeu ao assassinar Polónio.
    O regresso de Laertes é muito significativo. Desde logo, intui que Cláudio é um assassino, embora pelo ângulo errado, ou seja, supõe que o rei assassinou Polónio, o que não é verdade, pois a sua vítima foi o velho rei Hamlet. Por outro lado, é nítido o contraste que existe a sua figura e a do príncipe dinamarquês. De facto, este é muito reflexivo e hesitante, daí as enormes dificuldades que manifesta em agir, enquanto Laertes é ativo e menos reflexivo. Além disso, não é atormentado pelas questões morais que inundam o jovem príncipe, daí que o seu único pensamento seja o de vingar a morte do seu pai. Por outro lado, Laertes parece uma figura desequilibrada e irrefletida, daí que o desejo de vingar o pai a todo o custo será a sua ruína, arrastando consigo outras personagens para o precipício. Ele só pensa em vingar o pai o mais rápido possível e considera tal um dever e uma questão de honra, daí que se precipite, por exemplo, quando tira conclusões apressadas sobre quem terá sido o homicida. Seja como for, é quase certo que a sociedade dinamarquesa da época prefira a postura de Laertes à de Hamlet, pois acreditava no castigar das injustiças.
    Cláudio, astuto, aproveita as circunstâncias para o manipular e cativar, tendo na mente a possibilidade de o aproveitar para a sua trama com Hamlet, por isso comporta-se como um amigo solidário e sensato de Laertes, procurando que este seja seu aliado e um oponente do príncipe. Quando, mais tarde, o rei o questiona, querendo saber até onde está disposto a ir para vingar o pai, o filho de Polónio é claro e decidido, afirmando que está disposto a cortar a garganta de Hamlet na igreja (ato IV, cena 7), o que contrasta com a postura do príncipe, que se recusou a matar Cláudio enquanto este estava ajoelhado em oração. A questão da religião e da religiosidade é muito importante na época.
    Outro dos temas que perpassa a peça, nomeadamente esta cena, é a loucura, nomeadamente a de Ofélia, marcada pela perda do pai e do amor de Hamlet. Essa sua instabilidade emocional manifesta-se de várias formas, concretamente da distribuição de flores e das canções que entoa. Nesta cena, a jovem distribui flores a várias pessoas, atribuindo-lhes vários significados: o alecrim representa lembrança e os amores-perfeitos pensamentos. Dito isto, a representatividade das flores é mais profunda, visto que se associam a várias ideias e conflitos que atravessam a sua mente e o seu progressivo afastamento da realidade e da razão. Por outro lado, como as suas canções estão conectadas com amores e morte, as flores podem ser associadas à morte, concretamente à de Polónio.
    As canções de Ofélia, embora possam parecer aos outros não ter sentido, na verdade traduzem a sua obsessão com a morte do pai e do amor de Hamlet, bem como com um desejo sexual algo ambíguo, com o qual ela parece lutar, depois de ter sido desencorajada do desejo sexual pelo pai, pelo irmão e pela sociedade de forma genérica. A temática das canções centra-se em homens infiéis: no início da peça, parecia haver a possibilidade de se desenvolver uma relação amorosa entre a jovem e Hamlet, no entanto a partir de certo momento vê-se confrontada com um príncipe manipulador, desconcertante, aparentemente dominado pela loucura e cruel. Quase em simultâneo, ela perde a figura paterna, sempre presente, e um irmão preocupado e amoroso. Isto é tão mais importante quanto as mulheres, na época, tinham pouca importância e valor, estando sistematicamente dependentes dos homens. É também o caso de Ofélia. Todavia, neste momento, todas as figuras masculinas morreram ou estão distantes, daí que ela esteja sem balizas e apoios.
    Por outro lado, a temática das canções pode associar-se à decadência, não só dos corpos, mas da situação política. Numa delas, refere-se a um homem que é levado para o túmulo num caixão aberto, o que representa a ideia de que violência gera mais violência, depravação moral gera mais depravação moral. Convém sempre recordar as palavras de Marcelo, quando afirma que algo está podre no reino da Dinamarca. Ora, a canção da jovem retoma esse tópico, visto que a letra fala da morte como se esta estivesse em exposição em Elsinore. Assim sendo, é lícito concluir que o desejo e a busca de vingança apodrecem a monarquia dinamarquesa, acelerando a decadência moral já existente há muito.
    Voltando à loucura, é curioso observar que este tema faz contrastar Hamlet com outra personagem: Ofélia. Com efeito, o príncipe tem fingido estar louco como estratégia para atingir os seus objetivos, ao passo que a jovem é levada a esse estado por um conjunto de circunstâncias externas.

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