A temática da Aparição retoma
a questão da interrogação sobre a existência humana. Ao nível mitológico, ela
aparece, entre outros, patente no mito de Sísifo, filho de Éolo, fundador de
Corinto, que foi condenado a empurrar um rochedo até ao alto de uma montanha,
para, de lá, a atirar para o outro lado do monte. No entanto, a pedra voltava
sempre para trás e todos os dias ele tinha de repetir a tarefa, com o mesmo
desenlace. Neste contexto a pedra simboliza os obstáculos infindáveis com que o
ser humano se depara, não obtendo a resolução definitiva dos problemas que
marcam a sua existência.
O problema no romance Aparição
é o problema do “eu”, que se estende a cada homem. O “eu” pertence a um ser
vivo que, progressivamente, toma consciência de si-próprio; são as diferentes
“aparições” que compõem o processo de descoberta desse ente, cuja dimensão
ultrapassa o plano individual e se situa no plano coletivo: o de todos os
homens, em todas as épocas. Descobrindo o mundo, o Homem foi-se descobrindo a
si próprio e tentou obter respostas. A existência suscitou sempre a sua
reflexão e a constatação da morte inevitável definiu a sua condição e motivou a
sua angústia. Dos vários pensadores que refletiram sobre estas questões, três
marcaram profundamente Vergílio Ferreira: Kierkegaard, Heidegger e Sartre.
Kierkegaard, considerado o fundador do Existencialismo, afirmou que o homem
teria de renunciar a si mesmo para ultrapassar as limitações que a realidade
lhe impõe – no final da obra, é um pouco esta a posição de Alberto Soares: sabe
que nada mais poderá saber. Heidegger, por outro lado, salientou que o Homem só
poderia conhecer-se à medida que existia e focou a angústia metafísica que o ser
humano experimenta perante a ideia da morte. Para este filósofo, a linguagem
constitui uma forma de acesso ao ser – ora, Alberto Soares, através da escrita
(uma forma de linguagem), efetua a demanda do seu “eu” e da sua harmonia
interior, aceitando tranquilamente uma qualquer forma de transcendência que
justifica a existência, apesar de crer na “morte de Deus” (observemos, por
exemplo, a interpretação do dom musical de Cristina, enquanto tocava piano,
como uma manifestação do transcendente). Mas é Jean-Paul Sartre quem teoriza o
Existencialismo, afirmando: “(...) o homem primeiramente existe,
descobre-se, surge no mundo, e só depois se define. O homem, tal como o concebe
o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada.
Só
depois (existindo) será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim,
não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber.”
O Existencialismo ateu baseia-se, assim, nos seguintes princípios:
. a existência precede a essência, ou seja, o
homem primeiro existe e só depois sabe quem é – é o ato de existir que conduz à
descoberta do ser que existe em cada homem;
. ausência de determinismo – o homem é livre; o
seu destino é construído por si mesmo (no mundo) e é independente de qualquer
desígnio divino ou de qualquer outra natureza;
. o homem é responsável por tudo o que faz;
essa responsabilidade estende-se aos outros, uma vez que aquilo que fizer afetará
direta ou indiretamente aqueles que o rodeiam;
. a perceção da realidade é subjetiva, no
sentido em que essa perceção resulta da constatação da própria condição humana
(a perceção objetiva da realidade não é possível, uma vez que o Homem é
angústia e revela necessidades e comportamentos que se prendem com a sua
situação no universo);
. a solidão marca a existência – a liberdade
provoca a solidão (sem deus, sem valores, o homem é um ser só);
. o Homem está condenado a “inventar o homem”,
ou seja, a explicá-lo, de acordo com a sua própria visão da realidade, numa
determinada época.
Então, só e livre, cabe ao ser
humano encontrar razões para a vida, razões para a morte e para o absurdo que
esta representa.
A filosofia existencialista
subverte, pois, a perspetiva tradicional, segundo a qual a essência precede a
existência. O indivíduo aparece, portanto, como um estranho a si mesmo, na
busca de uma unidade que o conduza a uma ideia e a uma definição de si mesmo. O
narrador de Aparição coloca a questão
desta forma: “(...) o que eu sou não tem limites no puro ato de estar sendo,
esta evidência que me aterra quando um raio da sua luz emerge da espessura que
me cobre. E estas mãos, estes pés que são meus e não são meus, porque eu sou-os
a eles, mas também estou neles, porque eu vivo-os, são a minha pessoa e todavia
vejo-os também de cima, de fora, como a caneta com que vou escrevendo...”
(p. 194).
O título da obra remete,
assim, para o sucessivo milagre que constitui cada “aparição” (a palavra
aparece repetida na obra vinte e nove vezes) na descoberta do “eu”.
E os princípios existencialistas
estão presentes na ação do romance: Alberto Soares toma consciência de si
mesmo, existindo; a sua “notícia” consiste, precisamente, no facto de ter
descoberto e querer transmitir aos outros a sua descoberta de que “Deus
gastou-se” – o que significa que o homem é livre e não se encontra, por outro
lado, sujeito a qualquer tipo de determinismo, pelo que será ele o autor do seu
destino; mas não se é apenas responsável pelos seus próprios atos, é-se
igualmente responsável pelos dos outros – Alberto Soares é acusado da morte de
Sofia, através de um telefonema anónimo, pois, na realidade, ele revela a
Carolino algo que este não está preparado para ouvir, motivando, indiretamente,
a sua atitude e a manifestação do seu ato de loucura; finalmente, a solidão e a
angústia marcam as principais personagens da obra, que têm absoluta consciência
do absurdo da sua morte e das limitações que se ligam à condição do ser humano.
No final da obra, o narrador
questiona-se sobre a possibilidade de construção da “Cidade do Homem”; de facto,
a cidade que ele vê, quando dorme, pela última vez, na casa do Alto, é uma cidade
na sua imaginação, votada à destruição pelo fogo, que a personagem alastra, a
partir de uma “queimada”. Essa cidade, Évora, é um microespaço, símbolo do universo,
que deveria ser recriado pelo homem: “O campo arde vastamente, como numa destruição
universal.” (p. 269).
A atitude de Carolino parece ser o
epílogo necessário para provar que é preciso construir um mundo novo, ainda que
a posição do narrador seja pessimista em relação a este facto: “A noite
avança. A minha cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro lado. Mas não sabia
eu que ela devia arder? Acaso será possível construir uma cidade como a
imagino, a Cidade do Homem?” (p. 269).
Na realidade, a Cidade do Homem situa-se no domínio da utopia.