. Artístico: decoração, iluminuras.
. Histórico e social: - a entrega dos castelos ao conde de
Bolonha;
- a cruzada
da Balteira;
- o
escândalo das amas tecedeiras;
- as
ambições dos pobres jograis, que até podiam ter talento para trovar, mas que os
trovadores não permitiam e gozavam;
- a traição
dos cavaleiros na guerra de Granada;
- a
corrupção do clero (abades, bispos, papas);
- as
soldadeiras;
- o amor
cortês;
- o uso do
latim macarrónico pelos padres;
- as
relações entre fidalgos e plebeus;
- as
disputas entre trovadores e jograis.
Em
suma, o que esta poesia retrata é a decadência da sociedade em geral.
De
facto, as cantigas de escárnio e maldizer têm um enorme valor documental, na medida em que constituem um vasto panorama
crítico da sociedade medieval portuguesa nos aspectos político-religioso,
social e cultural.
Assim,
no domínio político-religioso, assume
especial relevo a denúncia da condenável actuação das autoridades
eclesiásticas, que excomungam os alcaides que se mantêm fiéis à palavra dada,
aquando da deposição de D. Sancho II por D. Afonso III. É a célebre questão da
"entrega dos Castelos ao conde de Bolonha", que alguns alcaides
recusaram terminantemente, por se sentirem vinculados pelo juramento de
fidelidade e dever de vassalagem a D. Sancho II, enquanto este vivesse. Trata
este tema a conhecida cantiga "Meu senhor arcebispo, and'eu
escomungado", de Diego Pezelho.
É,
talvez, no aspecto social que a nossa
sátira medieval é mais rica. Denuncia-se nela o eterno problema do
"desconcerto" do mundo, em que a falsidade, a mentira e, de um modo
geral, a injustiça parecem triunfar, tal é a "desordem" em que a sociedade
se atolou. A cantiga "Vej' eu as gentes andar revolvendo", de Pero
Mafaldo, é um bom exemplo da inversão de valores a que se tinha chegado: os
mentirosos e desleais viam a sua reputação aumentar e, pelo contrário, os
honestos e cumpridores apenas somavam fracassos. Então, ironicamente, o sujeito
conclui que a melhor maneira de triunfar na vida é passar a mentir a toda a
gente, "ao amigo e ao senhor".
Também
o "cavaleiro famélico" da cantiga "Quem a sesta quiser
dormir", de Pero da Ponte, denuncia a grave crise por que passavam os
infanções, em resultado das transformações sociais e políticas da época, que
favoreciam a burguesia em detrimento da nobreza, sobretudo depois da conquista
definitiva do Algarve, no reinado de D. Afonso III.
No
aspecto cultural, é sobejamente
conhecida a ridicularização do convencionalismo do amor cortês, na conhecida
cantiga "Roi Queimado morreu com amor", de Pero Garcia Burgalês, em
que se critica o fingimento da morte de amor "por ua dona". Também na
cantiga "Ai! dona fea, fostes-vos queixar", Joam Garcia de Guilhade
elogia uma "dona fea, velha e sandia", ridicularizando deste modo o
lugar-comum da beleza etérea da mulher amada, a "sem par", que os
trovadores sempre idolatravam nas suas cantigas de amor.
Podemos, então, concluir que, para além do seu inegável valor literário, as cantigas de
escárnio e maldizer têm um enorme valor
documental. Através da crítica, da ironia e do tom pejorativo, elas
constituem um vasto e variado panorama dos males da nossa sociedade medieval:
os escândalos sociais (as amas e
tecedeiras), a cultura (a ridicularização do amor cortês
e da imagem da mulher ideal), a cumplicidade
entre a política e a religião (a entrega dos castelos ao conde de Bolonha),
a decadência da nobreza, o desconcerto do mundo, o privilégio da aparência, a imoralidade e a dificuldade em cumprir projectos ou promessas (a cruzada da
Balteira), a covardia (a traição dos
cavaleiros na Guerra de Granada), etc. Estas cantigas constituem, realmente, as
raízes de um dos mais ricos filões do nosso oiro literário, que terá continuadores
tão ilustres como Gil Vicente, Camões ("Esparsa ao desconcerto do
mundo" e alguns passos d' Os
Lusíadas), António José da Silva, o Judeu, e Nicolau Tolentino (no século
XVIII), Guerra Junqueiro e Gomes Leal (no século XIX) e, no século XX, Alexandre
O'Neill, entre outros.