Português

sexta-feira, 4 de março de 2011

Vicente

          Vicente integra o grupo dos traidores e delatores, o equivalente aos «bufos» da época do Estado Novo. Este grupo move-se pela conveniência, isto é, representa todos aqueles que se aproximam do poder para obter favores e que não têm qualquer pejo em se vender aos governantes. São, no fundo, os verdadeiros traidores que não têm qualquer ética ou valores morais e que passam impunes, alcançando os seus objectivos.

          Vicente é, na peça, o maior representante  desta «classe». Ele é um elemento do povo / popular que surge, pela primeira vez, investido na função de provocador e agitador, procurando denegrir a imagem do general Gomes Freire de Andrade junto do povo através de diversos «argumentos»: a guerra e as feridas e mágoas que deixou na lembrança das pessoas ("Vocês ainda não estão fartos de generais?" - pág. 21); as miseráveis condições de vida em que vivem [a fome que atinge as famílias, muitas numerosas, procurando apelar ao sentimento de pai ("Tens sete filhos com fome e com frio e vais para casa com as mãos a abanar. Julgas que o Gomes Freire os vai vestir?" - pág. 21); a ausência de vestuário; a ausência de habitação ("Nenhum de vocês tem um tecto que o abrigue no Inverno..." - pág. 21)]; o desprezo a que são votadas as pessoas quando deixam de ter utilidade, abandonadas à miséria e à condição de pedintes, por contraste com os generais, que obtêm glória ("... para eles se encherem de medalhas..." - pág. 22) através do seu sacrifício e vivem confortavelmente("Matas a fome com os cinco réis e com a recordação da campanha. Mas eles... eles vão para casa encher a pança!" - pág. 22 - notar o recurso a uma linguagem rude, sinónimo da sua origem social), indiferentes à desgraça alheia. Depois, concentrando-se directamente no seu alvo, acusa-o de ser um «estrangeirado» (pág. 23) e ser igual aos outros, de estar conluiado com o poder ("Porque está feito com eles, porque essa gente é toda igual." - pág. 24). Nessa sua tarefa, socorre-se por vezes do sarcasmo e da ironia ("É um santo, o teu general..." - pág. 23).

          Durante o diálogo com os dois polícias, Vicente autocaracteriza-se como mentiroso ("... digo-lhes metade da verdade." - pág. 25) e revela toda a sua astúcia, manha e inteligência ("Lembro-lhes que o Gomes Freire é general e falo-lhes da guerra. Haverá alguém que se não lembre da guerra?"; "Odeiam os Franceses e os Ingleses? Chamo estrangeirado ao Gomes Freire..." - pág. 25), todo o seu materialismo, oportunismo e ambição, afirmando que se vende a quem lhe pagar: "Só acredito em duas coisas: no dinheiro e na força. O general não tem uma nem outra." (pág. 25). Ora, estas afirmações permitem deduzir que Vicente poderia perfeitamente aliar-se ao general caso este fosse detentor de dinheiro ou poder, o que quer dizer que não há qualquer ideologia que sustente as suas acções, apenas o seu interesse imediato.
          Por outro lado, esta personagem não tem qualquer rebuço em confessar que trai os seus por dinheiro ("Ias perguntar-me se foi por dinheiro que eu me virei contra os meus..." - pág. 26), mostrando-se descontente, frustrado e revoltado com a sua condição social, revelando igualmente vergonha das suas origens ("´É verdade que nasci aqui e que a fome desta gente é a minha fome, mas... é igualmente verdade que os odeio, que sempre que olho para eles me vejo a mim próprio: sujo, esfomeado, condenado à miséria por acidente de nascimento." - pág. 27). O modo que encontra para ultrapassar a sua condição e o seu sentimento de inferioridade passa pela ascensão político-social rápida, obtida através da denúncia  e da traição e concretizada com a obtenção do cargo de chefe de polícia ("... sou capaz de acabar com uma capela... ou chefe de polícia..." - pp. 30-31). Esse sentimento de inferioridade e de vergonha pelas suas origens leva-o a desprezar os seus semelhantes, os elementos da sua classe ("Rindo-se com desprezo" [do 1.º Polícia] - pág. 31). Por outro lado, em determinado momento denuncia a incapacidade de o povo se fazer ouvir pelo Poder ("Bem vistas as coisas, que pode a voz do povo contra a voz d'el-rei?" - p. 35). A sua origem social fica patente na sua linguagem, quando recorre a provérbios populares: "Há quem diga que a voz do povo é a voz de Deus..." (p. 35).

          No seu percurso, marcado por várias etapas - provocador e agitador (início do acto I), procurando denegrir a imagem do general; espião (vigia a casa de Gomes Freire); delator (denuncia o general, acto pelo qual espera uma recompensa); acusador (confirma a existência das reuniões e indica o nome dos conspiradores) - ficam bem patentes as suas características mais marcantes: a hipocrisia, o servilismo, a adulação, o materialismo, o oportunismo dos que não olham aos meuos para atingir os seus fins. No diálogo entabulado com os governadores, nomeadamente com D. Miguel, demonstra toda a sua adulação ("Avançando e fazendo uma vénia prolongada" [para D. Miguel] - pág. 33; "Francamente adulador" - p. 34), todo o seu calculismo e hipocrisia, visto que age e fala de acordo com aquilo que pensa poder agradar ao seu interlocutor. Dito de outra forma, as respostas que Vicente dá ao governador são, inicialmente, dúbias até ter a certeza da sua posição em relação ao general ("Fixa atentamente D. Miguel porque não tem a certeza de estar a agradar. A meio da frase faz uma pausa para estudar a reacção do governador, e recomeça." - p. 34).

          Após a denúncia e condenação do general, Vicente é recompensado pelos seus «bons» serviços ao ser promovido a chefe de polícia, afinal a sua grande ambição, passando, a partir daí, a ignorar e maltratar os seus conhecidos e os da sua classe social: «Olhou para mim como se nunca me tivesse visto. Estendi-lhe a mão e deu-me uma cacetada na cabeça.». Ele é, em definitivo, aquele que se vende ao poder de forma pouco escrupulosa.

quinta-feira, 3 de março de 2011

quarta-feira, 2 de março de 2011

Piscator

          Piscator foi um actor e encenador, portanto um homem do teatro, que trabalhou com Brecht e que esteve na origem da revolução dramatúrgica encetada por este último.
          Piscator considerava que uma peça de teatro serve para que se compreenda o mundo e a história e que o público deve manter-se afastado da acção, não se deixando encantar ou enfeitiçar por ela. Além disso, defendia encenações com poucos recursos técnicos, mas recorrendo a linguagens muito diversificadas. Para ele, o teatro era um veículo de actuação, de intervenção, de educação, muito próximo do teatro épico posteriormente teorizado por Bertold Brecht.

John Osborne

          Logo a seguir à dedicatória e antes da apresentação das personagens, encontramos um excerto de uma peça de John Osborne, dramaturgo inglês dos anos 50 e 60 que se caracteriza por um estilo muito crítico relativamente aos valores sociais mais tradicionais.
          A referida citação foi retirada de uma peça do dramaturgo, televisionada em 1960.
          O seu teatro é caracterizado pelo enquadramento individual do herói num contexto de época, reflectindo um drama de consciência. Ora, um dos problemas focados por Osborne é o do confronto do liberalismo, proclamado por uma voz individual, e do tradicionalismo em vigor numa sociedade ultrapassada, o qual pode ser encontrado também na peça de Sttau Monteiro. De facto, nesta, um indivíduo, Gomes Freire, que preconiza o futuro, o progresso, é marginalizado e perseguido por uma ordem inquestionável, a do regime figurado nas personagens Beresford, D. Miguel e Principal Sousa. Por outro lado, se Osborne pretende atingir criticamente a sociedade inglesa da sua época, nomeadamente a monarquia, Sttau procura reflectir sobre o silenciamento, levado a cabo pelo regime autoritário de Salazar, de uma voz de protesto e inconformismo: a do general Humberto Delgado.
          Tal como em Osborne, vamos encontrar em Sttau tiradas monologais (por exemplo, de Manuel e de Matilde) em que toda a riqueza interior das personagens surge desnudada perante o olhar do leitor ou do público.
          As personagens do dramaturgo inglês são figuras sós, excluídas, que falam e não são compreendidas pelos que as rodeiam. No entanto, não se deixam vergar pela ordem instituída a que se opõem, tal como sucede com Gomes Freire, Matilde e Sousa Falcão, verdadeiros rebeldes perante um poder instituído, mas não revoltosos ou revolucionários.
          Holyoake, a personagem de Osborne que consta do excerto transcrito na obra de Sttau Monteiro, defende o direito à opinião («What's the morality of a law wich prohibits the free publication of an opinion?») e auto-proclama-se um homem honesto sobre o qual impende uma única acusação: ir contra a opinião vigente («... I'm here for having been more honest than the law happens to allow.»; «But these weapons are denied only to those who attack the prevailing opinion.»). Assim sendo, esta figura pode ser entendida como uma outra versão de Gomes Freire, o defensor de uma liberdade que o poder autocrático não reconhece e que acaba por ser vítima desse mesmo valor que defende e que o condena.

Manuel

          A primeira personagem a ocupar a cena é Manuel, apresentado na didascália que «informa» sobre as personagens da peça como «o mais consciente dos populares». De facto a personagem está plenamente consciente da situação que a rodeia, marcada pela miséria, pelo medo, pela ignorância, pela repressão, pelo autoritarismo.
          As suas vestes denunciam, desde logo, a miséria em que  vive e que é extensível ao resto da classe a que pertence. Por outro lado,  as atitudes revelam a impotência para alterar a situação vivida, bem como um certo conformismo e resignação, não obstante a esperança inicial depositada no general Gomes Freire de Andrade. Exemplo desse estado de espírito é o início paralelo dos dois actos da peça, em que no surge um Manuel interrogando-se: «Que posso eu fazer? Sim, que posso eu fazer?».
          Logo de seguida, ainda no seu monólogo inicial, Manuel denuncia o sacrifício do orgulho nacional, vítima das invasões francesas, da opressão dos militares ingleses e da ausência do rei no Brasil, fugido precisamente em resultado daquelas.


(em actualização...)

Estrutura externa

          A peça é constituída por dois actos, que não estão divididos em cenas. Estas são sugeridas pelo movimento das luzes, que vão remetendo para espaços diferentes e dando conta da entrada e saída de personagens. Pode, contudo, tentar gizar-se quadros em que as personagens monologam ou dialogam, marcando as suas entradas ou saídas de cena.

Obra

● Narrativa:
  • estreia: Um Homem não chora (1960, Milão);
  • Angústia para o Jantar (1961, Lisboa)
  • Chuva na Areia (1982), adaptação televisiva de um romance que ficou inédito: Agarra o Verão, Guida, Agarra o Verão.
          Em todas estas obras, Sttau Monteiro denuncia, de forma sarcástica, os problemas da época.


● Teatro:
  • Felizmente há Luar! (1961), obra que obtém grande êxito e esgota rapidamente;
  • Todos os Anos pela Primavera (1963, Lisboa);
  • O Barão (1964, Lisboa) - adaptação teatral da novela com o mesmo nome, da autoria de Branquinho da Fonseca;
  • Auto da Barca do Motor Fora de Borda (1966, Lisboa);
  • Duas Peças em um Acto (1967, Lisboa);
  • A Estátua (1966, Lisboa);
  • A Guerra Santa (1966, Lisboa, prisão do Aljube - a sua publicação valeu-lhe mais seis meses de cárcere em Caxias);
  • As Mãos de Abraão Zacut (1968 - escrita na prisão de Caxias);
  • adaptação de A Relíquia de Eça de Queirós (1971, Lisboa);
  • Sua Excelência (1971, Lisboa);
  • E se for Rapariga chama-se Custódia (1978 - escrita na prisão do Aljube).
          Destas peças, poucas foram representadas em Portugal antes do 25 de Abril, devido ao seu conteúdo crítico e ideológico. Após a publicação das peças A Estátua e A Guerra Santa, que criticavam a ditadura e a guerra colonial, foi preso pela PIDE em 1967.


● Jornalismo:
  • colaborou com várias publicações (Diário de Lisboa, Almanaque, O Jornal, Se7e, Expresso, agências de publicidade);
  • redacções da Guidinha (Lisboa, 1971 - O Jornal e Diário de Lisboa - suplemento «A Mosca»;
  • escreveu também sobre gastronomia com o pseudónimo de Manuel Pedrosa, para O Jornal (Lisboa, década de 80).

● Prémios literários: Grande prémio de Teatro, em 1962, para a peça Felizmente há Luar!.

Vida

● NOME: Luís Infante de Lacerda Sttau Monteiro.

● NASCIMENTO: 3 de Abril de 1926, em Lisboa, na Rua Liverpool.

● FILIAÇÃO:
  • PAI: Armindo Monteiro, jurista e diplomata (embaixador);
  • MÃE: Lúcia Rebelo Cancela Infante de Lacerda (descendente de D. Afonso Henriques?).

● ESTADA em LONDRES:
  • partiu aos dez anos, acompanhando o pai, que aí desempenhou as funções de embaixador;
  • aí conheceu a dura realidade da Segunda Guerra Mundial;
  • a estada permitiu-lhe o contacto com movimentos de vanguarda da literatura anglo-saxónica, decisivos para a sua formação intelectual;
  • regressou a Portugal em 1943, após a demissão do pai, ordenada por Salazar, em virtude das simpatias que nutria pelo governo inglês no contexto da guerra;
  • manteve sempre uma ligação afectiva e um fascínio por Londres.

● FORMAÇÃO:
  • Colégio de Santo Tirso (Lisboa), de onde foi expulso;
  • Liceu Pedro Nunes (onde teve como colega João Pulido Valente e João Abel Manta);
  • Licenciatura em Direito (apesar do gosto pela Matemática), na Faculdade de Direito de Lisboa.

● PAIXÕES:
  • as corridas de automóveis (foi corredor de Fórmula 2 em Inglaterra);
  • a pesca;
  • a gastronomia;
  • a literatura.

● CARACTERÍSTICAS:
  • não gostava de ser conhecido;
  • considerava Portugal um país demasiado pequeno e limitado ("Nunca encontrei nada em Portugal que não encontrasse melhor lá fora.");
  • era profundamente religioso (encarava a morte como «apenas uma maneira de ir a Deus»);
  • defendia as liberdades individuais e colectivas - o seu lema era «A única coisa sagrada é ser livre como o vento»;
  • a sua relação com a escrita não era fácil e foi o estímulo dos que lhe eram mais próximos que o conduziu à produção literária e o conseguiu afastar da inércia que o levava a deixar inacabados vários manuscritos:
               -» José Cardoso Pires arrastou-o para o jornalismo e para a ficção (Um Homem
                   não Chora, por exemplo);
               -» Nikias Skapinakis, pintor que vivida escondido da PIDE numa casa de Sttau
                   Monteiro, incentivou-o à escrita de Felizmente há Luar!;
  • opositor do regime salazarista e preservando a liberdade como valor máximo, sofreu perseguições que culminaram com a sua detenção e prisão no Aljube, por alegado envolvimento na revolta de Beja;
  • um dos traços da sua personalidade foi a dispersão e o desbaratar de um talento multiforme.

● MORTE: Lisboa, a 23 de Julho de 1993.


● ACTIVIDADES:
  • Advocacia: exerceu a profissão apenas durante dois anos.
  • Corridas de automóveis:
               - corridas de Fórmula 2 em Inglaterra;
               - correu no Team Cooper, ao lado de figuras lendárias como Stirling Moss;
               - desistiu da actividade porque esta causava um grande desassossego à família.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Quinto Império

          O mito do Quinto Império tem origens na Bíblia e foi submetido a diversas interpretações ao longo dos tempos.

          De acordo com os textos bíblicos, nomeadamente o Livro de Daniel, Nabucodonosor, rei da Babilónia (604 - 562 a.C.), teve um sonho estranho e quis que os sábios o interpretassem. Esse sonho dizia respeito a uma enorme estátua com cabeça de ouro fino, o peito e os braços de prata, o ventre e as ancas de bronze, as pernas de ferro e os pés de ferro e barro, destruída por uma pedra que se desprendeu da montanha, transformando-se novamente numa alta montanha enchendo toda a Terra.
          Acabou por ser o profeta Daniel quem lho revelou e decifrou do seguinte modo: "Tu é que és a cabeça de ouro. Depois de ti surgirá um outro reino menor do que o teu; e depois um terceiro reino, o de bronze, que dominará toda a terra. Um quarto reino será forte como o ferro, vindo a esmagar todos os outros, mas sendo de ferro e de argila não se aguentará para sempre. A pedra que destrói os quatro metais ou quatro reinos simboliza o reino que o Deus do Céu fará aparecer, um reino que jamais será destruído e cuja soberania nunca passará a outro povo." (Daniel, 2, 24-45)
          De acordo com esta interpretação, estaríamos na presença de quatro impérios: 1.º) o da Babilónia; 2.º) o Medo-Persa; 3.º) o da Grécia; 4.º) o de Roma. O quinto império, segundo ainda o profeta Daniel, seria o de Israel. Noutras versões, seria o de Inglaterra.
          Em Portugal, o Bandarra (1500 - 1556), o Padre António Vieira (1608 - 1697) e Fernando Pessoa (1888 - 1935) reformularam este mito.

          Para Pessoa, o «esquema» dos impérios é outro: o primeiro foi o da Grécia; o segundo, o de Roma; o terceiro, o da Cristandade; o quarto, o da Europa e o quinto será o de Portugal. E que império será esse? Será, antes de mais, não um império material como os anteriores, nomeadamente o dos Descobrimentos, mas um império universal (desde logo, porque o Poeta sonha o «homem lusitano à medida do mundo»); será um império civilizacional e espiritual, baseado numa identidade cultural e na paz universal. Este império, por outro lado, pressupõe o regresso de um Messias redentor, concretamente D. Sebastião tornado símbolo, que, com o seu regresso, será o mensageiro da paz universal, o portador da «Eucaristia Nova», que há-de, qual Galaaz (lendas do rei Artur), "ao mundo dividido revelar o Santo Graal", isto é, o sentido perdido da verdade de ser português.

          Em suma, o Quinto Império será um império de fraternidade universal a ser vivido na Terra. Enraizado no mito do Paraíso Perdido, o espaço edénico onde reinava a perfeição, o mito do Quinto Império preconiza o renascimento humano numa era futura, ligada à simbologia solar - a estrutura da Mensagem divide-se em três partes, que correspondem a três fases da existência: o nascimento ("Brasão", símbolo da formação do reino), o percurso, que corresponde à duração, à vida ("Mar Português", manifestação da acção humana) e a morte ("O Encoberto"), após a qual terá lugar o renascimento, numa espécie de regresso ao Paraíso Perdido.


          Sintetizando:

     1.º) Designou-se Quinto Império o sonho mítico do Padre António Vieira, segundo o qual Portugal consumaria a realização do reino universal de Cristo através da acção do rei D. João IV.

     2.º) O Quinto Império seguir-se-ia aos quatro impérios antigos: Grécia, Roma, Cristandade e Europa.

     3.º) O Quinto Império será um império espiritual, um "imperialismo andrógino" segundo Fernando Pessoa. Ora, o andrógino representava, na filosofia grega, um ser circular, que era, simultaneamente, masculino e feminino, por isso simbolizava a unidade e a perfeição. Assim, o Quinto Império constituirá uma hipótese de transformação e de purificação da Humanidade, que conduzirá a uma relação harmoniosa entre o Homem e as coisas, entre o Homem e Deus.

     4.º) O Quinto Império permitirá ao Homem alcançar um grau de perfeição máxima e entrará em comunhão com o divino, tendo acesso ao conhecimento e implantando a paz e a fraternidade no mundo, criando uma imagem especular do éden primordial.

Estrutura

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O mito sebastianista

1. Um mito de origem complexa

          O Sebastianismo, também designado mito sebástico ou mito do «Encoberto», é um mito messiânico cuja origem radica no desaparecimento do rei D. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir, a 4 de Agosto de 1578.
          No entanto, o mito tem raízes mais profundas, desde as lendas arturianas até aos mitos peninsulares em torno da figura do Encubierto, passando pelas Trovas do Bandarra, profecias da autoria de Gonçalo Antes de Bandarra, um célebre sapateiro de Trancoso, anterior a D. Sebastião, posteriormente adaptadas à figura do rei.


2. A figura de D. Sebastião

          D. Sebastião nasceu em Lisboa a 20 de Janeiro de 1554 e era filho do príncipe D. João e de D. Joana de Áustria. Faleceu a 4 de Agosto de 1578 na batalha de Alcácer Quibir, no Norte de África. Foi o 16.º rei de Portugal, ficando conhecido para a posteridade pelo cognome de «O Desejado» pelas circunstâncias que rodearam a sua ascensão ao trono, o seu desaparecimento e as consequências que daí advieram.
          D. Sebastião herdou o trono do avô, D. João III, em 1557, portanto com três anos de idade. Como era menor, sua avó, D. Catarina de Portugal, ficou no seu lugar enquanto regente do reino. Desde muito cedo, sentiu a necessidade de readquirir a glória recente do país e prosseguir a cruzada dos Descobrimentos e da expansão da fé cristã. Deste modo, quando atingiu os catorze anos, reorganizou o seu exército e preparou-se para a guerra no Norte de África.
          Com o seu desaparecimento e a posterior anexação de Portugal pela Espanha, em 1580, dado o rei não ter deixado descendência que assegurasse a ocupação do trono,o país entra num dos períodos mais negros da sua história à espera de um messias, de um heróico rei salvador. Da relutância em acreditar que a pátria tinha ficado órfã e que, com a morte de D. Sebastião, a velha pátria morria também, nasce o mito do sebastianismo. Assim, este mito sustenta a esperança messiânica e a crença de um povo no regresso do rei desaparecido, que viria vencer a opressão, a tirania, a humilhação, o sofrimento e a miséria em que vivia, devolvendo ao país a glória e a honra passadas e entretanto perdidas.


3. O mito em Bandarra

          António Gonçalo Anes, mais conhecido por Bandarra, foi um sapateiro e poeta nascido por volta de 1500 em Trancoso e falecido, provavelmente, em 1556.
          A sua obra, de cariz messiânico, conhecida por Trovas ou Profecias de Bandarra, foi composta entre 1530 e 1540 e publicada apenas em 1603, em Paris, graças a D. João de Castro. Foi dedicada a D. João de Portugal, bispo da Guarda, mas nem este gesto evitou a perseguição de que foi alvo pelo Santo Ofício, tendo acabado por ser acusado de judaísmo (de facto, as Trovas parecem ter despertado grande interesse junto da comunidade de Cristãos-Novos), julgado e condenado. A sua condenação forçou-o a participar numa procissão de um auto-de-fé, a nunca mais interpretar a Bíblia ou a escrever sobre assuntos teológicos.
          De acordo com alguns estudiosos da obra, as Trovas constituíram o ponto de partida para a criação do mito sebastianista. De facto, foram interpretadas, na época, como uma profecia do regresso de D. Sebastião, após o desastre de Alcácer Quibir. Ao longo dos séculos, foram sendo republicadas e acabaram por influenciar autores como o padre António Vieira e Fernando Pessoa.
          Quando Bandarra foi interrogado pela Inquisição, afirmou que tinha lido a Bíblia e que determinadas passagens o tinham marcado, nomeadamente passagens dos livros de Daniel, Isaías, Jeremias e Esdras, nos quais é profetizada a vinda de um rei que traria, finalmente, a paz e a justiça a todos os povos da terra:

                         «Augurai, gentes vindouras,
                         Que o Rei que daqui há-de-ir,
                         Vos há-de tornar a vir
                         Passadas trinta tesouras.
                         Dará fruto em tudo santo,
                         Ninguém ousará negá-lo;
                         O choro será regalo
                         E será gostoso o pranto.»

                                                  Trovas do Bandarra (XI e XXXIV)

          Entretanto, em Espanha, a partir de 1520 começaram a circular algumas profecias referentes a um suposto Messias, que foi logo baptizado de Encoberto, dado não se saber a sua identidade e origem.

          Em Portugal, numa primeira fase, a figura do Messias foi associada à figura de D. Sebastião; posteriormente de D. João IV (1604-1656), D. João V (1689-1750), Sidónio Pais (1872-1918) e até António de Oliveira Salazar (1889-1970).


4. O mito em Mensagem

          O tempo de Pessoa é marcado por uma série de acontecimentos que mergulham o país na crise e no descrédito: o descrédito do governo monárquico, a implantação da República, o desencanto após os primeiros instantes de euforia e, sobretudo, o Ultimatum inglês (1891), que deixou o país sangrando de humilhação.
          Perante este quadro, Pessoa sente a necessidade de revitalizar a Pátria. E procura fazê-lo através da recriação e revitalização do mito, personificado em D. Sebastião, que o poeta considerava um «louco», mas não no sentido negativo que comummente se lhe atribui, antes numa acepção de sonho, de ideal, de alguém que «quis grandeza / Qual a sorte não dá», isto é, o mito sebastianista assume-se como o arquétipo do português ambicioso que quer conquistar novas terras para engrandecer a Pátria.
          Procurando traçar com rigor os contornos do mito, Pessoa procede a uma análise do papel do rei do

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Incêndio

                                                            Tu acendes a chama
                                                            do meu corpo
                                                            pões a lenha ao fundo
                                                            em sítio seco

                                                            Procuras no desejo
                                                            o ponto certo
                                                            e convocas aí
                                                            o lume aberto

                                                            Se a madeira demora
                                                            a ganhar fogo
                                                            tomas-me as pernas
                                                            e deitas lento o vinho

                                                            Riscas os fósforos todos
                                                            e depois,
                                                            é mais um incêndio
                                                            que adivinho

                                                                          Maria Teresa Horta
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