A lógica que Mond fornece para
suprimir o amado Shakespeare de John dá-nos uma chave crucial para entender o
remanescente da conversa. O simples facto de Shakespeare ser velho significa
que ele não contribui para o comportamento do consumidor. (Huxley, é claro,
ignora o facto de as pessoas comprarem novas edições de Shakespeare, dos cursos
universitários de Shakespeare, etc.). Embora esse motivo pareça superficial em
comparação com os argumentos mais desenvolvidos de Mond, chama a nossa atenção
para o fato de o consumismo ser central para o mundo de Admirável Mundo Novo.
Como outras distopias, este romance não mostra apenas um mundo diferente do
nosso, mostra um mundo que é um espelho nosso, com as piores características do
nosso mundo desenhadas e exageradas. Uma das facetas centrais do romance de
Huxley é direcionada contra o valor cada vez maior que é atribuído ao
consumismo.
Ao mostrar um mundo que suprime
instituições e experiências que são sagradas no nosso próprio mundo, a fim de
abrir caminho para o desenvolvimento dos valores do consumidor, Huxley
demonstra um conflito de valores que existe na nossa própria sociedade. O
"valor" que impulsiona o consumidor é simplesmente a satisfação dos
apetites. Em Admirável Mundo Novo, esse valor foi desenvolvido a tal
ponto que as pessoas são "adultas durante o horário de trabalho", mas
são bebés nos momentos de lazer e nos relacionamentos. Portanto, a primeira
crítica de Huxley ao consumismo é que ele é infantil – os adultos devem ser
capazes de outras coisas.
Se o consumo é a
"felicidade" a que Mond se refere na sua descrição do Estado Mundial,
o outro valor em que a sua sociedade se baseia é a "estabilidade". No
pensamento de Mond, felicidade e estabilidade dependem uma da outra. A
estabilidade da qual está a falar é a estabilidade económica, o ciclo
ininterrupto de produção e consumo. Mas a(s) estabilidade(s) emocional,
psicológica e social também são importantes, porque todas elas contribuem para
o primeiro tipo de estabilidade.
O argumento de Mond sobre as coisas
que devem ser sacrificadas para criar uma sociedade "estável e feliz"
pode ser lido, ironicamente, como um argumento segundo o qual os nossos valores
são incompatíveis com o comportamento do consumidor e a estabilidade económica.
Esses valores que ele sacrifica podem ser resumidos da seguinte forma:
▪ Sentimentos, paixões,
compromissos e relacionamentos. Os cidadãos do Estado Mundial não têm pais,
mães, maridos, esposas, filhos ou amantes, porque esses relacionamentos
produzem instabilidade emocional (e, portanto, social), contenda e
infelicidade. Embora seja fácil pensar em maneiras pelas quais os
relacionamentos tornam as pessoas infelizes, pode ser difícil para o leitor
entender porque Mond acha que esses relacionamentos criam fundamentalmente
instabilidade, quando o bom senso e a tradição ditam exatamente o oposto, que a
família é uma das instituições estabilizadoras da nossa sociedade. Uma resposta
pode ser encontrada no capítulo 3, na palestra que Mond dirige aos alunos. Aí
ele argumenta que a parte mais perigosa dos compromissos amorosos com outras
pessoas é a força do sentimento envolvido. Além disso, sustenta que todos os
sentimentos e paixões surgem de impulsos presos, como o desejo que se
experimenta quando não se pode ter imediatamente o amante que se deseja. Essa é
provavelmente a base para sua ideia de que a necessidade de gratificação
imediata do consumidor está em desacordo com os compromissos humanos de longo
prazo.
▪ Igualdade. Mond é bastante
franco sobre o facto de a estabilidade social depender da desigualdade. A maior
parte da sociedade terá de executar tarefas desinteressantes na maioria das
vezes. Essa característica da sociedade do Estado Mundial não é de modo algum
peculiar ao Estado Mundial. De facto, provavelmente é verdade para todas as
sociedades que já existiram. Pode até ser possível argumentar que a nossa
própria sociedade tem tanta desigualdade quanto o Estado Mundial, e que Mond é
apenas mais honesto sobre isso, recusando-se a prestar atenção ao ideal de que
todos os seres humanos são criados iguais. No entanto, o completo abandono do
ideal de igualdade leva a resultados terríveis. A maioria dos embriões humanos
no Estado Mundial é alterada para que o seu potencial de excelência ou
crescimento seja atrofiado. Quando a comparação é feita entre o mundo do
romance e o nosso, surgem em nós perguntas preocupantes, em vez de conclusões
distintas. Dado que a estabilidade económica e social depende de uma
distribuição desigual do trabalho, criará isso contradições destrutivas com o
nosso ideal democrático de que os indivíduos são iguais? (Este tema está
claramente em dívida com os escritos de Karl Marx, cujas ideias fazem parte do
contexto intelectual deste romance. Não é por acaso, por exemplo, que o sobrenome
do dissidente Bernard seja Marx.).
▪ Verdade. Mond diz que a
ciência deve ser suprimida, porque uma sociedade baseada na busca da felicidade
também não pode estar comprometida com a verdade. Ele pode querer dizer que a
ciência, e a busca da verdade de maneira mais geral, tem uma tendência
irresistível para derrubar formas antigas e estabelecidas de encarar as coisas.
A autoridade e a sabedoria convencional contribuem ambas para a estabilidade da
sociedade e, na busca da verdade, ambas são passíveis de serem interrogadas.
▪ Arte. A arte não é um
produto de consumo e a grande arte extrai o seu objeto de sentimentos, paixões,
compromissos e relacionamentos, acima discutidos.
▪ Uma última categoria de
experiências sacrificadas no Estado Mundial pode ser simplesmente rotulada de
"problemas". Huxley pode argumentar que valorizamos os
problemas (velhice, morte, dúvida, até sofrimento), porque valorizamos as
respostas que elas produzem nos seres humanos. Mond, porém, descarta-os por os
considerar a "sobrecompensação para a miséria".
Uma crítica que se pode dirigir à
linha argumentativa de Mond é que os princípios do Estado Mundial o beneficiam,
dado que ele está no topo da classe dominante e goza de isenção das leis que faz.
Poderíamos facilmente descartar tudo o que ele diz, com base no facto de que o seu
verdadeiro interesse é a estabilidade de sua própria posição, e não a
estabilidade e a felicidade da sociedade como um todo. Por outro lado, seria um
erro simplesmente descartar o seu argumento de imediato, porque ele possui
considerável poder e subtileza, desafiando o leitor a contestá-lo nos seus
próprios termos.