segunda-feira, 20 de abril de 2020
COVID-19: ponto de situação do dia 19 de abril
Retrato de Carlos
▪ Caracterizado direta
(pelo narrador) e indiretamente (a partir dos diálogos e da carta final), é uma
personagem modelada, rica de vida interior, sofrendo evolução psicológica ao
longo da obra.
▪ É a personagem central,
o protagonista, em quem Garrett vazou a sua própria personalidade, procurando
justifica-la e tomando a sua defesa: “Leitor amigo e benévolo, caro leitor meu
indulgente, não acuses, não julgues à pressa o meu pobre Carlos” (cap. XXII).
▪ É o modelo da galeria
romântica dos homens fatais, que espalham o sofrimento e a destruição à
sua volta.
▪ Começa por ser
caracterizado fisicamente e só depois psicologicamente, numa perspetiva que
parte do geral para o particular. Como sucede frequentemente com diversas personagens,
as suas características físicas indiciam as psicológicas.
1. Retrato físico
• Carlos tem aproximadamente 30 anos.
• É de estatura média,
corpo delgado, mas com peito largo e forte (alberga um grande coração).
• Tem olhos pardos e
expressivos.
• A boca, embora pequena,
é igualmente expressiva.
• Os olhos e a boca
projetam o temperamento e o caráter de Carlos: a nobreza, a lealdade, a
generosidade, mas também a afetividade, a emotividade e a tendência para o
arrebatamento (cap. XX).
2. Retrato psicológico
• É franco, leal e generoso.
• Por outro lado, é
vaidoso e mentiroso, temperamental e difícil de entender.
• É egoísta até à
comiseração que sente por si mesmo, sorve dos outros aquilo que lhe podem dar,
sem jamais retribuir, porque é incapaz disso: “Quero contar-te a minha
história: verás nela o que vale um homem. Sabe que os não há melhores que eu: e
tão bons, poucos. Olha o que será o resto!” (cap. XLIV).
• Era possuidor de um
coração puro que a sociedade transformou num cético, um sentimental arrastado
por um coração demasiado grande e sensível que não sabia obedecer à razão ou à
vontade.
• Possuidor de um caráter
inconstante, que o impede de encontrar-se a si próprio, de identificar-se com o
seu verdadeiro «eu», simbolizado por Joaninha, é incapaz de vencer uma
tendência mórbida para a volubilidade.
• Representa as ideias
liberais e, simultaneamente, as opiniões pessoais do autor sobre
o liberalismo e a sua aplicação prática.
• Incapaz de vencer a indeterminação,
cai no indiferentismo, engorda, enriquece e faz-se barão.
• Encarna a instabilidade
sentimental do romântico: sofre por não poder dar-se inteiro e para sempre
no amor, mas não deixa de se envaidecer por ter um coração “grande de mais”.
• É uma personagem
marcada por traços de excecionalidade típicos do herói romântico:
» a superioridade;
» as antinomias (“fácil na ira, fácil
no perdão”);
» o pendor para a marginalidade;
» o pendor para o isolamento
existencial.
• Contrariamente a
Joaninha, é dominado por uma tendência para a mudança/instabilidade:
» a partida do Vale;
» o exílio;
» o regresso ao Vale;
» a partida definitiva do Vale;
» dividido entre o
chamamento do Amor e o empenhamento no combate pelo Liberalismo, empreende um
percurso instável de sucessivos desenganos amorosos (com Júlia, com Laura e com
Georgina na Inglaterra; com Soledad na Ilha Terceira, com Joaninha no Vale);
» o empenhamento na causa
liberal também se resolve em termos de mudança, já que esse empenhamento
significa o envolvimento de uma personagem originariamente boa e pura (porque
proveniente do espaço paradisíaco do Vale de Santarém) na teia das convenções
sociais que a vão degradando, acabando poe ceder ao materialismo e se tornar
barão.
3. Carlos enquanto herói romântico (síntese)
A longa carta que Carlos escreve a
Joaninha permite identificar as características que fazem dele um herói
romântico:
▪ individualista, narcisista e
egoísta, vivendo um drama interior;
▪ temperamento contraditório e
dominado pelo sentimento;
▪ marginal, solitário e sofredor;
▪ fracassado a nível
social e amoroso: passa do idealismo ao materialismo, de Adão natural
transforma-se em Adão social, seguindo um percurso oposto ao do pai, Frei
Dinis;
▪ megalómano;
▪ sedutor;
▪ sentimento de superioridade;
▪ excecional e excessivo;
▪ revolucionário;
▪ instável e
constantemente móvel (partida do Vale, exílio, regresso, nova partida, etc.);
▪ ser corrompido;
▪ amante: ama todas as mulheres,
revelando-se incapacitado para o amor;
▪ herói fatal: causa a perdição
daqueles que o amam ou que o rodeiam.
4. Percurso de Carlos
▪ Infância na casa do Vale.
▪ Formatura em Coimbra.
▪ Adesão às ideias liberais.
▪ Emigração para
Inglaterra em 1830, onde vive um período de grandes paixões e mentiras.
▪ Regresso ao Vale de
Santarém como oficial liberal, durante a guerra civil que opôs liberais a
absolutistas.
▪ Reencontro com Joaninha.
▪ Incapacidade de
corresponder ao amor de Joaninha.
▪ Ferimento numa batalha
e mudança para o convento de Frei Dinis, em Santarém.
▪ Fuga a compromissos
(Joaninha versus Georgina).
▪ Incapacidade de
enfrentar a revelação do passado da sua família.
▪ Incapacidade para lidar
com o destino trágico: a avó cega, de tanto chorar, fica como morta; Frei Dinis
é um cadáver vivo; Georgina professara; Joaninha enlouquecera e morrera.
▪ Entrada na política:
torna-se barão.
Este percurso de Carlos simboliza a
fraqueza do Homem. Ele personifica o trajeto de um jovem bom que, ao sair do
edénico Vale de Santarém, onde fora criado, na casa da avó Francisca, ao lado
de Joaninha, vigiado por Frei Dinis, perde a sua pureza original e se transforma,
tornando-se, no final, barão.
Almeida Garrett parece identificar-se
com o Carlos herói romântico, que, no entanto, ao longo da obra acaba por se
transformar num anti-herói que desiste por não conseguir resolver os seus
dilemas. O fracasso da sua vida amorosa coincide com o triunfo do Liberalismo,
no entanto a desistência de todos os seus ideais condu-lo ao ceticismo,
tornando-se barão. De facto, o jovem, originalmente puro e bom (o Adão
natural), cede ao materialismo e às convenções sociais que o transformam e o
fazem barão (Adão social). Estamos, afinal, na presença da teoria do “bom
selvagem”, de Rousseau, segundo a qual o Homem nasce naturalmente bom (Adão
natural), mas é corrompido pela sociedade (Adão social).
5. Posicionamento do narrador relativamente a Carlos
▪ à primeira vista, os
termos em que caracteriza Carlos propendem a fazer dele uma figura de destaque
que sugere uma apreciação positiva;
▪ noutros momentos,
deparamos com reações de teor irónico, tendendo a desdramatizar atitudes da
personagem marcadas pelo excesso;
▪ no final, o narrador
declara-se antigo camarada de Carlos, o que leva a pensar que aquele também se
julga a si mesmo num registo autocrítico.
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Viagens na Minha Terra
domingo, 19 de abril de 2020
Momentos fundamentais da novela da “Menina dos Rouxinóis”
▪ 1883: Joaninha vive no Vale de
Santarém com a avó cega.
▪ Todas as sextas-feiras, Frei Dinis
visita o vale.
▪ Carlos, primo
de Joaninha, que tinha abandonado o vale em atitude de rebeldia para com Frei
Dinis, suspeitando que este era o assassino do seu pai e do de Joaninha,
regressa ao vale enquanto membro das tropas liberais.
▪ Carlos e
Joaninha reencontram-se e apaixonam-se.
▪ Carlos
escreve um poema em prosa sobre os olhos de Joaninha.
▪ Carlos começa
a revelar a sua faceta de mentiroso, enquanto Joaninha é espontânea e pura.
▪ Carlos é
ferido em combate, internado no Convento de S. Francisco, em Santarém, e
tratado por Georgina, que amara em Inglaterra.
▪ Carlos tenta
matar Frei Dinis, mas a avó impede-o, contando-lhe que ele é seu pai e que
matara em legítima defesa o marido da mãe e o pai de Joaninha.
▪ Carlos parte
e escreve uma carta justificativa a Joaninha.
▪ Carlos
torna-se barão; Joaninha enlouquece e morre; Georgina ingressa num convento; da
família restam Frei Dinis e a avó Francisca.
Estrutura trágica da novela da "Menina dos Rouxinóis"
A novela das Viagens apresenta
uma estrutura trágica, conforme o próprio Almeida Garrett reconhece no final do
capítulo XXVI:
– “Porquê? já se acabou a história de
Carlos e Joaninha?” diz talvez a amável leitora.
– “Não, minha senhora”, responde o
autor mui lisonjeado da pergunta: “não, minha senhora, a história não acabou,
quase se pode dizer que ainda agora ela começa: mas houve mutação de cena.
Vamos a Santarém, que lá se passa o segundo ato.”
● De facto, a estrutura da novela
aproxima-se da estrutura trágica:
▪ o 1.º ato (introdutório) (caps. XI a
XVIII):
- localiza-se na casa do Vale;
- nele são apresentadas as
personagens e as suas inquietações:
. Carlos, o protótipo do herói
romântico, símbolo do Portugal Novo, liberal;
. Joaninha, exemplo da conceção
romântica da mulher (-anjo);
. a Avó, testemunha trágica do
mistério da família;
. Frei Dinis, símbolo da ideologia
absolutista do Portugal Velho;
. Georgina, testemunha da génese
romântica de Carlos;
▪ o 2.º ato (caps. XIX a XXV):
- tem como cenário o
Vale, onde a guerra civil “parecia cansada”;
- dá-se o reencontro de
Carlos e Joaninha (cap. XX), o amor surge e, desde logo, se presente todo o
dramatismo que a divisão interior do herói irá acarretar;
▪ o 3.º ato (caps. XXXII a XXXV):
- decorre numa cela do
Convento de S. Francisco de Santarém, onde se reúnem todas as personagens
(Carlos, Joaninha, a Avó, Fr. Dinis e Georgina) e se assiste ao reconhecimento
do frade como pai de Carlos;
- este reconhecimento
constitui o clímax da ação trágica: em risco de vida por ferimentos na
guerra civil, profundamente abalado pela revelação do mistério da família,
Carlos acaba por fugir.
O destino final das personagens é-nos
posteriormente revelado:
-» Carlos: “… um belo dia caiu no indiferentismo absoluto”, fez-se “o que
chamam cético”, morreu-lhe “o coração para todo o afeto generoso” e deu “em
homem político ou em agiota” (= barão) (cap. XXXVI);
-» Joaninha morre;
-» Frei Dinis e a Avó morrem para o mundo-
Esquema da estrutura trágica da
novela
A par desta estrutura existem outros
elementos característicos da tragédia:
● A ação:
uma tragédia de família, apresentada no seu momento mais crítico, em que os
mistérios são desvendados e as faltas do passado marcam o destino de todos os
intervenientes.
● A redução
progressiva do espaço, até se confinar a uma cela: Vale de >Santarém,
hospital, convento, cela.
● O tempo
relativamente curto, a sucessão rápida e tensa de cenas, com recurso ao
“suspense”, provocando o retardamento de dados.
● As cenas
(diálogos teatrais).
● O reduzido
número de personagens, cujo sofrimento (pathos) é intenso e
crescente.
● Os presságios
(as visitas de Frei Dinis ocorrem sempre à sexta-feira, dia aziago).
● O fatalismo
(anankê) que atinge inexoravelmente as personagens.
● A anagnórise
ou reconhecimento: a cena na cela do Convento de S. Francisco, na
qual Carlos fica a saber que é filho de Frei Dinis.
● O adensar do
conflito até ao clímax.
● As peripécias,
que conduzem ao desenlace fatal:
» a partida de Carlos para o estrangeiro;
» o seu regresso;
» a guerra civil;
» a batalha;
» etc.
● O sofrimento
(pathos) das personagens, que aumenta gradualmente até ao desenlace, em
que todos morrem física ou espiritualmente.
● A compaixão
(éleos) e o terror (fobós) que se apoderam
do narratário (o leitor).
● A presença do
coro na carta final de Carlos a Joaninha, espécie de biografia
psicológica; vestígios do coro em certos comentários, quer de Frei Dinis quer
do narrador.
● O desenlace
trágico (catástrofe):
- Joaninha (vítima)
enlouquece e morre;
- Georgina morre para o
mundo (faz-se abadessa de um convento que ela própria funda);
- a Avó fica afásica e
abúlica (morta para o mundo);
- Fr. Dinis aguarda a
morte, expiando as culpas;
- Carlos destrói-se (cai no indiferentismo e torna-se barão).
● A fuga às
descrições demoradas e aos longos retratos das personagens.
● A utilização
da terminologia teatral nas referências à própria construção da novela
(por exemplo, no final do capítulo XXVI).
Análise de "Um adeus português"
● Contextualização do poema
“Um adeus português” foi publicado
originalmente em 1958, na obra No Reino da Dinamarca, e constitui uma
crítica ao regime do Estado Novo r ao ambiente persecutório e controlador do
Portugal dessa época.
A origem do poema foi explicada pelo
próprio poeta. Assim, O’Neill ter-se-ia apaixonado por uma mulher francesa
chamada Nora Mitrani e desejava ir a Paris encontrar-se com ela, porém
elementos da sua família opunham-se à sua ida e meteram uma «cunha» junto da
PIDE no sentido de lhe negarem o passaporte.
Deste modo, o poeta foi chamado à
sede da polícia, onde o questionaram a propósito da razão da sua viagem a
França e se conhecia a senhora Mitrani. O’Neill respondeu afirmativamente,
tendo o inspetor que o interrogava retorquido o seguinte: “Se calhar V. quer
ir, porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola.”. O poeta respondeu que
Nora não era uma gaja e que não tinha cachola. Na sequência deste episódio, não
conseguiu obter passaporte durante vários anos.
Quando Alexandre O’Neill pode,
finalmente, ir ao seu encontro em Paris, já ela tinha falecido, vitimada pelo
cancro, mas ficou a saber que Nora tinha lido o seu poema e ficado muito
comovida com o mesmo.
● Título
No título do poema, destacam-se duas
palavras:
• o nome «adeus»: a despedida;
• o adjetivo «português»: o
sentimento nacional.
O título anuncia o final de um amor
e, em simultâneo, aponta para uma crítica ao modo de ser português.
De facto, não é a falta de amor que
leva à separação dos apaixonados, mas a condição e a vivência no país.
● Tema
O tema do poema é a inevitável
despedida de dois amantes, de um amor que desde o início estava
condenado à impossibilidade [é o tema do amor impossível ou
impossibilitado], dado que os apaixonados pertencem a mundos diferentes e
opostos – enquanto ela parte para longe, para a “cidade aventureira”, ele
permanece limitado à pequenez burocrática e à “dorzinha quase vegetal” em que
entretém a passagem do tempo.
Além do sofrimento motivado pela
separação dos amantes, destaca-se o diagnóstico sobre Portugal e a maneira
portuguesa de viver, resignada ao lento apodrecimento dos afetos, sob o efeito
de um mal-estar quase nauseante que contagia, aliás, toda a visão que esta
poesia tem do país.
Jornal Público
Além deste tema central, outros estão
presentes na composição poética:
▪ o tema da separação e
do adeus;
▪ o tema (da imagem) de
Portugal;
▪ o tema da revolta e da
denúncia;
▪ o tema de um país
outro.
● Estrutura interna
• 1.ª parte (vv.
1-4): O sujeito poético interpela o «tu» (a mulher amada), indiciando já a
despedida e a separação iminentes entre ambos.
▪ O sujeito poético
interpela, ao longo da composição, um «tu», como se pode comprovar pela
ocorrência de formas de segunda pessoa:
» pronomes: «tu» (v. 5),
«te» (v. 52), «ti» (v. 55);
» determinantes: «teus»
(v. 1), «teu» (v. 51);
» formas verbais:
«podias» (v. 5), «mereces» (v. 35), «és» (v. 41), etc.
▪ Apresentação do «tu» /
da mulher:
» possui «olhos altamente
perigosos»: olhar muito sedutor, daí perigoso;
» tem uma relação de amor
com o sujeito poético (“vigora ainda o mais rigoroso amor”);
» esse amor e a mulher
são puros, ainda que marcados pela sensualidade da «cama»;
» uma sombra ameaça esse
amor, a de uma «angústia já purificada».
Esta mulher, o «tu» a quem os sujeito
poético se dirige, é aquela que ele ama, mas vai partir de Portugal para outro
país, pois não se enquadra no ambiente que se vive cá, marcado pela opressão e
podridão, pela repressão policial, pela hipocrisia, pela mesquinhez. É alguém
que não se identifica com a monotonia e a ausência de liberdade que asfixia.
▪ A primeira estrofe
constitui, pois, a abertura do diálogo (simulado) entre o sujeito poético e o
«tu», do qual sabemos muito pouco, além do atrás referido.
▪ A relação entre os dois
é muito próxima, proximidade essa que é pontuada pelo uso recorrente de formas
de segunda pessoa do singular. Sabemos também que é uma história de amor (“nos
teus olhos (…) vigora ainda o mais rigoroso amor”) e que esse sentimento parece
condenado à partida: o advérbio «assim» possui um valor temporal e aspetual que
antecipa o fim da relação (na medida em que se institui a oposição entre
«ainda» e «já não»). Por outro lado, a relação é intensa, mas acaba,
inevitavelmente, com o afastamento e a despedida dos dois.
▪ No poema, está presente
também um «nós», marcado pelas formas de 1.ª pessoa do plural («apodrecemos»,
«giramos», «nossa»). No entanto, o «nós» que surge no poema não é sempre o
mesmo. Num caso, é o resultado do «eu» + o «tu»; no outro, é o resultado da
junção do «eu» com ?.
• 2.ª parte (vv.
5-49): O sujeito poético apresenta as razões que impedem o amor entre si e a
sua amada.
▪ As seis estrofes
seguintes (2.ª à 7.ª) constituem um bloco único, ligado pela anáfora («Não»)
que inicia cada uma delas. O advérbio de negação contribui para a simulação do
diálogo, nomeadamente nas segunda e sexta estrofes, em que se estabelece um
jogo de polifonia: a ocorrência do advérbio faz ouvir a voz do «tu» simulado,
como interrogação total a que responde(ria) o advérbio (em posição inicial), ou
apenas como hipótese, quando a ocorrência do advérbio marca a asserção negativa
(“tu não podias ficar presa comigo” e “tu não mereces esta cidade”).
Esquematicamente:
[eu podia
ficar contigo?] [tu podias
ficar comigo]
↑ ↑
Não tu
não podias ficar comigo
▪ A segunda estrofe
clarifica que o «tu» é efetivamente uma mulher, a partir da forma feminina do
adjetivo («presa»). Ela não se enquadra no conjunto de situações elencadas e,
por isso, tem de partir. A anáfora (iniciada pelo advérbio de negação «Não»)
mostra precisamente os motivos que tornam impossível o amor entre o
sujeito poético e a mulher representada por «tu».
▪ A primeira dessas
situações surge precisamente na segunda estrofe: ela não poderia ficar presa
como ele (mas ele fica). A quê?
» À roda em que ele
apodrece: a roda equivale a um círculo fechado e surge associada à forma verbal
«apodreço».
» À pata ensanguentada:
. a pata e outros elementos evocam as touradas:
o animal avança pelo túnel, ferido («vacila»): a pata ensanguentada (o touro),
mugindo (a vaca), sugerindo dor.
▪ A anteposição do
adjetivo ao nome em “uma velha dor” sugere a transição da dor (motivada pelo
ferimento) para a dor (simbólica) de uma tourada (simbólica) [numa arena que é
o mundo, a vida?].
▪ Assim, a roda em que o
sujeito apodrece pode ser interpretada como a arena de uma tourada (real e
simbólica). Note-se que a forma verbal «apodrecemos» se encontra num plural,
isto é, a podridão afeta um coletivo e não apenas o eu.
▪ Os primeiros versos da terceira estrofe indiciam uma vida
rotineira e monótona, feita de burocracia.
▪ Os versos seguintes
desnudam a miséria, uma “miséria que sobe aos olhos”, indiciando um movimento
(ou sensação) de vómito sugerido(a) pelo movimento ascendente denunciado pelos
predicados verbais (“sobe aos olhos”, “vem às mãos”).
▪ A enumeração dos
elementos repulsivos, culminando com “o modo funcionário de viver”, evoca a
tradição poética neorrealista, de que serão expoentes a figura ou a relação com
o “patrão Vasques”, de Bernardo Soares, o Coro dos Empregados da Câmara
e Mataram a Tuna, de Manuel da Fonseca.
▪ Esta enumeração
gradativa evolui dos aspetos positivos para os negativos, realçando o
caráter opressivo da cidade.
▪ Na quarta estrofe, a
«cama» simboliza o amor, um amor sensual, erótico, mas também marcado pela
perspetiva de fim ou morte (“trânsito mortal”).
▪ O dia é “sórdido /
canino / policial” (tripla adjetivação): estes adjetivos, juntamente com
«mortal», denunciam o clima de perseguição política e policial e de repressão
vivido na cidade. Por sua vez, o adjetivo «puríssima» sugere o caráter positivo
da mudança que é necessária.
▪ Por outro lado, o dia,
que nasce da madrugada, simboliza, ordinariamente, a abertura, o nascimento, e
estaria associado à promessa e à pureza, porém, neste caso, corresponde à
noite, isto é, ao fecho, à morte.
▪ A quinta estrofe denuncia
os brandos costumes que caracterizam a sociedade portuguesa da época, aos quais
a mulher não poderia ficar presa.
▪ A imagem da dor trazida
pela mão é bastante significativa e está associada à imagem de trazer pela
tela, como um cão. Esta passagem possui um valor irónico-caricatural: trazer a
dor docemente pela mão, dor à portuguesa (os brandos costumes).
▪ Outra das razões pelas
quais o amor é impossível surge na sexta estrofe e tem a ver com o facto de a mulher não
merecer aquela cidade, caracterizada pela náusea, pela idiotia, pela morte e
pelo absurdo.
▪ A sétima estrofe
apresenta duas imagens diferentes de cidade. A mulher «pertence» a uma cidade
(quase) ideal, caracterizada pela aventura, pelo amor, pelo comércio puro, uma
cidade, em suma, onde existe liberdade e modos de vida alternativos.
▪ Já o sujeito poético
vive numa cidade que asfixia, que prende, que oprime, uma cidade onde existe “a
moeda falsa do bem e do mal”. Esta representa, metonimicamente,
Portugal, que contrasta com a imagem da cidade ideal apresentada anteriormente.
▪ Nesta estrofe, estão
presentes temas surrealistas, como o encontro, o acaso, o amor louco.
▪ Em suma, deste bloco de
seis estrofes, as cinco primeiras apresentam uma imagem não poética de
Portugal, enquanto a sexta (no conjunto do poema, a sétima) retrata um outro
lugar alternativo. Esta imagem remete para dois espaços que correspondem a duas
identidades nacionais e/ou dois espaços simbólicos (política e culturalmente):
Lisboa Paris
↓ ↓
Portugal França
↓ ↓
ditadura liberdade
↓ ↓
brandos
costumes alternativa
▪ Não esqueçamos a origem
do poema: Nora Mitrani, francesa surrealista que O’Neill conhecera e Lisboa e
por quem se apaixonara, parte da França; o poeta é impedido de se lhe juntar,
pois a PIDE confisca-lhe o passaporte e ele, impossibilitado de sair do país,
nunca mais a volta a ver, pois, entretanto, ela falece de cancro. No entanto, o
que é significativo no poema não é propriamente uma leitura biográfica, antes
passa pelo saborear a sua mensagem: de amor, de dor, de revolta e de utopia.
• 3.ª parte (vv.
50-55): Na última estrofe, assistimos à despedida e separação entre o sujeito e
a sua amada.
▪ O sujeito poético
despede-se da mulher amada (“digo-te adeus”), que vai partir (“o teu
desaparecimento”), despedida essa que é marcada, simultaneamente, pela ternura
e pela dor (“Nesta curva [símbolo da mudança de direção da relação entre os
dois, isto é, da sua separação] tão terna e lancinante”).
▪ A separação [e a dor
que lhe está associada], embora não tenha sido ainda concretizada, é sentida já
como tal: “que vai ser que já é” (v. 53).
▪ É o momento do
desaparecimento irremediável do amor – marcado pela partida da mulher – para
além da curva da vida, um momento de dor e de frustração, comparado a um
tropeço de ternura de um adolescente.
▪ Há uma certa circularidade
no poema, com marcas de narratividade, dado que a separação é anunciada na 1.ª
estrofe e retomada na última.
• Crítica
Em suma, o poeta critica, ao longo
deste poema, o ambiente vivido na época em Portugal:
▪ compara-o a uma
tourada, um espetáculo sangrento, de dor e morte;
▪ critica o povo
português por se conformar com a vida que tem (vv. 31-35 e 38-40) –
conformismo;
▪ critica a repressão
política do Estado Novo, bem evidente na referência ao medo, nos versos 23 a
29;
▪ critica a miséria e a
burocracia (vv. 12-21);
▪ critica a podridão e a
sordidez;
▪ critica o medo, o
desespero e o policiamento.
COVID-19: ponto de situação do dia 18 de abril
Análise de "Autorretrato", de Alexandre O'Neill
● Tema: o autorretrato do sujeito poético.
● Estrutura interna
▪ 1.ª parte (vv. 1-4): Retrato
físico do sujeito poético.
• Características físicas:
» moreno;
» cabelo negro (“cabelo asa
de corvo”: metáfora);
» nariz mal feito (“nariguete”)
acima de uma ferida;
» olhar triste;
» testa “iluminada”.
• A descrição física do
sujeito poético insinua, desde logo, diversas características psicológicas:
» a cara revela angústia;
» a ferida denota desdém –
é uma atitude de superioridade e desdém – pelos outros ou pelo país – que não
cessa;
» o olhar mostra tristeza.
• A ferida na cara,
referida no verso 4, sugere uma atitude de superioridade e desdém – pelos outros
ou pelo país –, por parte do sujeito poético, que não cura. De facto, o facto
de não estar cicatrizada pode querer dizer que essa atitude desdenhosa não
cessa.
▪ 2.ª parte (vv. 5-8): Retrato
psicológico-moral.
• Neste momento do poema,
há uma tentativa de esboço de um retrato «moral»: “o retrato moral também tem
os seus quês” (v. 7).
• O verso 7 insinua que a
sua vida não é exemplar, mas não chega a concretizar a que se refere e nada
revela sobre si.
• O verso 8 pode ter um
duplo entendimento [“(aqui, uma pequena frase censurada…)”]:
» autocensura por parte do poeta ou
» antecipação da censura
por parte de outros (não podemos esquecer que o poema foi publicado em 1962, em
plena vigência do Estado Novo): insinua que o que ia ser dito seria cortado
pela censura salazarista.
• O retrato moral é
breve, enigmático e pouco revelador sobre o “eu” poético, pois este apenas
insinua que a sua vida não é exemplar: “o retrato moral também tem os seus quês”
(v. 7). E, quando se preparava para revelar algo sobre si, autocensura-se ou
antecipa a censura dos outros.
▪ 3.ª parte (vv. 9-4): Retrato
ideológico-afetivo.
• O sujeito poético acredita
no amor e envolve-se empenhadamente nele.
• A «ternura» que sente
fá-lo sofrer (“Mas sofre de ternura” – antítese), ou seja, ele mostra ter uma
grande sensibilidade e ser afetuoso com os outros, no entanto essa «ternura» e
esse afeto trazem-lhe sofrimento.
• O sujeito poético bebe
em demasia.
• Ri-se do autorretrato,
riso esse que pode ter duas justificações:
» o autorretrato não
corresponde totalmente à verdade e sugere, assim, ao leitor que não deve
confiar completamente no que diz sobre si mesmo;
ou
» o autorretrato leva-o a
rir-se de si próprio, o que configuraria uma autocrítica.
● Tom caricatural do poema
Alexandre O’Neill ter-se-á “inspirado”
num poema de Bocage (“Magro, de olhos azuis, carão moreno”) para a composição
do seu autorretrato.
Por outro lado, diversas expressões
da composição aproximam-ma da caricatura, dado o seu caráter humorístico e
jocoso: “nariguete que sobrepuja de través / a ferida desdenhosa e não
cicatrizada” (vv. 3-4); “o retrato moral também tem os seus quês” (v. 7).
● Relação do poema com o soneto “Magro, de olhos azuis,
carão moreno”
▪ Os dois poemas
constituem um autorretrato dos respetivos autores.
▪ Os autorretratos
apresentam três dimensões: a física, a psicológico-moral e a amorosa.
▪ Ambos os textos se referem
aos mesmos órgãos do corpo: a cara, o nariz, a tez.
▪ Ambos afirmam que valorizam
o amor e que se entregam a ele.
▪ Ambos os textos adotam
uma atitude de crítica benevolente e autoirónica, não receando rir-se de si
próprios.
sábado, 18 de abril de 2020
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segunda-feira, 13 de abril de 2020
Ensino a distância ou ensino à distância ?
Surgiu nos documentos oficiais, a propósito da situação de pandemia que o mundo enfrenta por causa da COVID-19, a expressão «ensino a distância».
Na nossa humílima opinião, a expressão correta é, precisamente, «ensino à distância».
Muito melhor do que alguma vez nós seríamos capaz de fazer, a professora Regina Rocha explica porquê neste post do Ciberdúvidas:
«À distância» é a expressão correcta por três razões.
Deverá dizer-se «ensino à distância», ou «ensino a distância»?
Considero que «ensino à distância» é a construção correcta.
A expressão «à distância» ou constitui uma locução adverbial (ex.: «À distância, o general observava atentamente a movimentação das tropas»), ou faz parte de uma locução prepositiva (ex.: «Estavam à distância de 200 metros do quartel»).
Não encontrei registos de, em Portugal, alguma vez haver dúvidas a este respeito. A gramática de maior divulgação em Portugal nas últimas décadas (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, João Sá da Costa, Lisboa, Junho de 1984) inclui a expressão «à distância» numa lista de locuções adverbiais de lugar (2.ª ed., Outubro de 1984, p. 541).
No Brasil, os gramáticos de maior nomeada referem o mesmo.
Argumentam os defensores da expressão «a distância» que haveria contracção da preposição com o artigo (à) apenas no caso de se tratar de uma locução prepositiva («à distância de»), isto é, quando a dimensão ou a natureza da distância fosse determinada pela expressão que se lhe seguisse (ex.: «à distância de um telefonema»). Não encontrei nenhuma regra gramatical que sustentasse esta posição.
Que razões levam a que, nesta resposta, se defenda a locução adverbial «à distância», e não «a distância»? Apresento três.
1.ª – A locução está cristalizada há muitas décadas, décadas de uso corrente na norma culta. Esta é a primeira e primordial razão, pois, mesmo que na sua origem tivesse havido uma formação indevida (que não considero ser o caso, como explicarei de seguida, no ponto 2, desde o momento em que a maioria dos falantes cultos a adoptou e as gramáticas a registaram, ela ganhou legitimidade.
2.ª – A expressão «à distância» contém um substantivo que pede um complemento do nome (expresso ou subentendido). Por exemplo, se se ouvir a frase «A distância foi percorrida em cinco segundos», é natural que se pergunte «Que distância?». Tal significa que está subentendido um complemento. Na expressão «ensino à distância» está subentendido um complemento («à distância dos alunos», «à distância de quem vai receber essas lições»).
Ora, quando uma locução adverbial contém um substantivo que admite um complemento implícito, terá de se utilizar a contracção da preposição, pois está precisamente subentendido esse complemento.
Exemplos:
a) «conta à ordem» (subentendido «de alguém»), diferente de «conta a prazo» (simples natureza da conta);
b) «proceder à revelia»; «julgamento à revelia» (subentendido «de alguém», sem a comparência «do arguido» — em direito);
c) «desenho à vista»; «dinheiro à vista» (subentendido «de alguém»);
d) «letra à cobrança»; «envio à cobrança» (subentendido «do devedor»).
3.ª – Não tenho conhecimento de argumentos linguisticamente pertinentes que destruam a legitimidade da locução adverbial «à distância».
Assim, considero correctas as seguintes expressões: «ensino à distância», «formação à distância», «cursos ministrados à distância», «comando à distância».»
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